Há 70 anos foi publicada a primeira edição do livro Vidas Secas. Escrita por Graciliano Ramos, entre 1937 e 1938, a obra tem como tema a luta pela sobrevivência de uma família camponesa contra os flagelos da seca e a exploração e opressão do latifúndio. Vidas Secas é o último romance do "Velho Graça". Em suas páginas, ele evidencia a honra dos camponeses e a justeza de suas lutas. Resgatando a sua importância literária, vemos em suas páginas a preocupação deste autêntico escritor brasileiro com as massas exploradas e oprimidas de nosso país e a sua atualidade e valor histórico.

Cena do filme de Nelson Pereira dos Santos
Em 1926 é realizado o Congresso Regionalista de Recife, organizado por Gilberto Freire e José Lins do Rego. Esse encontro é considerado o marco zero da chamada prosa regionalista e teve como proposta organizar a literatura comprometida com a problemática nordestina, elucidando as grandes contradições daquele momento: a seca, a semifeudalidade, a corrupção, o coronelismo e o latifúndio.
A literatura e arte nacionais nas décadas de 20-30 do século passado desenvolveram-se em um ambiente de tormentosa luta de classes, sob o influxo da Revolução Bolchevique, às portas de uma crise colossal do sistema capitalista em todo o mundo. A parcela mais avançada e honesta da intelectualidade brasileira, fortemente influenciada pelos ideais progressistas e revolucionários desta época, buscou empenhar-se na criação de uma literatura de caráter social, comprometida com os problemas de nosso povo, particularmente dos camponeses.
Os romancistas de 30 caracterizavam-se por adotar uma visão crítica das relações sociais, desenvolvendo um "estilo de escrever" que ressaltava homens e mulheres assolados pelos problemas que o meio lhes impõe. Destacam-se neste momento expoentes como Érico Veríssimo, Jorge Amado e Graciliano Ramos.
O romance Vidas Secas do escritor, romancista, cronista e jornalista brasileiro, Graciliano Ramos, é uma das principais obras da literatura nacional da época.
Saga sertaneja
Vidas Secas é uma narrativa escrita por "quadros" que aparentemente nada têm em comum a não ser os personagens e a paisagem. No entanto seus episódios acabam se interligando compondo o drama épico de uma família camponesa.
O capítulo Mudança retrata uma família sertaneja fugindo da seca. Compõem a família: Fabiano, um homem louro como o sol e de olhos azuis, casado com a mulata Vitória. Ele, rude, incapaz de fazer contas e se comunicar; ela, suficientemente inteligente para pensar e agir pela família. Os dois filhos do casal, caracterizados por "menino mais novo" e "menino mais velho", a simpática e quase humana cadela Baleia e um papagaio que, no auge do desespero, é sacrificado para alimentar a família.
A família camponesa é submetida às mais duras condições de trabalho, impostas pelo latifundiário, grande criador de gado na região. A semifeudalidade e o coronelismo imperam naquelas terras e, no momento do acerto de contas com o patrão, Fabiano fica com muito menos que calculara nas complicadas contas sob sua cabeleira ruiva. Roubado pelo latifundiário, Fabiano explode em confusa revolta.

Retrato feito por Candido Portinari
Fabiano busca afogar suas mágoas na aguardente e no carteado. Após uma festa religiosa local onde levou toda a sua família, o camponês é preso e espancado. Suas crenças e seu respeito temeroso pelas figuras do latifúndio e do velho Estado semifeudal, representadas pelo "Soldado Amarelo" que lhe prendera, se dissipam pouco a pouco, convertendo-se em um ódio cada vez mais consciente.
O capítulo 9 pode ser considerado o mais emocionante da obra, nele a cadela Baleia, que tanta alegria e préstimos proporcionou à família, contrai hidrofobia (raiva). Cai-lhe o pelo, fica magérrima e com o corpo cheio de chagas. Fabiano resolve matá-la, temendo que passe a doença aos filhos.
Latifúndio: inimigo comum
Ao longo do romance, são apresentados vários fatores que conspiram para a separação e degradação da família: a incomunicabilidade familiar, a incompreensão entre pais e filhos, a impotência do homem diante da realidade dura e desafiadora a sugerir destruição e morte, reduzindo as aspirações à possibilidade de sobrevivência.
Naquele período ainda era incipiente a organização dos camponeses em nosso país. Os povos do mundo travavam batalhas de morte contra o fascismo e a III Internacional Comunista já apontava no célebre discurso de G. Dimitrov ao seu VII Congresso a necessidade de os comunistas e revolucionários buscarem estudar e organizar a luta dos camponeses no nordeste brasileiro como grande força para a luta antifeudal e antiimperialista. No entanto, estes apontamentos não foram profundamente estudados e compreendidos pelos revolucionários brasileiros à época.
Com o passar dos anos muita coisa se desenvolveu na organização dos camponeses. Muito chão foi retomado do latifúndio e colocado na mão de quem verdadeiramente trabalha. Grandes passos foram dados e inúmeras batalhas se avizinham.
O leitor que se debruçar sobre o texto de Graciliano Ramos, sem dúvida alguma, assemelhará o Soldado Amarelo ao atual Estado brasileiro burocrático e atrasado, além de perceber que as vidas ainda são secas, porém esperançosas.
Do livro à "tela grande"
O cineasta Nélson Pereira dos Santos reproduziu com grande zelo a história da família de retirantes nordestinos retratados no clássico de Graciliano. Até hoje o filme é considerado por especialistas como uma das melhores adaptações de roteiro literário para o cinema brasileiro.
Logo de início, traziauma mensagem de que não se tratava de uma ficção, mas de uma realidade vivida por milhares de camponeses em relação aos flagelos da seca e da opressão do sistema latifundiário. Por isso, junto à obra de Glauber Rocha, também conquistou espaço como filme de crítica social na época do Cinema Novo.
Essa obra cinematográfica de grande qualidade pode ser considerada um complemento à obra de Graciliano. Sem sombra de dúvidas, Nélson Pereira dos Santos merece todos os méritos pelo trabalho que fez. Existem milhares de adaptações que pouco ou nada têm a dizer sobre as obras literárias em que foram baseadas. Vidas Secas é, realmente, uma exceção.
O filme é também genial não somente por conseguir transcrever de forma tão viva uma obra literária para a linguagem do cinema, mas também pela apurada técnica utilizada nas filmagens. A fotografia, em preto e branco, é realizada com brilhantismo e a abundância de luz, dá dimensão de um calor abrasador que chega a deixar o espectador com a garganta seca.
Encontrar Vidas Secas em locadoras ou lojas especializadas não é tarefa das mais fáceis. Fora de catálogo há algum tempo, coube ao empenho de colecionadores e admiradores desta obra reproduzi-lo e exibi-lo em círculos literários e eventos do movimento popular. Foi justamente através de uma destas ocasiões que no ano de 2006 houve uma atividade promovida pela Escola Popular Orocílio Martins Gonçalves, em Belo Horizonte, quando dezenas de operários assistiram e debateram o filme Vidas Secas. Certamente era a estes operários, aos camponeses, aos sertanejos e à gente simples de nosso país que o mestre "Graça" queria remeter sua obra.