Memória de Rosalindo Souza, cordelista e combatente no Araguaia

Rosalindo Souza, o Mundico. Foto: Reprodução.

Memória de Rosalindo Souza, cordelista e combatente no Araguaia

“(…) Somente quando os revolucionários começarem a escrever que poderá haver literatura revolucionária” – Lu Xun, Literatura de um período revolucionário, 1927.

No mês de abril, as forças democráticas e revolucionárias de nosso país prestam suas singelas homenagens ao heroico contingente de 68 combatentes dirigidos pelo Partido Comunista do Brasil, que se integraram às massas camponesas da região do Bico do Papagaio para iniciar a Guerra Popular, no ano de 1972. Como parte dessa homenagem, trazemos a esta tribuna a memória do combatente Rosalindo Souza (1940-1973) advogado e poeta conhecido como Mundico no Araguaia.

Estudante e advogado do povo

Originário de Itaguassú, na Bahia, Rosalindo iniciou sua militância pelo movimento estudantil no curso de direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), sendo eleito presidente do Centro Acadêmico Rui Barbosa, em 1968. Neste período, é lembrado por ter dirigido a captura de um agente da repressão que vigiava a residência universitária, após a prisão de um companheiro de partido [1]. Por conta de sua atuação, foi impedido de se matricular na UFBA pelo decreto federal 477/1969, forçando-o a concluir seus estudos na Faculdade Cândido Mendes (UCAM), no Rio de Janeiro.

Já formado, ingressou na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e montou seu escritório de advocacia popular em Itapetinga, no interior da Bahia. Esse período não duraria muito: condenado em 1971 a dois anos de reclusão pela Justiça Militar, Rosalindo dirige-se ao sudeste do Pará, integrando o Destacamento C da Guerrilha do Araguaia [2].

“Romance de Libertação do Povo”

Na região do Caiano, Rosalindo agora chamava-se Mundico, um dos principais propagandistas do Partido e do seu organismo gerado, o Movimento pela Libertação do Povo (MLP), que deveio na União pela Liberdade e pelos Direitos do Povo (ULDP). Um registro do suposto diário [3] de Grabois, escrito entre 1972 e 1973, ilustra uma situação onde Mundico e seu grupo habilmente transformaram uma reza com 120 pessoas num comício de agitação política, que depois prosseguiu em reuniões individuais com vários grupos de 20 a 30 camponeses.

Todavia, seu trabalho mais reconhecido pelas massas da região foi o cordel “Romance de Libertação do Povo”, um dos principais materiais de propaganda do Partido no Araguaia: com mais de 60 estrofes setilhas, partia do Programa de 27 Pontos da ULDP, expondo as agruras do povo, inflamando-o para a autodefesa armada e para apoiar os combatentes.

Mimeografado no reco-reco e distribuído por toda a região, era especialmente valioso para a transmissão, por recitação oral, da linha do partido para a população analfabeta ou semianalfabeta. O suposto diário de Grabois registra a recepção do romance pelas massas camponesas:

“Grande sucesso tem alcançado a literatura de cordel sobre a guerrilha. Os “Romanos (sic) da Libertação do Povo”, de autoria do Mundico, do DC (…) é conhecido por quase toda a massa, que o recita ou canta no ritmo das toadas nordestinas. Até as crianças sabem seus versos de cor. Tem sido excelente veículo de propaganda.”

Morto em combate

Em 1973, Mundico foi assassinado covardemente por um elemento atrasado das massas, o mateiro Olímpio Pereira, em Xambioá. Até 2018, data em que Olímpio narrou sua responsabilidade ao monopólio de imprensa Estadão [4], não havia clareza sobre a morte de Mundico: sem registro de troca de tiros e como decorrência do caráter sorrateiro do ato, Grabois entendeu que o combatente morrera acidentado com a própria arma. Os militares produziram sua própria versão: a grotesca calúnia de que Mundico teria sido “justiçado” por um grupo de combatentes dirigido por Dinalva Oliveira Teixeira, a Dina, por motivo fútil [5].

Um outro relato, do mateiro Sinésio Martins Ribeiro [6], complementa o aspecto sinistro da intervenção militar no Araguaia: teriam lhe exumado o cadáver, arrancado sua cabeça e a deixado exposta por dias no campo de concentração de Xambioá, em frente aos outros detidos.

Nova Cultura nos cordéis do Araguaia

Imagem retirada de A Classe Operária n.96, de abril de 1975

O Romance… deve ser entendido como um dos mais expressivos exemplos da produção cultural de massas e combatentes envolvidos diretamente com a guerrilha; produção, em grande parte, destruída pela reação e que infelizmente só temos acesso através de registros de seu impacto, em documentos da época ou pela memória oral. Do próprio Romance… somente restam algumas estrofes, contando com as que só existem na memória dos camponeses da região e ex-combatentes [8].

A Cabana do Pajé Hecilda Veiga

Em entrevista, Hecilda Veiga canta “A Cabana do Pajé”, composição atribuída a Mundico [9].

A literatura de cordel se destacava por se espalhar muito rapidamente pelos cantadores da região, por sua linguagem simples e de conteúdo ilustrativo, por falar sem rodeios o que precisava. O Romance… era o exemplo-base sobre o qual poderiam se desenvolver novas produções. Sabemos, dos documentos citados, da existência de cordéis feitos pelo combatente Lucio Petit da Silva, o “Beto”, Porque entrei para a guerrilha [10] e A vida de um lavrador; o Romance da ULDP (que pode ser um codinome para o Romance…) e O encontro de Osvaldão com a Dina, do próprio Mundico.

Todavia, nenhum destes é tão citado e referenciado como o próprio Romance…: este era declamado ao fim das leituras do manifesto da ULDP, Em Defesa do Povo Pobre e pelo Progresso do Interior; ao fim de reuniões com os núcleos camponeses da ULDP; em comícios, festas, teatros e mesmo em celebrações religiosas de rezas e do tradicional terecó [11]. Ao ponto de, passado um ano do início da luta na região, os principais documentos a serem mimeografados para a propaganda armada serem o Romance… e o Manifesto do 1º Aniversário da Luta Guerrilheira.

Ademais, a agitação política não era a única função a que o Romance… se prestava: é prova de que, para além de dirigir a luta armada, mobilizar a luta do povo por suas demandas, integrar-se à produção camponesa e viver, no sentido mais amplo do termo, com as massas; os comunistas do Araguaia também se esforçaram, ainda que de forma embrionária, em dar início a uma Nova Cultura, em seu esforço por assumir e desenvolver em prol da libertação as formas de expressão do povo.

“Expande-se a literatura sobre a guerrilha. Surgem poesias e hinos. Também o “terecó” dá a sua contribuição. Tudo isso é sinal do crescimento, consolidação e aumento da influência das FF GG [nota: Forças Guerrilheiras do Araguaia]. Nem sempre a qualidade da produção literária é boa, mas seu conteúdo visa sempre exaltar o movimento guerrilheiro; torná-lo conhecido do povo. Com o correr do tempo, a forma avançará e se aperfeiçoará. Para as massas da região, ainda é necessário apelar para literatura de cordel. Não por acaso, o “Romance da Libertação do Povo” tem alcançado imenso sucesso. Estou certo de que aqui, no Araguaia, se forjará uma autêntica literatura revolucionária e popular, com suas características próprias.” (grifo nosso) [12]

Excerto do “Romance de Libertação do Povo”

A seguinte versão foi publicada em A Classe Operária, n.87 (julho de 1974) [13], contendo apenas 14 estrofes dispersas das mais de 60.

Senhores, peço licença,
Me ouçam com atenção,
Vou falar sobre o Brasil.
Da atual situação
Do camponês cá do Norte
Que sendo valente e forte
Ainda passa aflição.
Se o senhor me vir mentindo
Me corte a língua a facão
Me jogue dentro do Inferno,
No meio do caldeirão,
Pra ser frito em óleo quente
Misturado com serpente
E comido pelo cão.
Nos Estados do Pará,
Amazonas e Goiás,
Entrando por Mato Grosso,
Maranhão chegando mais,
O verão é sem secura
Pois a terra é pra fartura
Das espécies vegetais.
Nos lugares que eu citei
Tudo é grande e natural,
Tem minério nas florestas
Pra caçar é sem igual
Em terreno desbravado
Tem madeira, roça e gado,
Babaçu e castanhal.
O vivente destas bandas
É escravo do patrão.
Sua paga é só bagulho
Que lhe empurram, queira ou não.
Do esforço do trabalho
Não vê saldo nem pro alho,
Tão medonha a exploração.
O peão é só penando
Sem direito a reclamar,
Na castanha ou nas fazendas
Onde esteja a trabalhar.
Entra ano e sai ano
Sua vida é só desengano
Não podendo melhorar.
Já quem vive de posseiro
É sem paz e segurança
Pois na terra devoluta
O grileiro faz lambança
Passa pique e laça fundo
Se diz rei pra todo mundo
Rouba velho e até criança
Garimpeiro, seringueiro,
Madeireiro, lavrador.
Seja qual a profissão
É um povo sofredor
O vaqueiro, nem se fala,
O barqueiro não se cala,
Vão lutar pra ter valor.
O produto cá da mata
Nunca dá bom preço, não.
Mas tudo que vem da rua
Sobe mais que o avião.
É um saco de arroz,
Com certeza vão ser dois
Pra comprar um bom facão.
No Brasil vive largado
Todo o povo da nação.
O governo nada faz
A não ser tapeação.
Só quem manda é general,
A polícia e bate-pau
Sem dar vez ao cidadão.
Todo mundo sabe disso
E o leitor bem sabe mais
Que o governo não resolve,
Só apoia os maiorais.
Digo assim e com razão:
O povo com arma na mão
Isto não sucede mais.
Falo isto só por alto
Sobre tudo o que fazer.
Cada um que for sabido
Pense e faça pra valer
Dê ideias muito mais
Para a frente e não pra trás
Pois a luta é pra crescer
No Brasil vai ter justiça
Para o povo da nação
Garantia pros posseiros,
Bom salário pro peão,
Muita escola pras crianças.
Pra mulher um mundo novo
Que não seja escravidão.
Ouça agora o meu conselho:
Ajudai os guerrilheiros
Que combatem altaneiros.
Derrubai este governo
Descarado e fanfarrão
Bate-pau de americano
Inimigo da nação.
Página retirada de A Classe Operária n.87, de julho de 1974

[1] Retirado do artigo “O PCdoB e o movimento estudantil em 1968”.

[2] Informações extraídas do Registro de Mortos e Desaparecidos da Comissão Nacional da Verdade.

[3] É impossível atribuir a autoria ou a autenticidade completa deste documento, publicado pela primeira vez pela revista Carta Capital em 2011, que foi apresentado como uma “cópia feita à mão” por militares de um diário que teria sido escrito por Maurício Grabois, o “Velho Mário” (diário cuja existência é mencionada no Relatório de Ângelo Arroyo), antes de destruírem o original. Todavia, pelos relatos e dados presentes, pode-se concluir que todos, senão a maior parte dos elementos relatados, só poderiam ser feitos por um profundo conhecedor da região, da linha do PCdoB e dos combatentes; o que nos permite usá-lo para evidenciar os fatos trazidos no artigo.

[4] Informações extraídas da matéria “Ex-mateiro desvenda morte de Rosalindo”.

[5] Essa difamação foi papagaiada mais recentemente no livro “Borboletas e lobisomens” (2018), de Hugo Studart, que assumiu como fato a versão dos militares, como um tempero sensacionalista a mais em sua narrativa de folhetim. Algumas posições críticas ao livro de Studart podem ser lidas nas matérias “Sobre as fontes de Hugo Studart em “Borboletas e Lobisomens”, “Guerrilha do Araguaia: Borboletas, lobisomens e inverdades”, “Análise e verdades factuais sobre a Guerrilha do Araguaia” e “Uma nova narrativa reacionária e misógina sobre a Guerrilha do Araguaia”.

[6] Retirado do site Memórias da Ditadura. 

[7] Disponível no site.

[8] A exemplo dos versos do Romance da Libertação do Povo recitados de memória pelo camponês Zé da Onça no documentário Camponeses do Araguaia: a guerrilha vista por dentro (2011). Outros casos similares são resgatados por Ivania Melo no artigo “A poética da resistência nos poemas sobre a Guerrilha do Araguaia: o corpus do jornal Resistência”.

[9] A letra da canção está disponível nesse link.

[10] A este cordel temos acesso, por ter sido publicado integralmente na edição nº 12 da revista Princípios. Segundo o “diário”, a opinião de Grabois sobre esse cordel seria: “É muito bem feito. Não contém “apelações”. Tem boa estrutura e coordenação. Possui qualidades poéticas e literárias. Conta a vida atribulada de um camponês da região e descreve os motivos que o levaram a ingressar nas FF GG. Penso que terá repercussão entre os moradores. Será excelente veículo de propaganda.”

[11] Informações extraídas do suposto “diário” de Grabois e do Relatório de Ângelo Arroyo.

[12] Do suposto “diário” de Grabois.

[13] Disponível no site.

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