Um dos artistas mais importantes do país, Xangai se declara na verdade um arteiro no sentido de ser um artesão da música, assim como outros nomes da cultura brasileira. Sincero e consciente da realidade que a música popular brasileira vive, com o massacre do monopólio dos meios de comunicação e seus modismos descartáveis, Xangai segue seu caminho fazendo aquilo que chama de "dádiva de labutar com a arte", com um público fiel e que se soma a cada dia, em uma espécie de guerrilha cultural.
Baiano de Vitória da Conquista, Eugênio Avelino, popularmente conhecido como Xangai, costuma dizer que começou sua carreira antes mesmo de nascer, por acreditar que esse dom de trabalhar com arte popular já estava com ele quando veio ao mundo.
— Sou de um berço de tocadores de sanfona, mas não foi isso que me fez artista, porque tenho plena consciência de que esse dom já estava comigo, apenas, cada vez mais, venho buscando apurar, melhorar meu envolvimento com a música, a poesia — esclarece.
— Canto desde criancinha e por isso gosto de afirmar que não comecei minha carreira quando gravei meu primeiro disco, como muitos me perguntam. Até porque não é isso que dá o "pontapé inicial" na carreira de alguém, e geralmente para se chegar a gravar um disco é preciso trabalhar muito antes. Artistas como Clementina de Jesus e Cartola, por exemplo, vieram a gravar seus discos com mais de 60 anos de idade, e eles não começaram suas carreiras aí — comenta.
Para Xangai também existe a questão da oportunidade, que não é igual para todos, já que os meios de comunicação e as grandes gravadoras de capital estrangeiro, que dominam o mercado, não dão espaço para artistas que trabalham com a música popular cultural brasileira, que é o seu caso e de muitos outros. Ele acredita que existe uma espécie de censura contra essa música.
— Todos nós é que deveríamos e devemos nos unir e fazer uma censura contra esses meios de comunicação podres que estão aí. Eles boicotam a cultura brasileira, e o boicote é uma censura. Então temos um profissionalismo marrom, com uma censura marrom, nojenta e "chumbosa", porque na comunicação do país vivemos um período de "anos de chumbo" — fala.
É muito difícil para o povo, segundo Xangai, diferenciar a arte daquilo que é feito para vender somente, sem valor cultural, por causa do massacre que sofrem constantemente pela mídia.
— Ela consegue através da massificação, da repetição, fazer com que o povo seja uma presa fácil, porquanto o país nunca se preocupou deveras com a educação, de uma forma ampla, a escolaridade, o que faz com que o povo se torne vulnerável nas mãos desses antipatriotas que dominam esses meios de comunicação indecorosos — afirma.
— Diante desse massacre, o povo aceita, muitas vezes, sem saber porque, aquilo que é imposto pela mídia. Mas eu e uma pequena casta de artistas, que nem chamo de artistas e sim de arteiros, no sentido de artesão, continuamos a atuar e temos o melhor público do país, qualitativamente falando. São pessoas que vêm se somando, como uma guerrilha cultural, e que não "arredam pé", não se deixam enganar facilmente pelo "canto das pseudo-sereias" que está sendo mostrado a todo instante — acrescenta.
— E esse público só permanece fiel por causa da força que a música brasileira tem. Cada dia que passa a nossa música é melhor, e paradoxalmente, o que chamam de música, apresentada nas rádios, nas televisões, nos jornais e revistas, está pior, podre — continua.
Xangai diz que não se pode mudar Paulinho da Viola, Renato Teixeira, Elomar e tantos outros "arteiros".
— São pessoas que têm força independente da mídia. Ela não pode alterar jamais a personalidade, a inspiração, a consciência desses "arteiros" maravilhosos que existem no Brasil — fala.
Mas a luta é grande. Segundo conta, as gravadoras brasileiras que investem na boa música, como a Kuarup, que distribui seus CDs, a Biscoito Fino, entre outras, enfrentam dificuldades de sobrevivência.
As farsas e as músicas de qualidade
Xangai encontra em seu cotidiano, na vida do povo, nos aspectos da sociedade em que vive, inspiração para compor.
— Minhas cantigas são de cunho social, e retratam a minha aldeia, aquilo que conheço e me identifico, porque gosto de falar a respeito do ambiente que tenho conhecimento, das situações do ser humano a minha volta — explica.
Ele não gosta de rotular que tipo de música canta ou qual o gênero, porque, segundo diz, o que importa é que tenha qualidade.
— Toda música é simplesmente música, que pode ser boa ou ruim. Então quando alguém me pergunta qual o gênero que eu canto, digo que canto qualquer uma música bonita, não essa "fuleragem" que apresentam por aí na mídia, entre pagodes, axés e "breganejos" — fala.
Ele observa que o monopólio "martela" uma música na cabeça do povo, que de tanto ouvir acaba cantando, e então se diz que essa música é popular porque está na boca do povo, ocultando que na verdade o povo está cantando porque foi massacrado e não lhe restou outra opção.
— Qualquer borra-botas grava umas porcarias e diz que está fazendo cultura, porque é assim que o país está vivendo. Basta que ele se apresente em uns desses programas medíocres da televisão e cante essa bobagem, balançando o traseiro, mostrado a calçola ou imitando os cowboys, para virar, pela mídia, o sucesso do momento, e saírem apregoando que se trata de música popular brasileira — comenta.
— Por isso nem gosto de dizer que estou fazendo cultura, para não ser confundido com os tais, mas sim que trabalho as tradições populares do meu povo, a música de qualidade, que representa o povo. É dessa música que eu gosto de falar, da outra, que está na mídia, não sou responsável — diz.
— Não posso chamar essa porcaria que está aí na mídia de popular. É uma grande farsa, uma história mentirosa. São esses meios de comunicação indecorosos que temos, que provocam essa situação em que porcaria é considerada cultura, e fazem as pessoas "embarcarem nessa", por não terem acesso a outras coisas. Para mim, a alternativa é educar o povo e estou todos os dias tentando, através do meu trabalho — continua.
Mesmo diante de uma situação dessas, artistas brasileiros do tipo de Xangai encontram facilidade para continuar trabalhando, com apresentações em várias partes do país e no exterior.
— Somos de uma linhagem de resistentes, e essa resistência vem da força que temos, juntamente com a que tem a nossa música. Não paro de trabalhar, faço show quase todos os dias aqui na Bahia e em outras partes do nordeste. Em novembro participarei do festival Farroupilha, onde estou sendo homenageado, e no mesmo mês estarei viajando para a Inglaterra — fala.
— Em todo lugar que chego, seja Paraná, Santa Catarina ou no Acre, o povo me recebe com carinho e eu sei que isso é por causa da qualidade do trabalho que desenvolvo, o que me dá mais ânimo para continuar. E isso não é só comigo, mas também com outros "arteiros". Já esses que são feitos pela mídia, somem em pouco tempo, e até desistem das suas carreiras, porque a própria mídia que os faz não está nem aí para eles, pensa somente nos seus interesses — acrescenta.
— Essas pessoas que são "os cabeças" da mídia não têm coração, mas nós e o nosso público temos, e a responsabilidade de dar o melhor para o povo é muito grande. O meu papel é não deixar a peteca cair, e para mim não é um grande sacrifício, porque venho construindo ao longo da minha trajetória uma carreira firme. Como qualquer brasileiro que tem dignidade, mas não ganha muito, tenho dificuldades para pagar minhas contas. Já aconteceu da empresa elétrica, por exemplo, vir aqui cortar a minha luz, mas depois eu consegui pagar, sempre trabalhando — continua.
Não falta comida em sua casa e cuidados para os seus filhos, segundo afirma, mas nunca está com dinheiro sobrando. Porém se declara um homem feliz, por nunca ter se vendido ou se deixado modificar pelos modismos.
— Não sou esse valentão todo (risos), também não sou covarde. Simplesmente tenho sensibilidade, responsabilidade com a arte e o povo, e amor no coração pelo meu semelhante, porque não basta cantar, mas sim o que cantar. Uma música bonita, um bom texto, que possa ajudar o meu semelhante a evoluir e a mim mesmo. Essa responsabilidade é que me encanta e não me deixa parar — confessa.
Disco romântico
Xangai está preparando um disco, com Mário Hulha, violonista costarriquenho, considerado um dos melhores do mundo, só com músicas românticas.
— São clássicos de Vicente Celestino, Dorival Caymi, Lupicínio Rodrigues, Noel Rosa, Waldick Soriano, e outros. Creio que ficará lindíssimo, romântico, de qualidade.
No arco das possibilidades, gosto de utilizar todos os compartimentos que eu posso, ou seja, a versatilidade me conduz a andar de um extremo a outro da boa música, cantando de ópera à música caipira, passando por travas-língua e músicas nordestinas — conta.
— E a música romântica também está no meu coração. Minha mãe cantava, muito lindo, coisas românticas, e eu cresci ouvindo isso. No ano passado Waldick Soriano comemorou seu aniversário em minha casa, saímos cantando músicas românticas pelo interior da Bahia e ninguém pode imaginar o quanto o povo amou. De "mamando a caducando" todos aplaudiram esse artista — comenta.
Além da distribuição pela Kuarup, Xangai vende seus CDs pessoalmente depois dos seus shows.
— Levo um punhadinho de discos para os lugares que me apresento, porque é uma boa maneira de nos ajudar a ir sobrevivendo e ao mesmo tempo não deixar as pessoas no desejo de ter uma lembrança nossa. Só por esse motivo ainda vale a pena gravar um disco, porque não tenho ilusão nenhuma de que vou ganhar o prêmio do disco que vendeu milhões, apesar da nossa música ter conhecimento em todo o mundo — diz.
— Nas vezes que eu estive em Cuba, na Martinica, na Guiana Francesa, no Peru, na Argentina, na França e outros lugares, fui sempre muito bem recebido e vi as pessoas saírem cantando. Isso porque a música que fazemos é de altíssima qualidade, e povo é povo em toda parte, e o que é bom aqui também é bom lá fora — afirma.
— Se alguém chegar em um lugar qualquer da África, da Europa ou no meio de uma tribo de índios na Amazônia, pegar seu instrumento e tocar uma música de qualidade, mesmo que ninguém saiba falar uma só palavra no seu idioma, irão gostar, porque, a sociedade é diferente, mas a essência é a mesma, e quando a coisa é bela todo o ser humano aprecia — finaliza Xangai.