Como o governo, com a sua política social para Copacabana, trata os negligenciados pelo Estado
Foto: Aristeu Barbosa
Uma tarde de setembro meio cinzenta, como tantas outras em Copacabana, naquele mês. Automóveis passam rápido pela avenida Nossa Senhora do-mesmo-nome, pedestres são guiados pelo abre-e-fecha dos semáforos. Outros, já menos pedestres, aposentados, jogam cartas e lêem jornais na praça Serzedelo Correia.
Um casal está sentado num dos bancos da praça, cercada por grades e regras de conduta 1, inclusive pelo horário de funcionamento (das 6h às 19h), revelando que o tempo do desfrutar democrático do patrimônio público há muito foi perdido. Chorando, a mulher conta passagens da sua vida e a de seu companheiro, cheias de maus-tratos por parte dos agentes dos serviços de controle social: “Em Niterói, três caras chegaram chutando ele e gritando para ele sair e me deixar sozinha. Disseram que iriam botar fogo nele se não fosse embora. Foi horrível.” Nesse momento, o homem intervém: “Falei que não ia embora. Abracei ela e disse que, se quisessem queimar, iam ter de queimar os dois.” Esse casal vive nas ruas do bairro. Costumam dormir nas areias da praia.
“José”, 36 anos, segura um saco plástico preto onde guarda latas vazias de refrigerante e o cobertor que os protege nas noites mais frias. Ele e sua mulher, “Neusa” 2, 50 anos, estão nas ruas há cinco meses. Vivem na corda bamba de uma existência sofrida. De vez em quando, vendem chicletes e recolhem latas. Têm sorte de contar com a solidariedade de alguns: “Uma vez, uma menina nos deu uma quentinha. Outra nos deu pão de queijo”, lembra Neusa.
Projeto do Primeiro Mundo opressor
Porém, o mesmo sentimento solidário parece não fazer parte da atitude dos representantes do poder público. O casal contou um pouco dos métodos nada humanos usados por guardas municipais na Operação Zona Sul Legal — uma espécie de versão carioca da filosofia Tolerância Zero 3: “Eles levaram minhas coisas: roupas, um cesto, os chicletes que vendo, tudo!”, conta Neusa, deixando cair mais algumas lágrimas.
Ao que se pode depreender de uma notícia veiculada na imprensa do imperialismo (que em geral se limita a emitir números frios sobre o montante dos negligenciados recolhidos pelas operações), o tratamento não é novidade entre os desabrigados e outros trabalhadores: “Sou trabalhadora, fui roubada e ainda me tratam assim”, reclamou a ambulante Janaína da Silva, 28. Ela disse que a mercadoria que havia comprado para vender foi tomada por soldados da Guarda Municipal (Folha de São Paulo, 29/6/2003).
A chamada Operação Zona Sul Legal vem sendo posta em prática desde junho deste ano. Os governos estadual e municipal se uniram para implementar o que chamam de atendimento — bem ao estilo dos remendos e do verniz que o sistema imperialista manda providenciar, expediente de que se serve para afirmar que combate a miséria produzida por ele próprio, a cada dia e com mais avidez.
Órgãos como as polícias Civil e Militar, Guarda Municipal, Juizado de Menores, Fundação da Infância e da Adolescência (FIA), Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICE), Fundação Leão XIII e outros — enfim, administração indireta, ONGs, diretas, etc. —, todos são mobilizados nas operações. Além dos desabrigados, também estão na mira do programa camelôs, crianças e adolescentes abandonados, além de prostitutas pobres.
Identificados e fichados
No caso dos “moradores de rua” (segundo uma dessas expressões que figuram no glossário cínico dos tecnoburocratas) o que ocorre é mais ou menos o seguinte: os guardas municipais e os policiais recolhem as pessoas (com a “delicadeza” de praxe); em seguida, colocam num ônibus e levam para abrigos das administrações municipal ou estadual. Em tais locais são identificados (recebem documentos, como carteira de identidade e CPF — Cadastro de Pessoas Físicas. Quer dizer, o mendigo está fichado no sistema de informações do Imposto de Renda), recebem algum tratamento médico e psicológico (?) que os gestores do programa julguem necessário, etc. Nem mesmo em tese esse processo pode aparentar eficácia, mas a realidade expõe feridas que comprometem ainda mais a tão decantada assistência social.
Em uma das unidades da Fundação Leão XIII (ligada à administração estadual), é fácil notar certas precariedades dividindo o espaço com os profissionais que procuram fazer o possível. No Centro de Triagem, em Bonsucesso, chega boa parte da população recolhida. É um prédio velho, sem instalações condizentes. Num corredor de ladrilhos vermelhos e portas bege, envelhecidas, uma cena triste: um senhor trêmulo, aparentando ter problemas mentais, ouve os apelos de duas assistentes. “Vem com a gente. Vamos até onde o senhor falou que mora aquela sua tia. Ela vai dizer onde o senhor morava. A gente quer levar o senhor de volta para sua casa”, fala uma delas. O senhor balbucia o nome de Campina Grande, na Paraíba, sua terra natal e conclui: “É muito longe.” As assistentes buscam esclarecer: “Não. É em Campo Grande (Zona Oeste), onde o senhor ficou quando veio do Nordeste.” (!?)
É nesse local que os desabrigados devem receber os primeiros cuidados para serem, em seguida, encaminhados para outros abrigos espalhados pela cidade, o que nem sempre acontece porque “Transferimos só quando há vagas. Mas faltam leitos e a maioria que chega volta às ruas logo em seguida”, admite a diretora da área social do Centro de Triagem, Liana Vitória Duarte. Muitos também não se adaptam a uma vida sem a liberdade das ruas ou, pior, sem a perspectiva de um emprego, de uma melhora efetiva. “Não podemos obrigar ninguém a ficar. Não temos poder de polícia”, conta Liana.
Ineficácia completa
Há quem aparente estar mais tranquilo no albergue, que acolhia 89 homens e 30 mulheres no dia em que apuramos as informações, 27 de agosto. É o caso de Lindalva Gomes da Silva, uma senhora de 53 anos (aparentando bem mais) que esmolava nas ruas do Leblon, até ser recolhida numa madrugada de sábado pela Operação Zona Sul Legal. “Se der para ficar aqui, vai ser bom. Não tem aborrecimento. Na rua a vida era difícil. Aqui tomo banho todo dia”, diz Dona Lindalva, sentada dos bancos de madeira onde outros idosos ficam para assistir à TV. Ela contou que perdeu sua casa em Santa Cruz, Zona Oeste, e que não tem vontade de voltar para o bairro. Embora se diga satisfeita, um dos destinos prováveis de Dona Lindalva parece não agradá-la muito: “Não sei para onde vou, mas para a Fazenda Modelo não quero ir. Aquilo lá não presta”. Idosos como ela são mandados, em geral, para essa unidade da Fundação Leão XIII, em Guaratiba (Zona Oeste).
Perguntada se aprovava, como assistente social, a maneira como os moradores são recolhidos, a diretora Liana não respondeu diretamente, mas revelando uma preocupação entre as agruras profissionais, diante de uma outra pergunta, responde tímida: “A questão é estrutural. Não basta recolher. Temos que dar trabalho remunerado, habitação, saúde… Distribuir renda…”
Mas a lógica social do governo parece determinada, antes de tudo, a não levar em conta os interesses ou entender as necessidades dos recolhidos: “Chegamos lá e disseram que eu iria para a Rua da Alfândega e ela para a Praça da Bandeira. Queriam nos separar. Não aceitei e fomos embora”, diz José. “A gente até ficaria se nos deixassem juntos”, conta Neusa. “Mas não dão oportunidade, não dão emprego. Se dessem oportunidade…”, completa. Além disso, um tratamento diferenciado provavelmente não está em pauta: “Colocaram a gente junto com uns cheiradores (usuários de cocaína). E eu nem uso tóxico. Aquela desgraça (o abrigo) parece uma prisão!”, relata Neusa, emocionada.
A ineficácia da Operação não causa espanto em quem vive ou trabalha nas imediações da Praça Serzedelo Correia. A própria tática do governo de varrer a “sujeira” para baixo dos tapetes não surte efeito. Aos desabrigados não se presta socorro exatamente: tratados, no mínimo, como infratores, eles entram nos veículos que recolhem os excedentes da exploração do homem por todo o bairro porque, afinal, atrapalham o comércio, desagradam os turistas. Assim, deixam para trás sua vaga na calçada (e a concorrência é grande), o ponto de referência, o cão que os protege, o transeunte que ajuda, e tudo o que permite mantê-los vivos por mais um dia. Fica a falsa idéia de que não precisam mais da ajuda dos vizinhos menos oprimidos e que por ali não regressarão — a menos que prefiram a miséria como resposta à abnegação e ao desprendimento das autoridades…
“Essa Operação não adianta nada. O número de mendigos só vem aumentando”, constata o senhor Portela, português proprietário de um bar nas imediações da praça: “A própria igreja do bairro até deixou de dar o sopão aos pobres. É muita gente para pouca comida”, conta. Um outro comerciante, que pediu para não ser identificado, disse que os desabrigados são conhecidos e vêm sempre pedir alguma coisa. “Assim, eles preferem ficar por aqui mesmo, né? Melhor do que ir para um abrigo onde, às vezes, nem comer direito podem”, opina.
A noite já ia caindo. Do lado de fora da praça, meninos cheiravam cola. Um senhor sem braços e sem camisa caminha sem pretender ir a lugar algum, parece. Uma família acaba de sentar em frente a um ponto de táxi. Um rapaz de boné “descola” um sanduíche num bar. E a cidade permanece em seu movimento hipnótico. Neusa fala e, pela última vez, chora um pouco mais: “Aqui é muito difícil. Não quero mais essa vida de ter de ficar um dormindo e outro acordado, vigiando. Assim vou ter de ‘charcar'. O senhor sabe o que é ‘charcar'? É chegar para a pessoa e pedir um trocado, um prato de comida.”
Apertos de mão, últimos sorrisos. Para trás fica a imagem de seres humanos aviltados por um sistema social que vive seus estertores. E também a forte impressão de que, naquele outrora bairro chique, os que vivem apenas de seus privilégios não têm sequer um pingo da humanidade revelada por aquele casal negligenciado, lá no banco da praça.
1 Uma placa avisa: “Cachorro com coleira, somente travessia. Proibido andar de bicicleta, exceto menores de 10 anos. Proibida a passagem e permanência de vendedores ambulantes.”
2 Os nomes são fictícios para preservar o casal. Por serem identificados e fichados ao serem recolhidos (José me contou que tiraram até fotos de três lados, à moda do que é feito nas delegacias), podem sofrer represálias caso sejam reconhecidos.
3 O conceito “tolerância zero” foi lançado pelo ex-prefeito de Nova Iorque, Rudolph Giuliani. Em linhas gerais, consiste no combate a todos os tipos de delitos, desde os mais simples, através da inflexibilidade total com a criminalidade, aliada à presença ostensiva da polícia nas ruas— tudo para satisfazer a classe média das áreas nobres. Na prática, os problemas não são resolvidos e o saldo de brutalidade e abuso de autoridade fica como herança. Da mesma forma, a adaptação dos modelos responde a várias imposições estrangeiras e conveniências internas — até mesmo expressões como sem-teto (traduzida de homless), ao invés de negligenciados, por exemplo, porque não corre o risco de revelar o caráter da pobreza e de denunciar o seu responsável.