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Em 13 de julho, foi publicada a Lei 14.182, autorizadora da venda da Centrais Elétricas Brasileiras S.A. (Eletrobras) – ou seja, de aproximadamente um terço da geração e metade da transmissão de energia elétrica no Brasil, se consideradas as empresas das quais ela é acionista controladora, como Furnas, Chesf e outras. Apenas as ações de Itaipu e da Eletronuclear seriam repassadas à União.
“Venda”, e não “desestatização”, como consta na lei, ou “privatização”, como mais comumente se diz, porque estes, provavelmente, seriam termos impróprios: é grande a chance de que a Eletrobras continue sob controle estatal – porém, de outro país.
A EDF, estatal francesa, foi proprietária da Light por 10 anos (1996-2006) e ainda tem participação relevante na geração de energia no Rio de Janeiro, Mato Grosso, Minas Gerais e Bahia. A CTG, estatal chinesa, é sócia de 17 hidrelétricas e 11 parques eólicos no Brasil.
Já os Estados Unidos (USA) foram, até aqui, comedidos em sua expansão internacional na produção de eletricidade. Internamente, porém, é incontrastável o controle do Estado sobre o setor, exercido por meio do Corpo de Engenheiros do Exército (USACE), do Escritório de Aproveitamento (USBR) e da Autoridade do Vale do Tennessee (TVA). Ao controlar a hidrografia do país, essas três entidades controlam a geração de eletricidade a partir dela, sem por isso deixar de ter também usinas térmicas e eólicas. Na cidadela do capitalismo e da empresa privada, a geração de energia é uma exceção determinada pela soberania e defesa nacionais em acepção militar.
Esses dados denotam o caráter estratégico da atividade, corroborado pela história brasileira: a Eletrobras esteve (por certo, não sozinha) na raiz de dois golpes de Estado. Ao elidir a deposição suicidando-se, em 1954, Getúlio Vargas assinalou em sua carta-testamento as fortes pressões contra a criação da empresa. João Goulart, que a pôs em funcionamento em 1962 mesmo sem que ela pudesse fabricar seus próprios bens de produção, como turbinas e geradores (possibilidade vetada por seu antecessor, Jânio Quadros, ao sancionar sua lei de criação), foi derrubado em 1964.
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O grande capital imperialista da indústria e do comércio e a burguesia nativa a ele associada bloquearam tanto quanto puderam a criação da Eletrobras bem como a expansão do sistema elétrico nacional. No entanto, precisavam delas.
Nos anos 70, eles abriam fábricas. Sem energia, não há produção industrial, nem comércios como o de eletrodomésticos. Assim, ao que se assistiu durante o regime militar-fascista de 1964-85 não foi ao desmonte da Eletrobras, mas à sua expansão e consolidação com distorções como o subsídio às multinacionais do alumínio (Alcoa e Alcan); os crimes contra o erário, a floresta e os povos da Amazônia chamados Tucuruí e Balbina; e a baixa cobertura no campo, entre outros.
Essa situação mudaria nos anos 90, com o avançar de um processo iniciado quando a Ásia (especialmente a China) ofereceu mais que o Brasil nos três quesitos que atraíam as multinacionais da indústria nos anos 70: baixo custo do trabalho, subsídios oferecidos pelo Estado e mercado interno em expansão. Nessa época, não por acaso, iniciou-se a desestruturação do sistema elétrico nacional.
Só quem pode prescindir – e prescinde – de um sistema energético público e articulado é o latifúndio. Para ele, é melhor que o campesinato sobre cujas terras quer se expandir não tenha acesso à eletricidade: barateia a terra e torna ainda mais difícil a subsistência e mais árdua a vida do camponês, contribuindo para expulsá-lo. Sua própria necessidade de energia, o latifundiário pode suprir com geradores a óleo, ou contratando o fornecimento de eletricidade com as concessionárias especificamente para a fazenda e em condições fora do alcance do pequeno agricultor. Não é acaso que a ofensiva final contra o sistema Eletrobras tenha lugar no ápice da hegemonia do monopólio da terra sobre o conjunto da economia e da política no Brasil desde 1930.
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A preparação do terreno teve início há 25 anos. Antes, detentora de atribuições de coordenação do sistema, centralização do comércio e pesquisa, a Eletrobras teve-as transferidas pelo governo FHC respectivamente ao Operador Nacional do Sistema (ONS), à Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) e à Empresa de Pesquisa Energética (EPE), todas criadas por ele.
Esse desmembramento foi concebido precisamente para viabilizar sua venda. Ela chegou a ser incluída no mal chamado Programa Nacional de Desestatização implementado nos anos 90, quando o que agora se tenta fazer só não se concretizou pela soma de resistência social ampla, crise energética e elevado desgaste político trazido ao governo pelas privatizações da Telebras e Vale do Rio Doce.
Em 2004, a Eletrobras foi oficialmente retirada da lista de estatais à venda. Isso não significou, porém, a interrupção das sabotagens que já vinha sofrendo.
Melhor base de dados sobre as políticas de energia elétrica no Brasil, o site do Ilumina (Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético) tem vários artigos, cujo autor mais frequente é o engenheiro Roberto Pereira D’Araújo, detalhando esses passos.
No âmbito do PAC, a Eletrobras foi usada para subsidiar empresas privadas entrando como sócia minoritária em 178 projetos aos quais fornecia dinheiro e conhecimento especializado, mas que não lhe geravam bom retorno financeiro e dos quais não tinha controle. Belo Monte, Jirau, Santo Antônio e similares não foram lesivos apenas às populações atingidas e ao ecossistema, mas também ao caixa da estatal.
Como efeito de uma medida do governo FHC mantida intacta (a obrigatoriedade de remunerar generosamente usinas térmicas privadas por uma energia que, por vezes, nem chegam a produzir), as tarifas atingiram níveis críticos em 2013. Ante a insatisfação popular que se avolumava, a saída encontrada por Dilma Rousseff foi sobrecarregar financeiramente ainda mais a Eletrobras para promover uma fugaz redução na conta de luz, porém, sem tocar no lucro das distribuidoras – via de regra, privadas ou estatais estrangeiras. “As subsidiárias da estatal, Eletrosul, Eletronorte, Furnas, entre outras, foram obrigadas a vender energia por um preço abaixo do custo de operação e manutenção” – lembrava o professor e engenheiro Ildo Sauer em 2019, numa entrevista ao Jornal da USP.
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Sacrificar resultados financeiros para assegurar o fornecimento contínuo e economicamente acessível de energia à população e à indústria não seria, em si, um problema: poderia ser algo a aplaudir, se feito de forma planificada e criteriosa. O próprio formato empresarial de um produtor de energia é discutível: nos USA, onde os mínimos aspectos da vida foram transformados em mercadoria, USACE e USBR não são empresas, mas agências públicas.
Mas não foi isso que se fez no Brasil no último quarto de século. O viés mercantil da produção de energia e da própria Eletrobras não foi atenuado, mas aprofundado: em 2008, suas ações passaram a ser vendidas na bolsa de Nova Iorque. Sua gestão ficou, assim, submetida às leis daquele país.
Essa exposição simultânea a demandas empresariais conflitantes entre si (por um lado, subsidiar empreendimentos privados e de estatais estrangeiras no Brasil; por outro, maximizar lucros para remunerar acionistas) levou ao sacrifício não de meros resultados financeiros, mas de parte da capacidade de planejamento e investimento da Eletrobras. E, claro, da economia popular: a tarifa residencial brasileira é, proporcionalmente ao poder aquisitivo da população, a segunda mais alta do mundo conforme dados da Agência Internacional de Energia (IEA) divulgados por D’Araújo.
No final, o país ficou com a pior parte de todos os cenários: eletricidade caríssima, desindustrialização, comprometimento da capacidade do Estado, investimento privado baixíssimo e ameaça permanente de escassez de energia.
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Nunca entidades representativas da burguesia burocrática (incluída sua fração compradora) haviam se posicionado de forma crítica à venda de uma empresa federal, ainda que sem dizer-se contrárias à medida. No caso da Eletrobras, a Federações das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) o fez.
De seu site, consta uma declaração do diretor de seu Departamento de Infraestrutura, Carlos Cavalcanti, de que “bem pior que ter uma estatal com esse poder de fogo no mercado é ter uma empresa privada controlando toda essa geração de energia”. Uma colocação um tanto óbvia que até Milton Friedman chegou a formular como princípio, mas que há décadas não tinha lugar no discurso empresarial no Brasil.
A entidade estima em R$460 bilhões o aumento nas contas de luz nos próximos 30 anos, em decorrência da venda da empresa.
A Fiesp, contudo, não diz o que, afinal, defende. Se por um lado reafirma sua fé no dogma da retirada do Estado (brasileiro) do setor, e por outro assinala o impacto nocivo do monopólio privado, cabe entender que propõe o fatiamento da Eletrobras como passo prévio ou simultâneo à venda.
Essa leitura condiz com o fato de 85% das indústrias comprarem energia no chamado mercado livre – ou seja, não estão vinculadas à distribuidora de sua região, podendo escolher seu fornecedor. Mas se, para manter essa margem de manobra quanto ao custo da eletricidade, a Fiesp defende a desarticulação de uma estrutura nacional consolidada ao longo de décadas, resta claro que seus dirigentes nada têm a oferecer ao país e não compõem um empresariado verdadeiramente nacional.
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O Ilumina aponta como disfuncionalidade do sistema e fator de aumento do custo da energia a concentração de investimentos em usinas térmicas, movidas, em regra, a derivados de petróleo. Essa política teve início no contexto da crise energética do governo FHC e foi mantida no ciclo petista. Nos quinquênios 1999-2004 e 2008-13, 70% da expansão do sistema elétrico se concentrou nessas usinas.
Se as hidrelétricas são criticáveis por seus impactos socioambientais (entre eles o uso da água que se torna escassa para consumo humano e irrigação), as térmicas poluem mais e se baseiam em combustíveis em vias de extinção.
Além disso, seu custo é mais alto. Por isso, nos períodos de seca que supostamente justificariam a existência delas, as distribuidoras e os consumidores industriais preferem usar energia gerada pela água dos reservatórios das usinas hídricas, esvaziando-os. A remuneração das térmicas pela energia que não vendem e nem mesmo geram é garantida às custas da Eletrobras e da população consumidora.
A expansão das térmicas é surreal num país de excepcionais condições de produção de energia solar e hídrica e num mundo que se vê forçado a abandonar aceleradamente os combustíveis fósseis. Em 2019, a soma das fontes hídrica, eólica e solar ultrapassou pela primeira vez as térmicas a carvão em energia consumida no USA. Aqui, ao contrário, a participação das térmicas se multiplicou por 6 desde 1995. Ao substituir a geração hídrica não pela solar, mas pela térmica, o Brasil anda para trás sob qualquer ótica: soberania energética, impacto ambiental, tendência mundial ou custos.
D’Araújo mostra que é possível iluminar o Brasil inteiro a baixo custo, quase sem impacto ambiental e com uma fonte eterna de energia, bastando cobrir com painéis solares uma área menor que a ocupada hoje pelas usinas hídricas. No entanto, um artigo de Altino Ventura publicado também pelo Ilumina mostra que as fontes solares só responderam, em março de 2021 por 1% da geração elétrica nacional, contra 15% das térmicas (que chegaram a ultrapassar 25% em seus picos de 2014 e 2018).
As únicas instituições brasileiras capacitadas a conduzir – não sem contradições internas – uma transição da matriz hídrica à solar são as empresas do sistema Eletrobras. Vendê-las é renunciar também a isso.
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Ao controlar seu setor energético – especialmente o subsetor de produção – , um país pode garantir que não falte a eletricidade necessária à vida e ao conforto de sua população e ao funcionamento de sua economia, mormente sua indústria. Nem sempre isso se realiza: não é, por si só, garantia de muita coisa que algo esteja nas mãos do Estado onde este não está a serviço do povo. USA, China e França elidem essa contradição concentrando em outros países a exploração mais impiedosa para manter mais coesas suas sociedades. O Brasil não tem tal margem de manobra na atual divisão internacional do trabalho, e nem seria desejável que a solução fosse essa.
Contudo, abrir mão de tal controle e do conjunto de instalações e conhecimentos consolidado ao longo de décadas implicaria necessariamente submeter o país aos ditames do lucro empresarial e/ou a estratégias de Estados imperialistas que buscam manter-nos subdesenvolvidos.
De suas megaestatais que cumpriam função relevante para a integração nacional, o Brasil já se desfez da Telebrás e da Vale. Petrobras, Correios e Eletrobras foram, desde 1995, sistematicamente saqueadas e sucateadas para que se chegasse ao desfecho já anunciado pelo atual gerenciamento militar do Estado para as duas últimas. Ainda há tempo de impedi-lo.