Pareceu surpresa para muitas pessoas a intensa onda de protestos por que passa o Chile desde o último trimestre do ano de 2019. Tal surpresa foi a mesma que ocorreu no Brasil por ocasião das chamadas “jornadas de junho de 2013” quando milhões de pessoas foram às ruas em protesto contra a precariedade das políticas públicas (transporte, educação, saúde) e a forma como os governos desenvolviam os grandes eventos (Copa, Olimpíadas) com remoção de favelas, truculência policial no trato com as populações pobres e intensa corrupção.
Os protestos no Chile não foram um acontecimento aleatório. Tiveram uma história de progressiva mobilização de setores da população contra os resultados das políticas de intensificação da exploração e da subjugação nacional que representaram os governos passados, sejam os de corte autoritário e fascista, seja os da chamada retomada democrática, que pouco mudou o modelo econômico antes adotado.
Assim, em 2018, massivos protestos de estudantes ocorreram contra a derrubada de uma lei visando o alcance gradual da gratuidade no ensino superior público. Lei essa conquistada após imensa rebelião estudantil ocorrida no ano de 2015. Na primeira semana de janeiro de 2019, estivadores chilenos do porto de Valparaíso retomaram os protestos por direitos, paralisando de maneira intermitente as atividades do principal porto do país. A greve dos portuários de Valparaíso teve início em novembro de 2018 e se estendeu por mais de um mês, tornando-se a segunda maior dos últimos 20 anos na região.
No Brasil, junho de 2013 foi precedido pela rebelião dos trabalhadores das obras do PAC, especialmente as usinas hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio (RO) e também Colíder (MT) em 2011. Nessas rebeliões houveram incêndios e destruição de instalações por parte dos trabalhadores, submetidos a condições de trabalho semifeudais (barracões superlotados, comidas estragadas, servidão por dívidas com empresas que vendiam alimentos e remédios a preços abusivos, acidentes de trabalho levando a mortes). Tais protestos já revelariam para quem analisa cientificamente a realidade e não apologeticamente, a farsa de um país de “classe média” com proteção ao trabalho e políticas públicas universais.
O movimento de outubro de 2019, no Chile, como no Brasil, tem no aumento das passagens de metrô seu estopim. Como ainda no Brasil, se torna multitudinário, e duas questões fundamentais para a vida da população são exigidas: o fim do regime de Previdência e, destacando nosso tema, do modelo também privatizado de saúde. No dia 19 de outubro o presidente Piñera declarou estado de emergência e toque de recolher. Naquele dia, dezenas de estações do metrô de Santiago foram queimadas pelos manifestantes, bem como numerosos ônibus de transporte urbano, como forma de causar prejuízos aos monopólios que lucram com o transporte e fazê-los recuar. Apesar disso, os protestos continuaram. Centenas de saques a megaempresas foram registrados como da Walmart, juntamente com outras cadeias varejistas e farmácias monopolistas. Os produtos das prateleiras desses locais foram tomados e distribuídos entre a população, evidenciando a crise na saúde e fome no país. Houveram mortos e muitos pessoas foram feridas nesses protestos, se destacando as intencionais cegueiras provocadas por balas de borracha atiradas nos olhos dos manifestantes. E casos de violência sexual cometidos pela polícia.
Além da repressão, outras medidas foram tomadas pelo governo do Chile para tentar acabar com os protestos. Inicialmente, uma mudança no gabinete ministerial e suspensão do toque de recolhe. No final de novembro a Câmara dos Deputados aprovou redução de 50% doo salários de “altas autoridades”, promessa não cumprida do Presidente.
Uma forma de conciliação para acabar com os protestos, aprovada por todos os partidos no Congresso (com a abstenção do Partido Comunista) foi a convocação para 2020 de uma Assembleia Constituinte, para modificar a Constituição com 2/3 de quórum.
Tal proposta não arrefeceu as mobilizações pois se percebeu que isso não mudaria a situação atual (pode-se mudar a Constituição com 2/3 de votos). Soluções imediatas são exigidas pelas massas que seguem em luta.
Algumas questões emergem desses protestos. Em primeiro lugar, as classes dominantes lançam mão de mudanças legislativas para controlar o ímpeto de mudanças da população. Dado que a experiência latino-americana mostra que as leis nesses países são letra morta quando afetam interesses das classes dominantes (veja o caso do SUS brasileiro), e que as eleições são intensamente manipuladas por mecanismos tradicionais de clientelismo/coronelismo e manipulação por dinheiro. Em segundo lugar, não é possível considerar esses protestos como eventos inesperados. O capitalismo implantado nos países periféricos ou dominados, além de aprofundar as características precarizadas em relação ao trabalho que lhe é própria na atualidade, mantém o tradicional papel de exportador de commodities que acentua a concentração da riqueza. A mercantilização das políticas sociais e a extração da renda pelos banqueiros internacionais através da dívida pública transforma o Estado num aparelho de sugar dinheiro da nação para entregar ao imperialismo. Tal processo não pode ocorrer sem uma raiva latente por parte do povo, uma acumulação crescente de material inflamável feita de indignação, ressentimentos e ira represados. Esta matéria se amplifica pelas medidas de repressão que vão sendo tomadas pelo Estado para contê-las: a criminalização dos pobres, a retirada dos poucos direitos existentes como leis trabalhistas e previdenciárias, a imposição de leis autoritárias para lidar com os conflitos sociais.
A saúde no Chile foi matéria inflamável dos protestos. A privatização do seguro universal de saúde que havia antes de Pinochet tem como resultado que 35,1% da renda das famílias é gasta com saúde (média de 20,6% dos países da OCDE). Segundo informações do Ministério da Saúde, em junho de 2019, mais de 1,5 milhão de pessoas estavam em lista de espera de um especialista ou de uma cirurgia. Mais de 130 mil desses pedidos estão abertos há dois ou três anos.
Rechaçando a postergação da nova Constituição, a manutenção dos protestos tem obtido respostas mais imediatas do governo chileno: uma reforma do sistema foi anunciada pelo Ministro da Saúde e o Congresso chileno fechou um acordo para aumentar a aposentadoria mínima dos idosos acima de 80 anos em 50% a partir de janeiro de 2020. Além disso, também decidiu reduzir pela metade a tarifa de transporte público para aposentados mais velhos que 65 anos.
Tais medidas são paliativas mas mostram que para alcançar mais vitórias e mais pressão e mais dura sobre o Estado se faz necessário. Uma chispa pode incendiar a pradaria.
“Fico um pouco feliz que esses protestos tenham surgido, (foi bom) para mim e para tantas pessoas que estão doentes. Os jovens foram ousados. Se eu pudesse me mover, sairia com uma placa dizendo que há anos estou esperando por saúde“, diz uma entrevistada pela BBC.
820 mil pessoas foram as ruas de Santiago em protesto histórico no Chile, no dia 25 de outubro de 2019. Foto: Banco de Dados AND