Está acabado. Desde o início de dezembro, a Síria se encontra sob o poder de “rebeldes”, com destaque os salafistas do Hay’at Tahrir al-Sham – HTS (Organização para Libertação do Levante) e Assad volta aos seus ofícios médicos na segurança de Moscou. A República Árabe da Síria com sua tricolor alvo-rubro-negra é uma ficção tremulante nas embaixadas e mesmo na Rússia já vem sendo substituída pela tricolor oposicionista. Ainda não sabemos que forma tomará a nova Síria: Emirado, República Islâmica, Federação ou simplesmente, o que é mais provável, uma colcha de retalhos de senhores de guerras divididos entre linhas sectárias ou linhas de crédito estrangeira incapaz de retirar as forças turcas, israelenses e ianques do país. E essa incerteza, por mais que esteja inserida numa situação desfavorável para o Eixo da Resistência, não esteriliza sua possibilidade de atuação na Síria. A prova disso é que Israel segue, mesmo após a derrubada de Assad, bombardeando depósitos de armas, bases aéreas e infraestrutura síria em posse do Governo de Salvação Sírio.
O gato escaldado tem medo de água fria e a águia careca teme jihadistas poderosos. Sim, eles foram necessários para primeira parte do plano que era sangrar o regime sírio, obstruir a logística do Eixo da Resistência e isolar a Rússia e o Irã no Oriente Médio, mas e a partir daí?
Os grupos armados na Siria
Concomitante ao enfrentamento com Assad, antes mesmo do colapso de Aleppo, contando com o apoio aéreo turco e o Governo Interino Sírio (proxy turco) e o Governo de Salvação Sírio (liderado pelo HTS) avançaram para seu próprio objetivo em comum com Ancara: combater o enclave curdo (a chamada Forças Democráticas da Síria) no nordeste da Síria, que por sua vez também aproveitava do colapso de Assad para expandir a área sob seu controle. Ainda que ambas as facções sirvam ao objetivo estadunidense principal na Síria: derrotar Assad e aquilo que está por trás dele, à nível local e regional elas divergem entre si e não é interesse estadunidense se desfazer de qualquer dos seus proxies. No Iraque, o Curdistão Iraquiano é o maior aliado estadunidense; ao cabo que no Oriente Médio em geral, a Turquia se apresenta como sátrapa ideal para o império declinante ianque que busca reduzir seu pessoal na região. A tendência é que lavem as mãos enquanto os curdos sofram um novo massacre, mas tudo ainda está em jogo.
Por sua vez, o HTS – devido à sua própria origem na Al Qaeda e incluindo ex-membros do Estado Islâmico – inflama o sentimento jihadista para arregimentar forças ao seu projeto de emirado dentro do palatável Governo de Salvação Sírio, onde é ocupa a posição principal. Mesmo que seus dirigentes tenham sucumbido ao pragmatismo de proxy, buscando se apresentar como uma oposição “moderada” participante de um governo civil; suas bases, amplas massas fanatizadas em posses de armas modernas, inclusive drones, podem se virar contra os imperialistas que a financiaram. Já circulam na Internet manifestações díspares no seio dos militantes jihadistas, desde convites à Israel para investir na Síria e a fala de Abu Mohamed Al-Julani “A Síria não entrará em uma nova guerra com Israel. O país não está pronto para outra guerra” que também aponta o Hezbollah como maior problema a ter que lidar; até falas agitadas prometendo libertar Al Quds/Jerusalém da parte de jihadistas.
Afora que a Oposição Síria conta com 5 frentes de organizações armadas: o Governo de Salvação Nacional do HTS, o Exército Nacional Sírio/Governo Interino Sírio proxies da Turquia, o Exército Livre da Síria baseado na base militar estadunidense de Al Tanf, as Forças Democráticas Sírias composta pelo grupos curdos e seus aliados; a misteriosa Sala de Operações do Sul1, uma frente de forças árabes, islâmica e drusas2, recém publicizada (no dia 6 de dezembro) que desferiu o golpe final à Assad capturando a capital Damasco e ainda os remanescentes do Estado Islâmico que perduram nas áreas desérticas do leste. Buscando como paralelo a situação após a queda de Khadafi na Líbia, de Siad Barré na Somália e o fim da República Democrática Afegã, é bem provável que a Oposição Síria se desentenda entre si e se rompa em facções fortemente armadas.
Israel e as suas contradições particulares
Israel, cuja condição é débil desde o inicio da Tempestade em Al Aqsa, não demorou a ampliar sua área de domínio terrestre sobre a Síria a partir das previamente ocupadas Colinas de Golã e bombardear alvos em posse das forças da Oposição Síria. Ainda que tenha apoiado tacitamente a Oposição Síria e publicamente celebre a derrota de Assad, Israel bem sabe que a Síria destruída é uma faca de dois gumes. Se Assad hesitava tomar ações anti-israelenses mais contundentes, pois temia pelo seu governo combalido, as milícias jihadistas ainda bem fluídas sem muitos alvos imóveis e reconhecimento internacional teriam bem menos a perder ao atacar Israel. Vide o caso do Irã e dos seus aliados no Líbano, Iêmen e Iraque, enquanto o primeiro mesmo atacando Israel tomou precauções (enviando apenas pequenas amostras de seu potencial bélico) e medidas diplomáticas para conter uma escalada militar, o Hezbollah, o Ansarullah e as Forças de Mobilização do Iraque operam com muito mais liberdade.
Inclusive a decisão de Israel em se expandir no território sírio a partir das Colinas Golã se relaciona à presente insegurança. Devido a sua localização estratégica (como denota são “colinas”, pontos elevados) Israel não pretende em hipótese alguma renunciar a sua ocupação ilegal como ainda, haja visto que já instalou colonos na área, e por isso expande para seu entorno para favorecer sua defesa da área. O vetor de sua ofensiva que acompanha a fronteira sírio-libanesa e se direciona à capital Damasco, ainda que não pareça ocupá-la ainda comprova um segundo objetivo: isolar o Vale do Bekka da Síria e assim privar o Hezbollah de uma de suas fontes de suprimentos e espaço de manobra. Além claro de sua ocupação apesar de ser declaradamente temporária, condizer com o programa expansionista da extrema-direita sionista nunca escondeu seu desejo de criar o Eretz Israel (ou Inclusive a decisão de Israel em se expandir no território sírio a partir das Colinas Golã se relaciona à presente insegurança. Devido a sua localização estratégica (como denota são “colinas”, pontos elevados) Israel não pretende em hipótese alguma renunciar a sua ocupação ilegal como ainda, haja visto que já instalou colonos na área, e por isso expande para seu entorno para favorecer sua defesa da área. O vetor de sua ofensiva que acompanha a fronteira sírio-libanesa e se direciona à capital Damasco, ainda que não pareça ocupá-la ainda comprova um segundo objetivo: isolar o Vale do Bekka da Síria e assim privar o Hezbollah de uma de suas fontes de suprimentos e espaço de manobra. Além claro de sua ocupação apesar de ser declaradamente temporária, condizer com o programa expansionista da extrema-direita sionista nunca escondeu seu desejo de criar o Eretz Israel (ou “Grande Israel” em hebraico, nome da doutrina expansionista israelense se propõe a anexação de todas as áreas entre o Nilo e o Eufrates)
sob os escombros dos Estados levantinos.
Ao contrário dos EUA que está há dezenas de milhares de quilômetros de distância do Levante e da Turquia que além de boas relações com HTS possui uma zona tampão (oficialmente chamado de Governo Interino da Síria) ao norte da Síria, Israel está a poucos quilômetros da Síria Jihadista e que por trás dela a Turquia de Erdogan que almeja ser o sátrapa estadunidense do Oriente Médio concorrendo com Israel. Aliás, a Turquia de Erdogan é a grande beneficiada do avanço do HTS e dos demais grupos rebeldes, pois enfraqueceu a Síria, atrapalhou os planos do Irã e seus aliados, isolou os curdos e dividiu as atenções antes destinadas exclusivamente para a Palestina, diminuindo a pressão sobre Erdogan para que tome uma atitude de facto condizente com uma potência.
Um erro comum ao analisar a geopolítica é desconsiderar a relativa autonomia dos semicolônias e proxies aos seus amos. Israel, mesmo sendo a ponta de lança do imperialismo ianque no Oriente Médio, teme a ascensão de qualquer potência regional que mais tarde possa desafiá-lo, ainda que aliada aos EUA. Israel sabe que nenhum país do Oriente Médio o defende por princípio, mas pelas circunstâncias que lhes são custosas na opinião pública. Ao mesmo tempo, Israel se mostrou não ser suficiente (embora extremamente necessário, sendo principal base ianque na região) para disciplinar as massas incandescentes do Oriente Médio. Ao fim, Turquia e Israel disputam o posto de lugar tenente estadunidense. Não seria de estranhar o surgimento de um aprofundamento das relações curdo-israelense no escalar da guerra Síria.
O problema é que a entidade sionista em sua ocupação “preventiva” do sul sírio empurra as facções sírias para uma situação complicada frente ao seu próprio povo e aos grupos armados que o compõem. É imperativo para a legitimidade do novo regime que se responsabilize pelas afrontas à integridade territorial do país: sejam turcas, israelenses, curdas e estadunidenses. Se furtar a responder às provocações pode condenar o arranjo de forças em torno do governo provisório e desiludir a parcela das massas que ainda celebram mais a queda de Assad que a ascensão de sua oposição.
Tudo isso reforça a convicção que a vitória total da Oposição Síria sobre a República Árabe da Síria não foi combinada entre todas as potências que a sustentaram, mas inesperada até se tornar óbvia (menos de uma semana). O cenário ideal para os EUA e Israel seria um esfacelamento da Síria que ainda preservasse enclaves de Assad que forçasse a Rússia e o Eixo da Resistência a se envolver e, dependendo do arranjo interno entre as facções sírias, essa pode ser uma futura possibilidade dado a possibilidade de instrumentalizar as divisões étnico-culturais na Síria. A diversidade nunca foi um problema na Ummah3, ao contrário dos ocidentais com suas noções tribais/étnicas de nacionalidade, mas conforme tratado no último texto vem principalmente os salafistas tem um péssima tradição de servir a esses propósitos.
Os ex-aliados de Assad
A própria Rússia garantidora do governo de Assad por décadas, vendo-o colapsar incapaz de conter a sangria, não tardou em negociar com os rebeldes esperando manter suas bases militares na região, o que é mais importante que a cor da bandeira que tremula em sua embaixada. Decerto ela perdeu um apoio importante na região, mas até o momento o HTS não ousou interferir em suas bases, então a situação é tolerável.
No Eixo da Resistência às reações não foram unânimes, dada a próxima heterogeneidade de suas forças que há muito transcenderam o “bloco xiita” iraniano, para buscar a constituição de uma frente antiimperialista. Sobre essa iniciativa possui mérito o Irã, que praticou uma política de apoio ampla aos movimentos de resistência da região e não apenas seus correligionários e, principalmente, a Operação de Al-Aqsa, que forçou a polarização das forças que praticam resistência em algum nível a se nuclearem contra Israel – assim a posição frente a Guerra Civil Síria foi secundarizada.
O Hamas, partido muçulmano sunita e oriundo da Irmandade Muçulmana e apoiado pelo Catar, não tardou a parabenizar a Oposição Síria pela vitória sobre Assad, fazendo votos(implícita cobrança) para que Síria prossiga: “seu papel histórico e fundamental no apoio ao povo palestino”. O Jihad Islâmica, também sunita porém mais simpática ao Irã, assim como o Ansar Allah(Houthis) de credo xiita tem mais dificuldade em simpatizar com o HTS e a oposição Síria em geral, mas tacitamente reconhecem sua vitória e reforça a cobrança do Hamas a solidariedade à causa Palestina e à integridade territorial Síria violada por Israel.
O Irã, o Hezbollah e as Forças de Mobilização Popular a princípio manifestaram apoio a com Assad prometendo apoio ao seu governo contra o HTS já contiveram do afã inicial, ao menos recuaram de sua pretensão de se meter no atoleiro sírio. Alguns poderiam considerar uma traição a Assad, mas os objetivos estratégicos do Eixo da Resistência seguem coerentes. Ceder à provocação de entrar em mais uma guerra sectária em um momento de fortalecimento da frente internacional pró-Palestina levaria a um regresso de décadas na costura iraniana de alianças que vem buscando melhorar sua relação com as monarquias de no Golfo e caminhar para negociações no Iêmen. Da mesma forma em 2021 quando surgiram confrontos entre o recém nascido Emirado Islâmico do Afeganistão e o Irã, este procedeu por desescalar o conflito e evitar que seus proxies atuantes entre a população xiita afegã, temerosa com o sunismo oficial Talibã, complicasse ainda mais sua situação.
Sem desconsiderar o papel mercenário assumido pelas forças de Oposição a Síria, contudo sem escalonar o conflito e ainda permitir uma margem de negociação/colaboração caminham últimas colocações do Líder Supremo da Revolução Iraniana, o aiatolá Ali Khamenei. Por um lado, ele apela à continuidade das relações no seio da resistência:”O Irã e a Síria têm uma longa história, e esperamos que nosso relacionamento amigável continue”. Em outra o aiatolá exorta à juventude síria a expulsar a ocupação para defender seu país. Repare que em nenhum momento ele fala em recolocar Assad no poder ou o baathismo, ou toma diretamente partido entre as facções sírias, seja as da Oposição como as demais. Mesmo porque novas forças e cisões e mudanças de lado entre as facções existentes estão em jogo. As próprias massas sírias, embaladas no jihadismo, podem buscar outro caminho.
Ainda há por exemplo a seguinte possibilidade: Frente a existência importantes minorias não sunitas(mas suscetíveis ao discurso salafistas) como alauítas4, drusos, xiitas e cristãos(ortodoxos, maronitas e ortodoxos orientais) que constituem pelo menos 25% da população do país, especialmente na região costeira de Latakia (que se entregou praticamente sem resistência, até para os padrões baixos do regime baathista5 nesta última fase guerra civil) onde estão as duas bases costeiras russas, não seria de todo impossível a formação de uma nova facção facilitada pelos interesses convergentes russos e iranianos.Contudo dificilmente sobre a bandeira do Partido Baath de Assad, que ao contrário de um líder mais obstinado não conclamou a resistência popular, não organizou os exilados/refugiados e não tem usado e nem costurado apoios externos desde sua queda em Damasco6.
Abbas Araqchi, ministro das relações exteriores, externou a surpresa com o rápido colapso do regime de Assad para a Oposição Síria, e apontou a incapacidade das forças armadas sírias como responsáveis pelo acontecimento. Apesar de há menos de um mês controlarem oficialmente a maior parte do país, elas foram incapazes de realizar confrontos simultâneos com a Oposição, responder aos ataques turcos e israelenses nos últimos meses e deter a infiltração em suas próprias linhas que levou a deserções e traições de lado em massa. Indubitavelmente o Eixo da Resistência perdeu rotas e espaço de manobra, mas sem um governo funcional, sem apelo das massas, incapaz de se defender minimamente antes do socorro e cada mais dependente da boa vontade russa, iraniana e o Hezbollah como se mostrou no último mês, realmente Assad não poderia durar muito. Nem mesmo o tempo para seus aliados se mobilizarem em sua defesa.
Eis mais um teste de fogo para o Eixo da Resistência, que não pode mais chorar o leite derramado e terá que refazer seus caminhos, não apenas logísticos, na nova Síria se apoiando em novas forças que decerto surgirão ou irão se alinhar contra Israel e o imperialismo estadunidense,
Esse texto expressa a opinião do autor
Luiz Messeder é professor de Geografia da rede pública, publicou a tradução de “Alma Matinal” em português e habitante das serras. Escreve sobre temas ligados à política internacional e demografia.
Notas:
- Talvez seja o grupo mais misterioso das Forças de Oposição Síria. Surgido no dia 6 de dezembro tem como líder um antigo membro da Oposição Síria que em 2016 com apoio russo retorna à base de Assad recebendo o controle de tropas e territórios. ↩︎
- Grupo etno-religioso minoritário na Síria e Líbano (cerca de 10% da população) de matriz islâmica xiita, contudo com aportes considerados heterodoxos pelo resto do Islã como a crença na reencarnação, identificação de Muhammad, Ali e o califa fatímida(xiita) Al Hakim como manifestações de Deus e culto iniciático, com segredos reservados aos iniciados e sem proselitismo. ↩︎
- O Islã, uma das bases civilizacionais do povo árabe, possui certo ineditismo histórico ao proclamar-se contra o racismo, fornecendo uma das primeiras manifestações de antirracismo explícito documentada em texto religioso. Muhammad em seu Sermão da Despedida: “Nenhum branco é superior ao negro, ou negro superior ao branco”, e também disse: “Vocês devem ouvir e obedecer seus líderes, não importa que sejam pretos com cabeças de (cor de) uva-passa.” [Sahih al-Bukhari, 7142 apud História Islâmica]. Malcom X, em sua viagem à Meca, repara algo parecido entre os islâmicos: “Durante os últimos onze dias aqui no mundo muçulmano, eu tenho comido do mesmo prato, bebido do mesmo copo, e dormido no mesmo tapete – enquanto oro para o mesmo Deus – com irmãos muçulmanos, cujos olhos eram os mais azuis dos azuis, cujo cabelo era o mais louro dos louros, e cuja pele era a mais branca das brancas. E nas palavras e nas ações e nos atos dos muçulmanos brancos, eu senti a mesma sinceridade que senti entre os muçulmanos negros africanos da Nigéria, Sudão e Gana.” ↩︎
- Grupo étnico-religioso que surgiu a partir do Islã Xiita no século IX. Assim como os drusos possuem crenças consideradas heterodoxas para o Islã, particularmente o Islã Sunita predominante no Levante, como o consumo de álcool, leituras esotéricas do Alcorão, reencarnação e ideias de trindade divina. Constituem uma minoria modelo ocupando cargos importantes no governo sírio de Assad, Partido Baath(inclusive Bashar Al-Assad é alauíta), burocracia e forças armadas. ↩︎
- Doutrina de cunho nacionalista, pan-árabe, secularista,anticolonial e “socialista árabe”(não marxista) que se prretendia o iluminismo dos árabes criada na Síria na década de 1940. Alcançou o poder na Síria e Iraque, contudo seus partidos divergiram. ↩︎
- Diferente de seus “primos ideológicos”: o Iraque baathista de líder Saddam Hussein distribuiu armas para a população e cujos seguidores baathistas constituíram uma força importante da resistência iraquiana na primeira década de invasão; e os seguidores de Khadafi na Líbia que mesmo secundários na presente guerra civil ainda possuem uma força armada própria. Ironicamente a Síria pouco fez quando ↩︎