Washington e a bomba
“(Em) Brasília, 24 de dezembro (Natal de 2022), empresário bolsonarista é preso por fabricar bomba que seria usada em atentado às vésperas da posse de Lula (PT e aliados). O suspeito, George Washington de Oliveira, admite motivação política e afirma que os explosivos são oriundos de garimpos no Pará. Entre outros negócios, Oliveira também é sócio do Super Posto Dimalice, em Alto Alegre (Roraima), aberto há 30 anos para atender garimpeiros da região.”
“As menções ao garimpo no noticiário sobre o caso não são mera coincidência. Do desmatamento recorde na Amazônia ao assassinato de Dom Phillips e Bruno Pereira; dos pedidos de propina em ‘barras de ouro’ à invasão das sedes dos Três Poderes; violações socioambientais e possíveis crimes do governo Bolsonaro (PL), em diferentes frentes, contêm as digitais dessa atividade predatória.”
Garimpo é bolsonarismo
“Além do interesse econômico, o garimpo é um elemento fundamental do bolsonarismo. ‘Ele une uma série de elementos que realmente estruturam a forma como Bolsonaro governou’, observa a pesquisadora Ana C. Reginatto, doutora em História pela Univers. Fed. do R. de Janeiro (UFRJ). ‘É uma atividade realizada muitas vezes de forma ilegal, com prejuízos ambientais, que está associada a conflitos violentos, inclusive ao assassinato de (líderes) indígenas.”
Homicídios e fome
“O episódio de repercussão mais recente é o genocídio do povo Yanomami (Roraima). Ao menos 44 indígenas foram assassinados em garimpos (ali), durante o governo Bolsonaro.
Os homicídios e execuções se somam a cenário de desnutrição, violência sexual, contaminação por mercúrio e surtos de doenças como a malária – consequências da atividade garimpeira ilegal, que cresceu 54% e devastou 1782 hectares da TIY (Terra Indígena Yanomami) só em 2022.”
Garimpo e atos antidemocráticos
“Com seu projeto derrotado nas urnas (por Lula), garimpeiros ilegais passaram a financiar e participar de atos contra o resultado eleitoral antes até da posse. Em 15 de novembro, o garimpeiro Rogério Macedo da Silva foi detido em Itaituba (PA), com 150 mil em dinheiro vivo e 78 camisetas verde-amarelas com o lema ‘Deus, Pátria e Família’. Ele é suspeito de patrocinar ‘ações delituosas de bloqueio de rodovias’ no PA após a vitória lulista.
Em Novo Progresso, dias antes, bolsonaristas acampados dispararam balas e atiraram pedras contra policiais que tentavam desbloquear a BR-163. O município deu 83% dos votos para Bolsonaro, segundo maior do país.”
Agronegócio, pastor e garimpo
“O vandalismo, antes pulverizado em redutos bolsonaristas, produziu os primeiros estragos no DF em 12 de dezembro, data da diplomação do presidente eleito. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes decretou a prisão preventiva de 4 pessoas por incendiar carros e ônibus e depredar uma delegacia. A polícia disse apurar o envolvimento de ‘empresários do agronegócio, pastores e pessoas ligadas ao garimpo ilegal’ na organização dos atos.”
8 de Janeiro tornou evidente
“As conexões entre o lobby pró-garimpo e a incitação ao golpe se evidenciaram com a invasão e depredação das sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro. Enric Lauriano, empresário e garimpeiro de Xinguara (PA) que participou do ato, foi candidato a suplente de senador em 2022 na chapa de Flexa Ribeiro (PP-PA) – consultor da Assoc.Nacional do Ouro (Anoro), que trabalhou ativamente pela mineração em TIs no governo Bolsonaro.”
“(Embora) a comprovação dos elos entre o garimpo e o financiamento de ações golpistas seja tarefa complexa, (é possível sim encontrar as ligas). Em Xinguara, por ex., a ONG Repórter Brasil apurou que o pix da loja de informática USA Brasil era divulgado em grupos do Whatsapp para arrecadar verbas para os atos. Ali, a loja é associada ao empresário Ricardo Pereira da Cunha, conhecido como “Ricardo da USA Brasil” – citado por George Washington por suposto envolvimento na tentativa de atentado em Brasília, em dezembro.”
“Presença constante em frente ao quartel do Exército em Brasília, Luciano Guedes ocupou entre 2019 e 2022 cargo comissionado no gabinete do senador Zequinha Marinho (PL-PA) – que atuou para regularizar uma cooperativa suspeita de exploração ilegal de ouro. Guedes usou suas redes para criticar a prisão dos suspeitos nos atos de 8 de janeiro.”
“Revoltados” pela perda
“Outro apoiador do garimpo ilegal, o deputado José Medeiros (PL-MT) culpou Alexandre de Moraes pela invasão dos Três Poderes e tentou justificar os bolsonaristas. ‘Essas pessoas estariam em casa se o complexo de soberano não tivesse sido tão forte no ministro Alexandre. Ao não dar explicação para dúvidas simples [sobre o processo eleitoral], gerou revolta de quem verdadeiramente tem o poder, o povo.Ou baixa a bola ou vai piorar’, declarou”.
“A historiadora Ana Reginatto atribui a essa ‘revolta’ outros significados: ‘Com Bolsonaro, tanto as entidades como figuras centrais do garimpo tiveram acesso muito direto ao alto escalão do governo. Até mesmo setores do Estado não voltados diretamente à mineração, como M.Ambiente ou Vice-Presidência, abriram as portas para fazer política pró-garimpo’, lembra”.
Bruno destrói garimpo e é morto
“O genocídio yanomami não foi a primeira tragédia de repercussão internacional associada ao garimpo e à desestruturação da Funai. O indigenista Bruno Pereira foi exonerado da Fundação após liderar ‘a maior destruição de garimpo do ano’ em terras yanomami, em 2019. Ele passou à defesa dos indígenas por conta própria, sem o Estado, até ser assassinado em 2022, ao lado do jornalista britânico Dom Phillips, no Vale do Javari.”
Fã do Curió
“Bolsonaro nunca escondeu ‘seu passado garimpeiro’. Reginatto lembra que o ex-presidente é afilhado político do major Curió, interventor do garimpo de Serra Pelada (PA) durante a ditadura. Em 86, eleito deputado, Curió chegou a enviar carta ao então capitão do Exército expressando o desejo de ‘passar o bastão’ a ele.”
“Em outubro de 2021, pela primeira vez um presidente da República visitou uma área de garimpo ilegal – dentro da TI Raposa Serra do Sol, em RR. Bolsonaro defendeu que a atividade em TIs fosse regularizada, nos termos do Projeto de Lei 191/2020, de autoria do Executivo.”
Apoiadores e cúmplices
“Bolsonaro não agiu sozinho. Marcelo Xavier, nomeado por ele para presidir a Funai, defendeu abertamente a mineração e o garimpo em TIs.
A ex-ministra e hoje senadora Damares Alves é alvo de ações da Procuradoria-Geral da República (PGR) por possível participação no genocídio yanomami. Em junho de 2020, ela teria pedido que Bolsonaro vetasse leitos de UTI e água potável para os indígenas em plena pandemia.”
“Outro senador e ex-ministro, Sergio Moro, também é acusado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) de fragilizar a Funai, por meio de nomeações polêmicas e exonerações como a de Bruno Pereira – em alinhamento com o projeto de Bolsonaro.”
“Passador da boiada” recepciona visita garimpeira
“Além de desmontar a proteção ambiental, Ricardo Salles (PL-SP), ex-ministro do M.Ambiente e eleito deputado em 2022, era um dos pontos de interlocução entre o governo e o garimpo. Em agosto de 2020, meses após a reunião no Planalto em que defendeu ‘passar a boiada’, Salles reuniu-se com garimpeiros em Jacareacanga (PA). Um dia após tal evento,sob protestos dos Munduruku, o ministro mobilizou um avião da FAB para levar garimpeiros a Brasília.”
Milicos: sim ao garimpo e não ao índio
“Os militares fizeram vista grossa e apoiaram essa agenda. Em minha pesquisa, não encontrei nenhuma voz dissidente sobre o tema [mineração em TIs]’, ressalta Reginatto, autora do relatório Quem é quem no debate sobre mineração em terras indígenas, de 2022.”
“O [vice-presidente Hamilton] Mourão, como presidente do Conselho Nac.da Amazônia, se reunia com garimpeiros e foi um dos disseminadores de fake news contra os indígenas. O Augusto Heleno [ex-ministro do GSI] autorizou garimpo em regiões de fronteira, em RR’, exemplifica.
Militares comprados a peso de ouro?
“Segundo a Folha de SP, Heleno autorizou em 2022 a exploração de ouro em área próxima à TIY. O mesmo jornal noticiou que militares podem ter sido comprados pelo garimpo já no início do governo Bolsonaro.”
“Quando há proteção territorial (efetiva), com operações a cada 2 ou 3 meses, fica inviável para os donos de garimpos conseguirem a reposição dos equipamentos, porque eles são muito caros.Uma publicação do Ministério Público estima o valor mínimo de uma draga em 600 mil’, observa a cientista social Luciana Landgraf.”
“Então havia uma certeza de impunidade, baseada nos discursos do Bolsonaro e do Mourão. Como sabiam que o governo não iria fazer nada para impedi-los, os garimpeiros investiram pesado’, completa.”
Trânsito livre nos palácios bolsonaristas
“Entidades empresariais (do garimpo) como Anoro, Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), Associação Brasileira do Alumínio (Abal) e outras tinham trânsito livre no Minist.das Minas e Energia (MME).”
“Figuras políticas de regiões dominadas por garimpos clandestinos também eram interlocutores frequentes do Planalto. Um dos mais proeminentes foi Wescley Tomaz (PSC-PA), o “vereador dos garimpeiros” de Itaituba. Embora seu cargo não fosse nacional, ele participou de dezenas de reuniões com ministros e até com o presidente.”
“Com Bolsonaro houve uma retomada do projeto militar da década de 1970, com uma visão de desenvolvimento ultrapassada e antinacional e o incentivo a atividades criminosas’, observa o geógrafo Marcos Pedlowski, da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF).”
Propina em barras de ouro
“O avanço do garimpo no governo Bolsonaro também está associado a um escândalo de corrupção envolvendo o M.da Educação(MEC).”
“Em junho de 2022, o ex-ministro e pastor presibiteriano Milton Ribeiro foi preso após a divulgação de um áudio no qual dizia liberar verbas do Fundo Nac. de Desenvolv.da Educação (FNDE) (a prefeituras) mediante a indicação de dois pastores evangélicos, a pedido de Bolsonaro.”
“As negociações envolviam a cobrança de propina em barras de ouro (de prefeitos, amazônicos de preferência). Os pastores Gilmar Santos e Arilton Moura teriam criado balcão de negócios dentro do MEC com conhecimento do ministro e presidente.”
“O prefeito de Luís Domingues (MA), relatou um pedido de propina feito em 7 de abril de 2021, após reunião no MEC. O pastor Arilton teria cobrado 1 kg de ouro em troca de verba para construção de escolas e creches no município. As denúncias foram endossadas por outros prefeitos.”
Interesses milionários
“Questionado sobre a participação de garimpeiros em atos antidemocráticos e no genocídio yanomami, o geógrafo Pedlowski chama atenção para os interesses milionários e transnacionais envolvidos na atividade.”
“A demonização do garimpeiro, do trabalhador, esconde o grande capital envolvido. Como no caso do narcotráfico nas grandes cidades, a repressão acontece nas favelas, em pequenas bocas de fumo. Não resolve se a gente não olhar os grandes grupos econômicos internos e como se relacionam com as grandes corporações globais’, adverte.”
Apple, Google, Microsoft e Amazon
“Em 2022, a Repórter Brasil apurou que as quatro empresas mais valiosas do mundo – Apple, Google, Microsoft e Amazon – usaram ouro ilegal de TIs brasileiras. Elas foram o destino final do produto de duas refinadoras, a italiana Chimet e a brasileira Marsam, que adquiriram metais extraídos de garimpos clandestinos.”
Joias de luxo com sangue yanomami
Resumimos, a seguir, informações de várias entidades pró-indígenas, publicadas no portal Ctxt em 31 janeiro de 2023 e site da Universidade Unisinos/RS em fevereiro 2023:
“O mercado mundial de ouro e as grandes marcas de luxo, empresas como LVMH (conjunto de marcas francesas de artigos de alto luxo) e Rolex, que faturam bilhões de dólares com a venda de joias e relógios fabricados com ouro de possível origem ilegal também são responsáveis pela crise humanitária dos Yanomami, segundo organizações não-governamentais consultadas no Brasil.”
“Mais da metade do ouro exportado pelo país tem indícios de ilegalidade’, diz Larissa Rodrigues, do Instituto Escolhas, de SP. ‘A maior parte é refinada na Europa, por isso é bem provável que haja sangue indígena nas joias de luxo ali compradas’, conclui.”
“Apesar das tentativas de limpar a imagem do negócio multibilionário, nenhuma das marcas do chamado consumo ostentação forneceu evidências convincentes de ter eliminado o dito ‘ouro de sangue’ de suas cadeias de suprimentos.
Marcas como Rolex e Swatch, sediadas em Zurique, bem como Tiffany e Bulgari,filiais da LVMH, não deram dados sobre a origem do ouro que compram.
‘A Rolex e a Swatch se recusam veementemente a falar sobre as fontes do seu ouro’, diz Mark Pieth, da Univers.da Basileia, em seu livro Gold laundering, dirty secrets (Ouro lavado, segredos sujos).”
“A Tiffany só fornece dados sobre 16% do ouro que usa. A Bulgari insiste que seu ouro vem de 2 minas que atendem às normas do Conselho de Joalheria Responsável.Mas a ONG Human Rights Watch denunciou falhas nos atos desse Conselho e diz que não é garantia que não tenha havido violação humanitária na obtenção do ouro.”
“As refinarias na Suiça já utilizam um processo químico para descobrir o país de origem do ouro. Mas isso não é suficiente para saber se é ouro de sangue ou não, diz Pieth. Embora tenha sido desenvolvido um marketing sob o lema ‘joias sustentáveis’, não foi criado um método de identificação do ouro equivalente ao Processo de Kimberley, adotado no mercado de diamantes após o escândalo de financiamento de conflitos na Serra Leoa (os ditos ‘diamantes de sangue’, extraídos por escravos e usados para financiar crimes de guerra, caso descoberto na África na década de 1990).”
“As vendas de joias e relógios da LVMH – cujo dono Bernard Arnault já ultrapassou Elon Musk e Bill Gates na liga dos mais ricos, com patrimônio de 190 bilhões de dólares – aumentaram 167% em 2021, de acordo com um relatório da Amazon Watch. Graças ao prodigioso poder de compra de uma nova classe de consumidores super-ricos, as vendas de bens de luxo – incluindo joias de ouro – totalizaram 1,4 trilhão de euros em 2022, mais do que o PIB da Espanha.”
“Os gastos com luxo cresceram em 2022 mais do que qualquer outro segmento de mercado. Tudo isso cria uma demanda insaciável por ouro, legal ou ilegal.A impunidade tem sido total até agora. Não apenas na Amazônia, onde Bolsonaro incentivou o garimpo a penetrar em áreas protegidas.Também na Europa. A Polícia Federal brasileira já denunciou, na operação chamada Terra Desolata, tempos atrás, que uma refinaria da empresa Chimet, na Itália, processava parte do ouro tirado de uma mina ilegal dentro da reserva indígena Kaiapó, no PA. Apesar disso, nada foi feito contra a empresa italiana.”
“Diante do panorama, parece lógico sugerir que há outros responsáveis indiretos pela tragédia dos yanomami: as celebridades da era do “bling-bling” – comportamento ostentoso – que anunciam joias de luxo enquanto se declaram defensoras da proteção da Amazônia e de seus habitantes.Angelina Jolie, Beyoncé e Shakira, por exemplo, todas identificadas com campanhas em defesa dos direitos humanos, já promoveram joias de luxo da HStern, multinacional joalheira brasileira com sede no RJ (e filial israelense).”