‘Milícias’ rurais bolsonaristas: a extrema-direita promove terror no campo

Reportagem mergulhou no interior do Brasil e entrevistou especialistas e ativistas sobre a atividade de milícias bolsonaristas rurais nos últimos dois anos.
Milícias bolsonaristas promovem terror no campo mesmo sob novo governo. Colagem editorial: @bezerra.graphic/A Nova Democracia

‘Milícias’ rurais bolsonaristas: a extrema-direita promove terror no campo

Reportagem mergulhou no interior do Brasil e entrevistou especialistas e ativistas sobre a atividade de milícias bolsonaristas rurais nos últimos dois anos.

Uma mensagem é disparada no Whatsapp para vários grupos que reúnem latifundiários da Bahia. Ela diz que indígenas que vivem em uma Terra Indígena (TI) não são os donos da área, e que devem ser expulsos. “Na Bahia, invasão de propriedade não se cria”, defende o final da convocatória de expulsão para o dia 21 de janeiro de 2024. Mais tarde, no mesmo dia, os latifundiários se reúnem, armados, em frente à TI. Eles são informados pela Polícia Militar (PM) de que não há armas no território e, assegurados pela informação e pela escolta (que observa tudo de longe), invadem a área. O confronto explode. No meio da batalha, o herdeiro de um dos coronéis assassina a sangue frio a liderança indígena Maria Fátima Muniz, conhecida como Nega Pataxó.

O grupo que reivindica o ataque é chamado de “Invasão Zero”. Fundado em 2023, ele é organizado em 200 cidades e tem vínculos com políticos e agremiações da extrema-direita, algumas delas ligadas diretamente ao ex-presidente Jair Bolsonaro, como o Instituto Harpia Brasil. “É um grupo que concebe que os que não são da turma do ‘agro’ devem morrer. E sentem-se felizes agindo dessa forma”, diz Roberto Liebgott, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), à reportagem.

Mais tarde no mesmo ano, uma série de ataques com os mesmos métodos atinge indígenas Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul. Acionados pelo Whatsapp, protegidos pela Polícia Militar e apoiados por políticos bolsonaristas, os latifundiários dirigiram em grandes caminhonetes até diferentes TIs.

O ataque é como uma invasão bárbara do século XXI: os carros cercam os territórios enquanto outros latifundiários incendeiam áreas próximas e derrubam cercas que demarcam a área. Os indígenas que resistem são atingidos por armas de fogo. Um, que é capturado por latifundiários, tem o braço violentamente quebrado.

Em menos de três dias de ataques, entre os dias 21 e 24 de julho, ao menos quatro invasões foram realizados em Douradina e dois indígenas foram baleados. O ataque não foi reivindicado por nenhum grupo específico, mas fontes apontam para a similaridade dos métodos com os do Invasão Zero.

Indígenas Guarani-Kaiowá observam cerco de pistoleiros e Força Nacional em território retomado. Foto: Banco de Dados AND

Dia a dia de uma guerra não declarada

Essa realidade é o cotidiano de indígenas, camponeses e quilombolas que resistem em diferentes pontos do país contra a ofensiva latifundiária que tem tomado novas proporções nos últimos anos, fomentada pela extrema-direita. “Esses grupos tiveram liberdade total para se armar durante o governo de Jair Bolsonaro”, diz o pesquisador Clóvis Brighenti, da Universidade de Integração Latinoamericana (Unila). “Hoje, eles estão mais organizados, violentos, agem sem pudor”.

O dossiê Oligarquias Armadas, feito pelo portal De Olhos nos Ruralistas, revelou que Bolsonaro deu autorização para que 1.051 empresas fizessem “segurança orgânica” – ou seja, contratassem e armassem seus próprios agentes; um termo legal para a pistolagem. A lei n° 13.870/2019, sancionada pelo ex-presidente, permitiu que grandes fazendeiros e funcionários portassem armas em toda a extensão das fazendas, em vez de somente na sede.

Respaldadas pela lei, as empresas do agronegócio passaram a agir abertamente contra os camponeses. Uma das listadas no dossiê é a Agropecuária Mata Sul S.A., que está envolvida em conflitos de terras com camponeses em Jaqueira, interior do Pernambuco. “Os bandidos do agronegócio invadem as casas encapuzados, com pistola, dizem que são policiais. São coisas que a gente vive no dia a dia na comunidade de Barro Branco”, detalha um camponês da região, em entrevista exclusiva. Um outro camponês foi ameaçado na sua casa por um pistoleiro. O mercenário disse que, caso a luta fosse para a frente, “o negócio não ia ficar bom”.

A luta ali ocorre há anos. Os camponeses são filhos e netos de antigos trabalhadores de uma Usina que funcionava na região e faliu na metade do século passado. Após um acordo feito, os camponeses deveriam ter a posse da área, mas o latifúndio ignora esse histórico e alega que os posseiros não têm direito à terra.

Fenômeno inevitável

Muitos não se surpreendem com o impulso que Bolsonaro deu à pistolagem. “Não poderia ser de outra forma”, pontua um representante da Liga dos Camponeses Pobres (LCP), de forma exclusiva à reportagem. Para ele, o processo se relaciona com a dinâmica da luta de classes no País. “Se mesmo com toda a traição de Luiz Inácio e Dilma, as medidas de FHC e Temer, a pandemia, os ataques e as mentiras repetidas milhões de vezes no monopólio da imprensa, os camponeses insistiam em lutar, o que restava ao genocida?”, pontua.

O representante da LCP desenvolve que o aumento da pistolagem, cada vez mais profissionalizada, foi uma escolha de Bolsonaro, na impossibilidade de atacar abertamente o movimento camponês. “O Bolsonaro não poderia contar com o Alto Comando do Exército para atacar a luta camponesa abertamente, porque os generais, sob a batuta dos ianques, dirigem a repressão ao movimento camponês de forma encoberta e preferem assim. Foram eles, os generais, os responsáveis pelos assassinatos de diversos dirigentes nossos, heróis do povo brasileiro, durante o governo do oportunismo, que sabia disso e, uma vez mais, miseravelmente calou. Se as Forças Armadas tentarem nos atacar abertamente e tiverem de explicar o ‘porque’, esta canalha sabe que abrevia seus últimos dias, porque teremos um apoio monstruoso. Bolsonaro só poderia, mesmo sendo presidente da República, apelar para a velha pistolagem. Apelou, perdeu!”.

A LCP conhece bem a relação de Bolsonaro com a pistolagem e a morosidade de determinados setores da política oficial. O movimento foi nomeado como um inimigo central pelo governo de Bolsonaro. “LCP, se prepare, não ficará de graça, no barato, o que vocês estão fazendo. Não tem espaço aqui para terroristas”, disse Bolsonaro em maio de 2021, durante um evento político em Rondônia. 

Na época, Rondônia era epicentro de um momento agudo da luta pela terra entre a LCP e latifundiários locais. Mais de mil famílias camponesas de dois acampamentos de Rondônia lutavam há um ano contra uma megaoperação policial feita sob a acusação, sem provas, de que os camponeses teriam matado dois policiais no estado. As áreas eram o Acampamento Tiago Campin dos Santos, no Norte de Rondônia, e a Área Revolucionária Manoel Ribeiro, no Sul. 

Imagens registram resistência das famílias no Acampamento Manoel Ribeiro. Foto: Resistência Camponesa

A articulação repressiva envolvia policiais de diferentes municípios e até estados próximos, tropas do Batalhão de Operações Especiais (Bope) e latifundiários e pistoleiros, conforme comprovou uma investigação do MPF de 2022. Além de planejar a invasão da terra, os policiais cercavam as áreas, ameaçavam e revistavam sistematicamente os camponeses.

A família Bolsonaro acompanhou tudo de perto. O ex-presidente publicou vídeos das manifestações camponesas no X, antigo Twitter, com a legenda: “Eu tenho minha opinião, qual a sua?”. No vídeo, famílias camponesas com bandeiras da Liga gritavam: “Nem que a coisa engrossa, essa terra é nossa”. Já seu filho Flávio Bolsonaro foi tratar da situação em uma reunião pessoal com latifundiários de Rondônia em Nova Mutum-Paraná, bem perto de uma área camponesa apoiada pela Liga.

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Bolsonaro publicou vídeo da LCP em 2020. Foto: Reprodução

Para a LCP, as ameaças não surpreenderam. “Como poderia Bolsonaro e seu séquito mais próximo silenciar diante da magnitude dessa luta camponesa, protagonizada pelas massas dirigidas pela LCP?”, questiona o representante. “O genocida cumpriu seus compromissos políticos com a reação”.

Bolsonarismo sob Lula 

A questão é que alguns esperavam que essa realidade sofreria um revés com a troca de governos, o que não aconteceu. Especialistas afirmam que a extrema-direita não se desligou do Estado, e que medidas importantes para combater a violência contra os povos do campo não são tomadas. “Até hoje, essa gente tem grande apoio do aparato do Estado”, diz Brighenti. “As medidas tomadas pelo atual governo são muito morosas. Quando olhamos para os indígenas, vemos que o governo foca em questões periféricas, e não no que é central, que é a questão territorial”.

O último relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT) apontou para um novo recorde de conflitos no campo em 2023. O documento registrou que o número de conflitos supera a série histórica desde o fim do regime militar, em 1985, o que significa estar acima dos anos de atuação das milícias da União Democrática Ruralista (UDR) no campo, na década de 1990, e de episódios como a Batalha de Corumbiara (ou Massacre de Santa Elina), em 1995, e o Massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996.

O ano de 2023 também foi recorde em violência contra os indígenas, como mostrou o relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), publicado em julho. “Os dados mostram uma realidade de violência sistêmica e crônica. Em 2023, tivemos alta em todas as categorias analisadas pelo conselho”, diz Liebgott, que foi um dos organizadores do relatório, à reportagem.

O representante da LCP chega a afirmar que “a antiga pistolagem hoje é uma política oficial do Estado, encoberta sob empresas de segurança, todas elas sob o comando de um milionário ex-militar ou ex-chefe das polícias militares, e que só enfrenta os camponeses protegida por aparatos colossais das forças do Estado – PMs, Exército ou Força Nacional de Segurança, sempre com um juiz para dar uma decisão dúbia que justifica toda violência contra o nosso bravo campesinato”.

Ameaças, incêndios e destruição

A expressão disso está nos ataques que seguem a ocorrer. Além da Bahia, Mato Grosso do Sul, Pernambuco e toda a área da Amazônia Legal (que lidera os casos de violência tanto no relatório da CPT como no do Cimi), o Ceará também tem sido palco de confrontos. Famílias da ocupação Gregório Bezerra, em Jaguaruna, resistem nesse momento a tentativas de despejo.

O ataque ocorre de forma contínua por mais de 10 dias desde a segunda semana de julho. Armados e com rostos cobertos, os paramilitares incendiaram uma caieira dos camponeses, rasgaram o pneu de uma carroça e quebraram telhas de uma casa. 

Pistoleiro em tentativa de intimidação no acampamento Gregório Bezerra, Ceará. Foto: Reprodução

Os camponeses fizeram duas ocupações na região: a Gregório Bezerra I, nas terras improdutivas do latifúndio da família de Osmar Diógenes Baquit (PDT), e a Gregório Bezerra II, em um latifúndio produtor de camarões. Fontes afirmaram que, pelas relações com os políticos locais, a Fazenda Baquit é muito temida na região, e por isso os latifundiários têm pavor da ocupação ali: o medo é de que uma vitória possa fomentar outros acampamentos na região, generalizando a luta camponesa. 

Naquela área também há influência da extrema-direita. “Identificamos isso sim. Geralmente há ligações com essa ideologia, com essa ação organizada deles”, diz Odahi Magalhães, membro da coordenação da Organização Popular (OPA). “Mas um problema também é que aquilo que chamamos de esquerda não se mexe. O governador aqui é do PT, a prefeitura também, mas não tem uma ação Estado, do governo, contra esses grupos. Por vezes tem até aliança com esses grandes fazendeiros”.

Outro caso que chama atenção, novamente na Bahia, é o do Acampamento Mãe Bernadete. Cerca de cem famílias ocuparam em outubro de 2023 um latifúndio abandonado há mais de 20 anos pela mineradora Calsete, que deve mais de R$ 100 mil em multas para o Ibama pelo corte ilegal de árvores na região, conforme revelou uma reportagem do jornal A Nova Democracia

Desde a ocupação, os confrontos foram constantes. No mesmo mês que ocuparam, as famílias enfrentaram uma megaoperação de despejo feita pela Polícia Militar (PM) de Guanambi e Carinhanha. Segundo os camponeses, treze viaturas da PM cercaram a área junto de pistoleiros pagos pela mineradora Calsete e deram início ao confronto, que durou quatro horas. Os camponeses acabaram se retirando de forma organizada, mas fizeram do episódio uma chance para reorganizar as forças e retomaram as terras dois dias depois.

Entre 2023 e 2024, eles avançaram na luta e dividiram a terra em pequenos lotes para as famílias, num processo chamado de Corte Popular. Mas as ameaças continuam. Uma delas ocorreu enquanto os camponeses vendiam seus produtos na Festa da Pega do Boi no Mato, uma celebração tradicional que reúne milhares de pessoas em uma comunidade vizinha e que é uma grande oportunidade de renda aos pequenos agricultores e acampados. Os pistoleiros entraram na terra durante a festividade e incendiaram barracos, plantações e pertences dos moradores.

Toda a destruição foi registrada em vídeo pelos camponeses quando voltaram às terras. Por trás das câmeras, uma camponesa desafia o dono da mineradora, Lineu Fernando Carvalho. “Agora você fala que é mentira, Lineu! Prova! Vaza da nossa terra, vagabundo!”, denuncia uma camponesa. Ao fundo, em coro, outros camponeses gritam: “Viva o Acampamento Mãe Bernadete!”,  “Nem que a coisa engrossa! Essa terra é nossa!”.

Autodefesa como resposta

Mesmo nesse cenário sinistro, há quem não se intimida. “Se o quadro é grave para nós, que não temos nada, é mais grave para quem tem tudo. Nós só podemos ganhar”, diz o representante da LCP. Na ocupação Gregório Bezerra, os camponeses têm chamado uma campanha de solidariedade para resistir. “Estamos firmes, as famílias estão muito animadas. Acreditamos que vamos sair vencedores dessa”, disse Thales Magalhães, da Organização Popular (OPA). Ele ressalta a solidariedade de diferentes organizações sindicais e camponesas às famílias, como o Movimento Camponês Popular, bem como da população de Jaguaruna, que soube das ações da pistolagem a partir de panfletagens dos camponeses.

No Mato Grosso Sul, indígenas Guarani-Kaiowá fizeram três Retomadas em Douradina, no mês de julho, para responder aos ataques sofridos. Organizados, eles montaram barricadas para impedir a chegada dos pistoleiros e fizeram um protesto contra o Marco Temporal e pela demarcação das terras.

Guarani-Kaiowá protestam em uma das retomadas feitas contra ataques latifundiários. Foto: Banco de Dados AND

Ao mesmo tempo, camponeses e povos originários defendem que é necessário aumentar a autodefesa de seus territórios para resistir à ofensiva armada. Em 2023, a LCP convocou, por um panfleto, camponeses, indígenas e quilombolas a organizarem grupos armados de autodefesa contra a pistolagem. 

O chamado ganhou ainda mais fôlego com a luta revolucionária internacional. “Iluminados pela heroica Resistência Nacional Palestina, de quem nos orgulhamos de carregar a bandeira desde nosso surgimento enquanto organização, só podemos reforçar nosso chamado à autodefesa”. Eles garantem que a convocatória tem tido adesão. “Nunca antes na história deste país’, tivemos tanta receptividade como nestes terríveis e alvissareiros dias”.

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