Estudantes tomam a Universidade Nacional de Córdoba, em 1918
No distante 1918, as universidades argentinas foram postas de ponta-cabeça por seus estudantes. Levantando-se contra privilégios e arcaísmos variados, eles colocaram suas escolas entre as mais democráticas e avançadas do continente. Apesar de todos os revezes posteriores, muitas conquistas essenciais da mal chamada reforma universitária (na verdade, uma revolução, como se depreende das palavras de seus protagonistas) ainda persistem. O epicentro desse terremoto foi a cidade de Córdoba, onde pode-se dizer que nasceu o movimento estudantil latino-americano.
Livre ingresso em curso superior, sem vestibular ou qualquer outra forma de seleção. Frequência livre às aulas, sem lista de chamada. Representação igualitária de professores, estudantes e egressos nas instâncias deliberativas da universidade. Embora negligenciadas no Brasil, essas são algumas das bandeiras históricas do movimento estudantil latino-americano. Soam avançadas demais? Pois foram desfraldadas pelos estudantes argentinos em 1918 e vigoram até hoje naquele país.
Suas conquistas incluíam também coisas que hoje fazem parte do senso comum, como a admissão de professores universitários por concurso (na Argentina, até então, eles eram nomeados por entidades controladas por representantes da oligarquia agrária e do clero católico). E outras que ficam a meio caminho, não tão revolucionárias, mas ainda ousadas demais para as burocráticas e conservadoras universidades brasileiras, como o sistema de cátedras paralelas, pelo qual cada disciplina é ministrada, simultaneamente, em várias turmas com professores diversos, evitando que um docente se torne “dono” de uma matéria e os estudantes, seus reféns.
Causas imediatas
Das três universidades com que contava então a Argentina (as outras duas eram as de Buenos Aires e La Plata), a de Córdoba era a mais antiga e a menor. Até 1918, era controlada pela ordem dos jesuítas. A influência clerical nunca foi um dado positivo para nenhuma instituição de ensino, mas o que ocorria ali era particularmente grave.
Não contentes em dificultar o acesso dos filhos das classes médias e populares à universidade mediante taxas e exames de ingresso que privilegiavam os rebentos de famílias oligárquicas e em direcionar o ensino às aspirações dessa mesma oligarquia, os padres e leigos que controlavam a Universidade de Córdoba arrogavam-se o direito de intervir no conteúdo e nos métodos de ensino, impondo um escolasticismo exacerbado e tolhendo ao máximo a experimentação e a reflexão. Em seu artigo La reforma universitária de 1918, o historiador argentino Felipe Pigna conta que, no programa de uma das disciplinas de Filosofia, constava o item “deveres para com os servos”.
Quando a direção da Faculdade de Medicina aboliu o programa de residência médica, a paciência dos estudantes se esgotou. O Comitê Pró-Reforma declarou greve e exigiu a intervenção do governo na universidade para substituir os quadros diretivos e o corpo docente. O interventor, Nicolás Matienzo, atendeu a essa reivindicação, mas sem estender o direito de voto aos estudantes. Se até então os cargos de reitor e diretores eram providos por indicação de instâncias controladas pela Corda Frates (confraria ligada à arquidiocese local), esse direito passava, agora, aos professores.
Na primeira eleição para reitor, enfrentam-se o candidato do Comitê Pró-Reforma, Enrique Martínez Paz; o da Corda Frates, Antonio Nores; e o moderado Alejandro Centeno. Nos dois primeiros escrutínios, ninguém consegue maioria absoluta; no terceiro, os eleitores de Centeno compactuam com a Corda Frates e elegem Nores. Antes, porém, que se proclamasse oficialmente o resultado, centenas de estudantes ocupam o local onde se dava a reunião, decretando nova greve e exigindo nova intervenção. O presidente Hipólito Yrigoyen acata o pedido, mas, como o interventor demora a chegar, os estudantes ocupam a universidade e alguns deles assumem como diretores e professores interinos. O interventor não tem outro remédio além de atender a todas as reivindicações, inclusive as mais radicais.
Ecos da rebelião
Em 11 de maio de 1968, o jornal Le Monde, publicado em Paris, dizia em editorial que a rebelião estudantil em curso na França naquele momento tinha sua semente no movimento deflagrado na Argentina cinquenta anos antes. Se a exatidão histórica dessa afirmativa é discutível, ela é, por outro lado, um indicativo da importância e do impacto da rebelião cordobesa. E se os reflexos desta em Paris podem ser objeto de alguma discussão, é absolutamente certo que seus ecos fizeram-se ouvir, de imediato, em toda a América de língua espanhola.
Movimentos similares eclodiram, poucos anos depois, em diversos países. Deles, emergiu uma geração de cientistas, intelectuais e dirigentes políticos notáveis. Julio Antonio Mella (fundador do Partido Comunista Cubano), Carlos Cossio (jurista argentino) e Germán Arciniegas (ensaísta colombiano), além dos célebres pintores mexicanos Diego Rivera e David Alfaro Siqueiros, são alguns dos homens forjados política e intelectualmente nesse processo.
E se há quem considere que ele teve desdobramentos em Paris em 1968, não seria absurdo aventar que os tenha tido também no ano seguinte (1969), na própria Córdoba, onde se deu, com o importante apoio das organizações estudantis locais, a maior rebelião operária da América Latina (o chamado Cordobazo). A unidade de ação entre movimento estudantil e movimento operário era, aliás – mesmo num país incipientemente industrializado como a Argentina de 1918 – uma preocupação presente nas cabeças pensantes da rebelião universitária.