No ano de 1995 os poderosos da Europa lançaram o chamado "processo de Barcelona", que apresentaram como um projeto de "parceria" euro-mediterrânea. Reunidos ali, na capital da região espanhola da Catalunha, os dirigentes da União Européia delineavam então os termos de uma nova fase do neocolonialismo no entorno europeu — algo mais de acordo com a moderna rapinagem monopolista. Aquela praticada em nome da "democracia" e da "segurança dos povos".
Os documentos oficiais e a historiografia oficiosa dão conta de que a "política da União Européia em relação aos países do Mediterrâneo" prevê as maravilhas do sétimo céu para a vizinhança da África e do Oriente Médio.
A declaração de Barcelona, que desencadeou o processo propriamente dito, dizia o seguinte: "a parceria tem por objetivo favorecer a paz e a estabilidade na região, instaurando um diálogo político no respeito pelos valores comuns partilhados pelos parceiros, como a democracia e o Estado de direito. Tem igualmente por objetivo favorecer a prevenção e a resolução de conflitos, bem como a prosperidade, através da criação de uma zona de comércio livre e do desenvolvimento de cooperações".
Trata-se do velho discurso liberal com o qual os poderosos tentam avalizar toda sorte de roubos e humilhações. Prenunciam guerras falando em "paz" e "estabilidade". A truculência de sempre se transforma em "diálogo". Por fim, anunciam "prosperidade" e "comércio livre" quando estão falando mesmo é de pilhagem.
Esta declaração de intenções da Europa do capital, no sentido de consolidar e lançar as bases para a perpetuação do domínio sobre os países da costa do mar Mediterrâneo, ecoou mundo afora há mais de dez anos, mas só agora a coisa foi levada adiante, graças ao perfil, digamos, "empreendedor" do presidente francês Nicolas Sarkozy e à cumplicidade dos dirigentes oportunistas das outras margens.
União de quem? A favor de quê?
No último dia 13 de julho, 13 anos depois, o processo que começou em Barcelona foi concluído em Paris. Nicolas Sarkozy, que exerce atualmente a presidência rotativa da União Européia — permanecendo nesta função até dezembro — recebeu na capital da França os administradores de 44 países localizados ao norte e ao sul do Mediterrâneo. Lá, manda-chuvas e gerentes semicoloniais levaram apenas quatro horas para acertarem os ponteiros e decretarem a criação oficial da União para o Mediterrâneo (UpM).
Da mesma forma que sua antecessora — a Declaração de Barcelona — a resolução fundacional da UpM leva os desavisados a acreditarem que o novo bloco surge alicerçado nas melhores intenções possíveis, e para bem de todos os povos envolvidos. A verdade, no entanto, é que a União Européia pretende levar a cabo de uma vez seu projeto de dominação política, econômica e militar da região.
São estas as três vertentes do programa da UpM, ainda que as boas maneiras obriguem os gerentes responsáveis pela criação do novo bloco a usarem eufemismos para enumerar os supostos benefícios que o acordo traria para todos através de uma suposta cooperação empresarial, cultural, e em segurança e migração.
As massas trabalhadoras, no entanto, sabem bem o que está por trás de toda esta falácia. As classes populares dos países europeus, africanos e asiáticos, que foram entrelaçadas nesta União para o Mediterrâneo, não se iludem com mais este arranjo preparado pela burguesia da Europa e afiançado pelas classes dominantes das nações situadas em volta do mar que banha partes da Europa, África e Oriente Médio.
Isto quando chegam a se tratar de nações, o que não é o caso do Estado fraudulento de Israel. Os palestinos, oprimidos pela administração sionista, vêem-se agora juridicamente amarrados às políticas neocoloniais de Alemanha, França, Inglaterra e companhia. E pior: gerentes lacaios assim decidiram por eles.
Os povos da região conhecem a enorme importância estratégica que o entorno do Mediterrâneo tem para os interesses das classes dominantes sediadas no "velho continente". A partir de agora é possível prever o que virá: a Europa exigirá que seus novos "parceiros" se apressem em realizar reformas para facilitar a mobilidade do capital, o que, na prática, espalhará a precariedade absoluta do emprego e das condições de vida, promovendo uma devastação ainda maior, desde o estreito de Gibraltar até a Cisjordânia. Pode-se esperar também um incremento da reação contra a resistência em países banhados pelo Mediterrâneo, como o Líbano.
Roubar até luz solar
Muitas coisas já estão em curso. Menos de 15 dias depois do lançamento oficial da União para o Mediterrâneo, no final de julho, um dos objetivos imediatos do novo avanço europeu sobre os países do norte da África começou a ser exposto às claras.
Na abertura do Fórum Aberto Eurociência, que aconteceu ironicamente na mesma cidade de Barcelona, o cientista Arnulf Jaeger-Waldau, do Instituto para a Energia da Comissão Européia, anunciou um plano para a exploração de energia solar a partir do deserto do Saara, o que seria suficiente para abastecer todo o continente europeu.
A intenção é cumprir as metas de redução das emissões de carbono estabelecidas em tratados internacionais substituindo a queima de combustíveis fósseis pela energia "limpa" a ser produzida nos países do norte da África.
Trata-se dos poderosos buscando os recursos naturais de que precisam em terras sob seu jugo, tudo sob as bênçãos do novo bloco. A maior parte do deserto do Saara fica dentro das fronteiras de países como Marrocos, Argélia, Líbia e Egito — todos membros da União para o Mediterrâneo. Qualquer semelhança com o colonialismo dos séculos passados explica que a tragédia africana de hoje não é mera coincidência — é sua atualização!
O próprio Sarkozy e o primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, foram os primeiros a apoiar publicamente o projeto, que consistiria na construção de parques de energia solar no maior deserto quente do mundo, e na ligação direta entre eles e a Europa por redes elétricas a transpor o mar Mediterrâneo.
Foram também os primeiros, ainda na véspera do lançamento da União para o Mediterrâneo, a darem o sinal verde para que a ciência fosse colocada a serviço da rapinagem neocolonial no âmbito do novo bloco.
Brown já sabia muito bem que aproveitar os raios de sol para gerar energia é algo três vezes mais produtivo no deserto do Saara do que no norte da Europa, e o acirramento da recolonização programada da África — particularmente das ex-colônias francesas no norte do continente — é um dos objetivos de Sarkozy em sua presidência da União Européia.
Mas isto que já se faz sob o lema do "aprofundamento da integração dos mercados energéticos" é apenas uma parte, uma pequena parte do que os povos da região deverão enfrentar.
No entanto, já prevendo maior resistência, os termos da União para o Mediterrâneo dão conta de uma cooperação para o combate ao "terrorismo" — esta é a palavra que se costuma usar para desqualificar aqueles que lutam por sua liberdade ante as ofensivas imperialistas e neocoloniais.