Milhares foram às ruas da capital do país para exigir justiça. Foto: EE/Eric Lugo
Dias antes de completarem oito anos do desaparecimento de 43 estudantes da Escola Normal Rural de Ayotzinapa (ou Escola Normal Rural Raúl Isidro Burgos), estudantes normalistas e pais das vítimas foram às ruas de Iguala, cidade em que os jovens desapareceram, e da Cidade do México, capital do país, para exigir a condenação dos envolvidos no crime. Os protestos envolveram confrontos entre estudantes, membros do velho Estado e forças de repressão. Ao menos 39 tropas da reação ficaram feridas. Os 43 jovens desapareceram em 2014, no que os familiares das vítimas, estudantes e organizações jurídicas é denunciado pelos manifestantes como um crime do velho Estado mexicano.
No dia 21 de setembro, centenas de massas em luta realizaram um protesto em frente à Fiscalização Geral da República (FGR), onde exigiram justiça pelos 43 desaparecidos. Palavras de ordem como Assassinos, nos faltam 43! foram exclamadas. Estudantes da Escola Normal Rural Raúl Isidro Burgos arremessaram objetos nos seguranças da FGR e picharam os muros com as palavras Ayotzinapa, nem perdoar, nem esquecer.
Os manifestantes também exigiram a extradição de Tomás Zerón de Lucio, ex-diretor da Agência de Investigação Criminal, que é acusado de ter adulterado evidências e torturado detidos para confirmar uma falsa versão do caso, que encerraria a investigação. Zerón atualmente se encontra em Israel. Como continuidade da exigência de que Zerón voltasse ao México para sofrer as devidas punições, as centenas de estudantes e pais das vítimas realizaram um combativo protesto no dia seguinte em frente à Embaixada de Israel no México, localizada na capital do país. Frases como Extradição para Tomás Zerón de Lucio!, Nem perdoar, nem esquecer foram pichados no prédio. O Ministro de Relações Exteriores do Estado de Israel, tomando defesa de Zerón, convocou o embaixador do México em Jerusalém para exigir que as “devidas providências” fossem tomadas contra os manifestantes.
Pais e estudantes tomam a frente da Embaixada de Israel, na cidade do México. Foto: AFP
Estudantes picham fachada de Embaixada de Israel. Foto: Cuartoscuro
Manifestação em base militar deixa 39 soldados da reação feridos
No dia 22/09, mais uma vez manifestantes foram às ruas para exigir justiça para os jovens desaparecidos. Desta vez, o protesto ocorreu no Campo Militar n°1, na Cidade do México. Entre ss manifestantes estavam presentes estudantes da Federação de Estudantes Camponeses Socialistas do México (FECSM) e pais das vítimas. Durante a marcha, eles entoaram palavras de ordem contra os militares reacionários e exigiram a sua condenação. Ao menos 300 tropas das forças de segurança do velho Estado, contando com Secretaria de Segurança Cidadã (SSD), Secretaria de Defesa Nacional (Sedena) e Guarda Nacional, foram mobilizadas para conter a rebelião.
Centenas protestam em frente ao Campo Militar n° 1, na capital do país. Foto: Quetzalli Nicte Ha/El País
Cartazes com a frase Foi o exército! foram erguidos pelas massas. Jovens escalaram a base militar e picharam toda sua fachada, enquanto outros arremessaram pedras, coquetéis molotovs e fogos de artifício para dentro do local. O saldo foi de 39 tropas da reação feridas, sendo 21 da SSD, 13 da Sedena e 5 da Guarda Nacional.
Massas estudantis derrubam portão de base militar. Foto: Quetzalli Nicte Ha/El País
Milhares vão às ruas em véspera e data do aniversário do crime de Estado
Dois atos ocorreram na Cidade do México. O primeiro protesto, realizado um dia antes de completar oito anos do desaparecimento, se concentrou em frente ao Hemiciclo a Juárez, um monumento no parque central da capital do país. No dia 26/09, quando se completou mais um ano do crime de Estado, milhares de massas foram às ruas da cidade de Iguala, no estado de Guerrero, onde os jovens desapareceram há oito anos.
Além de exigir justiça pelos 43 estudantes e punição para todos os envolvidos, os manifestantes denunciaram o atual governo oportunista de López Obrador. Gritos de ordem como Vivos os levaram, vivos os queremos! foram entoados pelas massas, enquanto fotos dos estudantes eram erguidos. Novamente, a frase Foi o exército! estampou cartazes dos manifestantes.
Oito anos de desaparecimento: o crime do velho Estado mexicano
Os 43 estudantes da Escola Normal Rural Raúl Isidro Burgos, em Ayotzinapa, desapareceram na noite de 26 e madrugada de 27 de setembro de 2014. Naquele dia, os estudantes, todos entre 18 e 21 anos de idade, haviam viajado para Iguala, cidade a 125km de Ayotzinapa, para participar de um protesto por melhores investimentos na educação.
Na noite do dia 26, os estudantes foram brutalmente reprimidos pelas forças de repressão do velho Estado. Um ônibus foi alvejado por tiros e três estudantes e três transeuntes caíram mortos durante a fuga da polícia. Foi o caso de Julio César Mondragón, encontrado no dia seguinte, sem olhos e com o rosto esfolado, em uma estrada da região. Outros 43 foram sequestrados e nunca mais vistos.
Nos dias seguintes, familiares das vítimas, estudantes e moradores da cidade foram às ruas e subiram montanhas para procurar os cadáveres dos jovens. Ainda em 2014, uma investigação do velho Estado foi realizada como fruto da mobilização popular e identificou restos mortais encontrados no rio San Juan.
Em novembro de 2014, após interrogatórios de suspeitos e investigações na cidade, o procurador e general do exército Murillo Karam apresentou uma versão da história, que viria a ser declarada como “verdade histórica” pelo ex-presidente Peña Nieto. Segundo a versão, os jovens teriam sido interceptados por policiais corruptos e entregues ao cartel Guerreros Unidos. O cartel teria então assassinado os jovens em um aterro sanitário em Cocula por terem achado que pertenciam a outra facção. Após o assassinato, os restos teriam sido queimados no próprio aterro e jogados no rio San Juan. Em janeiro de 2015, foi apresentado um relatório pela PGR para “comprovar” as supostas evidências.
Contudo, nem os pais, nem as massas que somavam em sua luta, acreditavam na veracidade das informações. Segundo eles, faltavam informações no relatório para confirmar o local da queima dos corpos. A versão oficial seria, segundo as denúncias dos parentes e ativistas, somente uma forma de encerrar o caso e as crescentes mobilizações. Durante o ano de 2015, mais restos mortais foram identificados: os de Jhosivani Guerrero, encontrado no rio San Juan, e os de Christian Alfonso Rodriguez, encontrado em um local conhecido como “barranco do açougue”, a 800 metros do lixão onde os jovens teriam sido supostamente queimados.
Cronologia dos acontecimentos no Caso de Ayotzinapa. Infográfico: Banco de Dados AND
Em dezembro de 2015, os investigadores do Grupo Interdisciplinar de Peritos (Giei, sigla em espanhol), grupo de investigação da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) chegaram à conclusão de que na noite do dia 26 não houve, no lixão de Cocula, um incêndio com as dimensões necessárias para desaparecer com os restos de 43 pessoas. Meses depois, o Giei encontrou e denunciou irregularidades cometidas por Tomás Zerón (líder da equipe de investigação montada pelo velho Estado mexicano) e seus investigadores. Segundo o grupo, Zerón foi à zona do aterro e ao rio com um dos detidos pela investigação, mas não colocou a atividade no inquérito. Em meados de 2016, o general Murillo Karam saiu da procuradoria, e Zerón fez o mesmo meses depois.
Em 2017, o Giei denunciou internacionalmente que estava sendo alvo de espionagem pelo velho Estado mexicano. De acordo com a denúncia, o governo estava usando o software de espionagem Pegasus, adquirido pelo exército mexicano entre sob pretexto de “combater o crime organizado”. Em de 2018, foi confirmado que ao menos 34 detidos pela investigação de Zerón foram torturados. Nos anos seguintes, a investigação oficial do governo de Peña Nieto não deu mais novidades, e o ex-presidente não renovou a autorização para a investigação do Giei.
Exército reacionário se omitiu do caso
No curso da investigação, ficou claro o papel do Exército em permitir o desaparecimento dos estudantes. É o que revelou os próprios militares, sobretudo o tenente Joel Gálvez e o soldado Eduardo Mota, diretamente envolvidos na omissão. No dia 26 de setembro de 2014, o Alto Comando do Exército soube do que ocorria em Ayotzinapa por meio do sistema de coordenação de segurança mexicano C-4, do qual também fazem parte a polícia estadual e a polícia municipal.
Após ficarem sabendo da repressão aos estudantes, montou-se uma cadeia de comunicação do exército, que envolvia o coronel José Rodriguez Perez, o quartel central da 35° zona militar, sob responsabilidade do general reacionário Alejandro Saavedra Hernandez, o tenente Galvez e o soldado Mota.
Naquela noite, Galvez recebeu nove ligações. Em uma delas, ordenou o soldado Eduardo Mota a ir ao terminal de ônibus ver o que acontecia com os estudantes. Lá, o reacionário Mota deu ao Exército o primeiro informe do terrorismo de Estado: os policiais atacavam os ônibus com tiros e bombas de gás lacrimogênio, ordenando a saída dos estudantes. Mota fotografou a cena e enviou ao tenente Galvez. “Não se aproxime e não corra riscos”, foi a ordem que recebeu antes de voltar ao batalhão.
Os militares só passaram a agir quando ficou impossível ignorar os pedidos dos moradores da cidade. Foram, então, feitas patrulhas e visitas aos hospitais. Nessas patrulhas, os militares encontraram ao menos sete cadáveres: dois estudantes, do qual nem se aproximaram; três transeuntes que foram mortos por tiros disparados no ônibus da equipe de futebol Los Avispones e o estudante Julio César Mondragón.
Em 2022, o atual presidente oportunista López Obrador ordenou a prisão de Murillo Karam e outros dois militares. Outras 83 ordens de prisão foram dadas, mas 20 já foram retiradas. Enquanto o atual presidente busca simular supostos avanços na investigação, militares que nada fizeram para impedir o desaparecimento dos estudantes em 2014 hoje ocupam altos cargos no governo federal mexicano. É o caso do general Saavedra Hernandez, que hoje é diretor do Instituto de Seguridade Social das Forças Armadas.
O caso se repete com o general Salvador Cienfuegos, que hoje ocupa o cargo de Secretário de Defesa Nacional. Em 2014, Cienfuegos mentiu publicamente ao afirmar que nenhum militar havia tomado conhecimento do que aconteceu em Iguala na noite em que os estudantes desapareceram. Em 2020, Cienfuegos estava sendo investigado no Estados Unidos por ligações com o narcotráfico. A investigação foi interrompida após o governo de López Obrador conseguir a deportação do general ao México, onde a Procuradoria Geral da República não deu continuidade.
Durante esses oito anos, os principais responsáveis pelos avanços na investigação dos 43 desaparecidos foram a própria massa de estudantes e pais das vítimas desaparecidas, que por meio de sua justa mobilização popular conquistaram o direito de uma investigação independente, desmentiram a “verdade histórica” de Peña Nieto e forçaram a prisão do general Murillo Karam. Em agosto desse ano, devido a mobilização dessas massas, a Comissão para a Verdade e Acesso à Justiça decretou o crime como um crime de Estado, do qual participaram o grupo criminoso Guerreros Unidos e diversas instâncias do velho Estado mexicano. Segundo a Comissão, “a criação da verdade histórica foi uma ação concertada do aparelho organizado do poder desde o mais alto nível do Governo, que ocultou a verdade dos fatos, alterou as cenas do crime, ocultou os vínculos entre as autoridades e o grupo criminoso e a participação de agentes do Estado, forças de segurança e autoridades responsáveis pela aplicação da lei no desaparecimento dos estudantes”.