Elogiado por nomes como Francis Hime, Dori Caymmi, Fernando Brant, Joyce, Leila Pinheiro, Toninho Horta e Paulo César Pinheiro, o exímio violonista Sérgio Santos é considerado um dos maiores produtos recentes da música brasileira. Com excelente voz, na condição de compositor encarna, indubitavelmente, a psicologia do nosso povo, um dos que lançam por terra o mito de que a criação artística e intelectual brasileira está definitivamente superada.
O mineiro Sérgio Santos figura como um dos mais brilhantes autores e intérpretes da nova geração da música brasileira, cujo reconhecimento, inclusive, é revelado por inúmeras premiações surgidas de diferentes lugares no Brasil. Ele foi vencedor dos mais importantes festivais, como os de Avaré (SP), Juiz de Fora (MG), O Som das Águas, da extinta Rede Manchete de Televisão, e o Festival Carrefour de MPB, entre outros.
“O meu início já tem algum tempo. Faço 48 anos esse ano, quase um cinquentão. Meus primeiros contatos com a música vêm da infância, em Varginha, sul de Minas, onde nasci e morei até os 14 anos. Ali pude ver as festas populares, os congados, as folias de reis, os carnavais na rua. Além disso, sou filho de mãe carioca e passava uma parte das férias no Rio, mais precisamente em Padre Miguel, onde sempre se respirou o samba. Ficava ouvindo de longe os ensaios da Mocidade. Por outro lado, meu pai é alagoano. Por ocasião de algumas dessas férias estive em Alagoas, onde tive acesso a outras formas de manifestações populares: o baião, o coco, a embolada, o xaxado, a ciranda. Naquela época se ouvia de tudo nas rádios, diferente dessa monocultura de hoje”, conta Sérgio.
Viver de música no Brasil
é uma aventura
Seu irmão mais velho ganhou um violão e Sérgio começou a tentar tocá-lo. “Aprendi ouvindo e vendo as outras pessoas tocarem, nunca tive um professor. Depois me mudei para Belo Horizonte e a vida seguiu, sempre com a música ao lado. Fazia faculdade de Arquitetura quando, em 1983, fui convidado para participar como cantor do espetáculo Missa dos quilombos, de Milton Nascimento, que morava em Belo Horizonte, meu primeiro trabalho e primeiro cachê com a música. A partir daí fui me aprimorando como compositor, buscando parceiros e me profissionalizando, até abandonar a faculdade”, explica.
A Missa dos quilombos é um espetáculo que narra os massacres sofridos pelos povos da África, a aflitiva deportação de contingentes já tornados prisioneiros e, depois, escravos no Brasil durante o gerenciamento da Coroa portuguesa. O espetáculo exalta os quilombos — nome dado aos territórios libertados e governados pelos ex-escravos, primeira manifestação de conquista da nacionalidade, uma vez que muitos escravos haviam nascidos no Brasil e já não pretendiam ser livres na África, mas aqui —, sendo o maior desses movimentos a República de Palmares, liderada por Zumbi.
A partir da Missa dos quilombos Sérgio aperfeiçoou seus conhecimentos musicais como violonista, intérprete, arranjador e compositor. Em 1991 conheceu o poeta, cantor e compositor Paulo César Pinheiro: “Uma coisa fundamental para mim foi ter conhecido Paulo César Pinheiro. Não sou propriamente um compositor de letras, mas de músicas. Faço letras esporadicamente e sofro muito para fazê-las. Por isso, sempre precisei de parcerias. Como produzo muito, nunca havia encontrado um parceiro com o meu ritmo, que encarasse desenvolver uma obra comigo. Mas, no início dos anos 90 fui apresentado pelo Moacyr Luz ao Paulo, que veio cumprir esse papel”, revela.
A nossa cultura geral também
poderia funcionar como
geradora de divisas para o país
Vale citar, Moacyr Luz, grande amigo de Sérgio e Paulo César Pinheiro, é tido como um dos mais prestigiados compositores de samba do momento. Violonista, compositor e também cantor, Moacyr acumulou em 20 anos de carreira, uma centena de composições gravadas por intérpretes como Maria Bethânia, Nana Caymmi, Leny Andrade, Fátima Guedes, Leila Pinheiro, Beth Carvalho, entre outros.
Paulo César Pinheiro sempre foi para Sérgio, desde que começou a ouvir a sua obra com Baden, Dori Caymmi, Edu Lobo, Francis Hime e tantos outros, um verdadeiro parâmetro de qualidade poética: “Quando começamos a compor, a minha melhor expectativa era a de que faríamos uma dezena de músicas no máximo. Mas a parceria foi crescendo, junto com a grande amizade. Hoje, são mais de 160 músicas compostas e uma enorme gratidão pelo fato dele ter dividido comigo esse trabalho. Certamente avancei e aprendi muito como compositor nesse processo. Foi dessa obra que retirei o material para os meus três discos”, confidencia.
O primeiro disco de Sérgio se chamou Aboio, 1995. Nele explora os temas mineiros, a riqueza que a música de Minas exibe. Com esse trabalho foi indicado ao Prêmio Sharp e fez uma turnê na Europa. O segundo, foi Mulato, 1999, um disco de sambas. Com ele, se apresentou no Hollywood Bowl, em Los Angeles, USA, um local muito conceituado da música americana. O terceiro levou o nome de Áfrico, 2002, um apanhado da influência da cultura africana no Brasil, com que sagrou-se vencedor do Prêmio RivalBr, no Teatro Rival, no Rio de Janeiro, em 2002, como melhor CD do ano.
“Neste exato momento, acabo de concluir a gravação do meu quarto CD, que deverá ser lançado em julho, pela gravadora Biscoito Fino. É um disco de sambas pontuados com alguns choros. Tem onze parcerias com Paulo César Pinheiro, e uma com Francis Hime, além de quatro letras minhas. Estou muito feliz com esse trabalho e o momento agora é de pensar no seu lançamento”, anuncia Sérgio.
Sair dos becos e guetos
Esse é o segundo disco — o primeiro foi Áfrico — de Sérgio Santos lançado pela gravadora Biscoito Fino, de quem é contratado. Lembremos que a gravadora Biscoito Fino, é comprometida com a boa música brasileira. Sua função, segundo suas criadoras, a empresária Katy Almeida Braga e a cantora e compositora Olívia Hime, é de abrir espaço (quem diria) para a nossa música, tornando possível aos brasileiros consumir o que o mundo inteiro faz avidamente: música brasileira, desprezada aqui pelas grandes gravadoras — que são estrangeiras e monopolizam os meios de difusão. “A Biscoito Fino é para mim um modelo de resistência no mercado fonográfico brasileiro”, elogia Sérgio.
“Viver de música no Brasil é uma aventura. Aqueles que optaram por seguir o caminho da música popular como manifestação artística e não apenas um produto de consumo, têm necessariamente que conviver com as dificuldades que essa atitude acarreta. Aqui se criou um enorme buraco que separa a música criativa da grande indústria fonográfica, como resultado de um modelo de atuação desastrosa do ponto de vista cultural. Para a indústria, o importante passou a ser os mega sucessos imediatos e substituíveis, que garantam lucros cavalares a cada onda da moda e o ininterrupto sobe e desce essa montanha russa”, declara Sérgio Santos.
“Esse modelo os americanos chamam de blockbusters e é o que eles impõem no mundo todo, e não só na música. Basta observar a enorme disputa entre os filmes lançados pelo cinema hollywoodiano, para ver qual o filme que mais faturou na primeira semana de lançamento. O mérito maior é para quem ‘arrebentar’ na primeira semana. É o que se aplica na indústria fonográfica brasileira”, acresenta.
Temos a melhor música
popular do mundo
Sérgio diz que a indústria fonográfica se estruturou para atuar dentro desse modelo e para obter lucro imediato é necessário um enorme investimento em divulgação, sobretudo, na fabricação de novos artifícios de alvoroço, a cada vez que os do momento caiam em desuso. “Ora, é óbvio que isso tem data marcada para ruir. Em algum momento vai se esgotar, não há invenção de moda que dure para sempre. Aliando essa realidade à pirataria de discos, que movimentou no ano passado quase R$ 800 milhões, vendendo perto de 115 milhões de cópias falsificadas, pode-se imaginar como anda o sono dos executivos das grandes gravadoras. Por isso, vemos uma boa parte delas fechando as portas, demitindo artistas e funcionários e constantes fusões”, nota. “A minha geração foi a que mais sofreu, porque pegamos o auge desse modelo. As gravadoras tinham as portas fechadas para aquilo que não fosse ‘comercial’ e não havia outro meio de escoar a nossa produção. O mercado independente não existia e os custos de produção de um disco, que hoje foram barateados pela tecnologia, eram muito altos na época. Hoje, no entanto, até como uma consequência da política equivocada das gravadoras, a produção independente tem se estruturado enormemente ganhando cada vez mais espaço”, continua.
Sobreviver de música
Sérgio entende que os espaços estão se abrindo, principalmente, em função de uma geração de novos compositores, instrumentistas e cantores surgidos recentemente, fazendo uma música de altíssima qualidade, com cada vez mais adeptos. “Essa geração ainda não alcançou os meios para produzir e principalmente divulgar os seus trabalhos. Ainda é difícil para todos que fazem a música chegar até os meios de comunição. As rádios e as televisões, principalmente — meios privilegiados para a divulgação de nossa música —, estão povoadas pela atuação nefasta das grandes gravadoras. O jabá, nome dado a prática de comprar horários nas rádios, ainda é o que impera na relação entre os monopólios gravadora/meios de comunicação, impossibilitando que uma produção belíssima, nacional, popular, possa alcançar o público”, diz.
“Acho que temos a melhor música popular do mundo, junto com a americana e a cubana, e essas duas estão longe de ter a diversidade que temos. Quem percorre um pouco o país sabe do que estou falando: em cada região, e com características diferentes, a quantidade de ótimos compositores, instrumentistas e intérpretes é enorme”, declara.
“Ainda não conseguimos avaliar o que temos, perceber o seu valor estratégico. A nossa música é o único produto de exportação que chega aos quatro cantos do mundo sem nenhuma política específica de aproveitamento econômico e de divulgação por parte do poder público. É mais ou menos como se você tivesse um produto qualquer, considerado como um dos melhores entre todos os países, e não criasse condição alguma para favorecer sua venda e afirmação mundo afora. É inacreditável”, acrescenta Sérgio.
“Nossa música e nossa cultura em geral poderiam gerar divisas para o país. Mas nenhum governo jamais elaborou ao menos um esboço de política para potencializar internacionalmente essa exuberância já construída. Os franceses, por exemplo, longe de dispor do potencial e da aceitação que desfruta a nossa música, tem uma política definida para a produção e comercialização musical no mundo. Temos que aprender com eles”, continua.
“A questão cultural é sempre entendida como algo sem nenhuma relevância. Vejam a irrisória verba destinada ao Ministério da Cultura. Mas é preciso avaliar nossa arte em geral, e nossa música, em particular, pela posição de destaque que ocupa, até mesmo como geradora e não como consumidora de divisas”, finaliza Sérgio Santos.
Áfrico
(Sérgio Santos e Paulo César Pinheiro)Quem foi que fez brasileiro bater
Tambor de jongo?
De onde é que sai quem batuca com o pé
Terno-de-Congo?
Quem é, me ensina quem foi
Que fez o povo dançar
Tambor-de-Mina, Bumba-meu-boi,
Boi-bumbá,O bambaquerê,
O samba, o ijexá,
Quando o Brasil resolveu cantar?Quem foi que pôs o lamento na voz
Da lavadeira?
Quem fez aqui baticum, candomblé
E a capoeira?
Quem trouxe o maracatu?
Quem fez o maculelê,
Mineiro-pau, côco, caxambu,
Bangulê,
A xiba, o lundu,
O cateretê,
Quando o Brasil resolveu cantar?Me diz quem foi que fez
A dor se transformar
Em som de carnaval,
Em batucada,
Em melodia?
Que força fez mudar
Toda tristeza
Em alegria,
Quando o Brasil resolveu cantar?