A região do Vale do São Francisco1 é conhecida nacional e internacionalmente como pólo da fruticultura irrigada no Brasil. Abarca 120 mil hectares, sendo explorada como parte significativa do chamado agronegócio que desde o primeiro mandato da gerência de Luiz Inácio vem, de maneira apologética, sendo apontado como um dos agentes do crescimento econômico e, consequentemente, do "desenvolvimento nacional", responsá vel por 42% do total de exportações brasileiras de uva e manga in natura, segundo dados da Secretaria do Comércio Exterior — Secex.
Vale do São Francisco: latifúndio irrigado prospera enquanto o povo colhe miséria
O carro chefe da atividade na região é a produção de uva e manga, que juntas ocupam mais de 35 mil hectares em área plantada e totalizam a exportação de cerca de 700 mil toneladas por ano. A produção está concentrada principalmente nas cidades pernambucanas de Petrolina, Lagoa Grande, Santa Maria da Boa Vista e nas cidades baianas de Juazeiro, Casa Nova e Curaçá, onde se instalaram grandes empresas de exportação e através das quais 70% de toda a manga e uva produzidas deixam o Vale, a quase totalidade desta destinada aos mercados europeu e estadunidense.
Uma economia voltada para abastecer de frutas os mercados dos países imperialistas que logo sentiu os efeitos da crise econômica mundial que estourou em setembro do ano passado. Os contratos de comercialização são estabelecidos antes da produção, num sistema de "consignação", baseados numa estimativa do valor do dólar, uma espécie de "crédito de vendas" denominado adiantamento de contato de câmbio (ACC) e, ao final, de acordo com a cotação do dólar no dia e em relação ao que realmente for absorvido pelo mercado, é feito o acerto das vendas. Diante da atual crise geral de superprodução relativa os preços das frutas brasileiras, assim como de outras commodities, despencaram no mercado internacional. O preço da uva, que no ano passado variou entre US$ 2 e US$ 2,50, este ano está entre US$ 0,80 e US$ 1,00 o quilo. Com isso, os "créditos" para o financiamento das safras se converteram em dívidas gerando prejuízos, falência de pequenos e médios produtores e um grande número de demissões.
O resultado mais imediato da crise é o crescimento do desemprego. A fruticultura irrigada do Vale do São Francisco chega a empregar, no pico da produção, 240 mil trabalhadores, 72 mil só nas fazendas de uva. No período da entressafra, cerca de 40 e 50 mil trabalhadores são demitidos. Em declaração à reportagem do Jornal do Commercio, o prefeito de Petrolina, Júlio Lóssio, estima que o número de desempregados atingirá 90 mil trabalhadores e trabalhadoras. Nos meses de novembro e dezembro de 2008 e janeiro de 2009, 10 mil pessoas perderam o emprego nas fazendas do Vale do São Francisco. Somente em uma empresa de exportação de uva na cidade de Curaçá (BA) todos os 260 funcionários estão cumprindo aviso prévio e o local onde as frutas eram tratadas e trabalhavam 60 pessoas foi desativado. Desde o estouro da crise o setor que mais demitiu foi o agronegócio, com 184,9 mil trabalhadores demitidos.
O Distrito de Irrigação Perímetro Senador Nilo Coelho possui 25 mil hectares de terras irrigadas nos municípios de Casa Nova (BA) e Petrolina (PE). Neste Distrito existem 2.292 produtores, sendo 44 grandes, 178 médios e 2.070 pequenos irrigantes. A crise tem impossibilitado os pequenos produtores de arcar com as altíssimas taxas de energia e água cobradas pelo Distrito. Até a primeira semana de janeiro houve um crescimento de 13% da inadimplência, que em dezembro atingira 20%. 160 lotes já tiveram o fornecimento de água cortados.
No mercado do produtor de Juazeiro, onde circula cerca de 25 % da produção do Vale e que é abastecido fundamentalmente por pequenos produtores, houve uma grande queda no preço da manga que chegou a R$ 0,45 quando o preço no ano passado estava entre R$ 1,20 e R$ 1,30. Isto se deu porque a produção não foi exportada devido à desvalorização no mercado internacional e foi despejada no mercado interno, atingindo justamente aqueles que têm menores condições de resistir à crise e que não contam com incentivos e nem socorro do governo.
A lógica imperialista produz cenas quase inacreditáveis. A empresa Sechi Agrícolas enterrou 700 toneladas de manga. Já o latifundiário João Fiacadori deixou 30% de sua produção de manga apodrecer no chão. Todo este desperdício numa das regiões mais pobres do país e que está, neste momento, sendo atingida por uma forte seca. Dentro da lógica imperialista esta é a saída para sua crise: destruir uma parcela da produção numa histérica tentativa de fazer os preços subirem novamente. Lembremos do café queimado por Getúlio Vargas durante a crise que se estendeu pela década de 1930. Isto é mais um indicativo da extensão dessa crise.
Os fatos comprovam de maneira cabal que o "agronegócio" nada tem de nacional, é apenas extensão da cadeia de exploração das potências imperialistas que se utilizam do solo brasileiro e da força de trabalho nacional para produzir mercadorias baratas e abastecer seus mercados consumidores, esta é a essência reacionária que se revela de maneira contundente nos momentos de crise.
O povo, à sua maneira, encontra soluções próprias para as crises do sistema capitalista. Soluções estas que passam inevitavelmente pela destruição deste modo de produção irracional, pela construção do socialismo, regime social dos operários e camponeses, onde vale o lema "quem não trabalha não come" e sendo uma economia planificada, voltada para as necessidades humanas e não para o lucro máximo, eliminando as possibilidades de crises de superprodução relativa como a que estamos vivendo.
O opróbrio da "Califórnia" nordestina
Desde o final dos anos 70, quando se iniciaram as atividades da fruticultura irrigada no Vale do São Francisco, a região foi aclamada como "Califórnia do Nordeste", uma alusão feita pelos apologistas do neolatifúndio com o estado do USA conhecido pelo grande plantio de frutas e rápido crescimento econômico. Mal sabiam que tal comparação acabaria tendo um sentido oposto ao pretendido por sua apologética.
A atual crise do Vale do São Francisco, de fato, tem um impressionante paralelo com a situação da Califórnia após a quebra da Bolsa de Nova York em 1929. Diante da queda dos preços das mercadorias, toneladas de frutas apodreciam nos pomares californianos. O desemprego cresceu assustadoramente e se instituiu um macabro sistema de leilões às avessas, onde os trabalhadores iam reduzindo o preço de sua força de trabalho para participarem das colheitas. Hoje, 80 anos depois, guardadas as diferenças históricas e geográficas, vemos cenas absurdamente semelhantes no Vale do São Francisco.
1. O Vale do São Francisco é a região que margeia o rio São Francisco nos estados de Minas Gerais, Bahia e Pernambuco.
Páginas da realidade
O escritor californiano John Steinbeck escreveu em 1939 As vinhas da ira que retrata de maneira magistral a contradição absurda do modo de produção capitalista que salta a vista em suas crises cíclicas de superprodução. Esta que é considerada sua obra-prima e lhe rendeu o Prêmio Politzer de literatura, conta a saga da família Joad, pequenos arrendatários que são expulsos de suas terras pelo processo de mecanização da agricultura e migram para o oeste em busca das promessas douradas da Califórnia. Depois de enfrentarem todo tipo de desafios encontram uma realidade dura de crise e aguda luta de classes. As cenas de As vinhas da ira, que foram ao cinema em 1940, em muitos momentos parecem retratar as agudas contradições desta parte do Nordeste brasileiro.
"É bela a primavera na Califórnia. Nos vales, as flores das árvores frutíferas parecem águas perfumadas, brancas e cor-de-rosa, num mar pouco profundo. (…) Atrás dessa fecundidade, há homens de conhecimentos, de habilidade e de sabedoria, homens que estão fazendo experimentos com as sementes, que estão desenvolvendo infinitamente a técnica que proporciona maiores colheitas das plantas cujas raízes têm de resistir aos milhões de inimigos terrestres: ao bolor, aos insetos, à ferrugem e à alforra. Esses homens trabalham cuidadosa e incansavelmente para aperfeiçoarem as sementes e as raízes. E ao lado deles há os químicos, borrifando as árvores no combate contra a peste, enxofrando as uvas e aniquilando doenças e podridões, mangras e enfermidades. Doutores em medicina preventiva, homens da fronteira sanitária, espreitando as moscas da fruta, o escaravelho japonês; homens que obrigam as árvores doentes à quarentena, ou que as destroem pelo fogo, homens de sabedoria. (…)
Ao longo das filas caminham os camponeses, e arrancam as ervas da primavera, deitando-as na terra, a fim de fazê-la fértil. Abrem o chão para que mantenha a água perto da superfície, estriam-no por pequenos fossos de irrigação, destroem as ervas daninhas que poderiam beber a água destinada às árvores.
E as primeiras cerejas estão amadurecendo. Um cent e meio a libra. Meu Deus, mas a gente não pode colher elas por este preço! Cerejas pretas e cerejas vermelhas, cheias e doces, e as aves comem a metade de cada cereja, e as vespas infiltram-se nos buracos feitos pelas aves.
Os pequenos fazendeiros observam como as dívidas se aproximam deles, insensivelmente, como o crescer da maré. Borrifaram as árvores, sem vender a colheita, têm podado e enxertado, e não puderam recolher as frutas. E os homens de sabedoria têm trabalhado e meditado e as frutas estão apodrecendo no chão, e a mistura deteriorada nas cubas de vinho empesta o ar. Prova o vinho… não há nele nada do aroma das uvas; há somente enxofre e ácido tânico e álcool.
Este pequeno pomar, no ano que vem, pertencerá a uma grande companhia, pois o proprietário será sufocado pelas dívidas.
Este parreiral será propriedade do banco.
A podridão espalha-se através do estado, e o cheiro doce torna-se uma grande preocupação nos campos. Os homens, que sabem enxertar as árvores e fazer fecundas e fortes as sementes, não encontram meios para deixar a gente esfaimada comer seus produtos. Homens que criaram frutas novas para o mundo não sabem criar um sistema pelo qual suas frutas possam ser comidas. E o fracasso paira sobre o Estado como uma grande preocupação.
(…) Eles queimam café como combustível de navio; queimam trigo para aquecer; dão um bom fogo. Atiram batatas aos rios, colocando guardas ao longo das margens para evitar que o povo faminto vá pescá-las. Abatem porcos, enterram-nos, e deixam a putrescência penetrar na terra.
Há um crime nisso tudo, que não foi denunciado. Há uma tristeza nisso, que o pranto não pode simbolizar. Há um fracasso nisso que opõe barreiras ante todos os nossos sucessos. À terra fértil, às filas retas de árvores, aos troncos vigorosos e às frutas maduras. E crianças, sofrendo de pelagra, têm que morrer, porque a laranja não deve deixar de dar seu lucro.
O povo vem com redes para pescar as batatas no rio, e os guardas impedem-no. Os homens vêm nos carros barulhentos apanhar as laranjas caídas ao chão, mas elas estão untadas de querosene. E eles ficam imóveis, vendo as batatas passar flutuando; ouvem os gritos dos porcos abatidos num fosso e cobertos de cal viva; contemplam as montanhas de laranjas, num lodaçal putrefato. E nos olhos dos esfaimados cresce a ira. Na alma do povo, as vinhas da ira diluem-se e espraiam-se com ímpeto, crescem com ímpeto para a vindima1.
O germinar de uma Revolução
"Um homem, uma família, expulsos de suas terras, esse veículo enferrujado arrastando-se pela estrada rumo ao oeste. Eu perdi as minhas terras; um trator, um só, tomou-as. Estou sozinho e apavorado. E uma família pernoita numa vala e outra família chega e estacas são fincadas na terra e tendas surgem. Os dois homens acocoram-se no chão e as mulheres e as crianças escutam em silêncio. Aí está o nó, ó tu que odeias mudanças e temes revoluções! Mantém esses dois homens apartados; fazes com que eles se odeiem, receiem-se, desconfiem um do outro. Porque aí começa aquilo que tu temes. Aí é que está o germe. Porque aí transforma-se o 'Eu perdi minhas terras'; uma célula se rompeu e dessa célula rompida brota aquilo que tu tanto odeias, o 'Nós perdemos nossas terras'. Aí é que está o perigo, pois que dois homens nunca se sentem tão sozinhos e abatidos como um só. E desse primeiro 'nós' nasce algo muito mais perigoso: 'Eu tenho um pouco de comida' e 'Eu não tenho nenhuma'. Quando a solução deste problema é 'Nós temos um pouco de comida', aí a coisa toma um rumo, aí o movimento já tem um objetivo. Apenas uma pequena multiplicação, e esse trator, essas terras são nossos. Sim, é aí que tu deves lançar a tua bomba. É este o começo… do 'Eu' para o 'Nós'."
(trechos dos capítulos XIII e XXIV de As Vinhas da ira)
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1. Colheita da uva