Elza Soares deixou marcante obra na música brasileira. Foto: Reprodução.
“Não sei se me considero uma estrela não… Me considero um soldado raso, um trabalhador pela música.”
Elza Soares, em entrevista no programa Matador de Passarinho
A cantora e compositora carioca Elza Soares morreu de causas naturais, no dia 20 de janeiro de 2022. Deixa para a cultura nacional um legado de mais de 60 anos de prolífica e consistente carreira, sobretudo como intérprete, atravessada por sua personalidade marcante e pela potência de sua voz.
Nascida na favela da Moça Bonita, Elza teve uma vida marcada por agruras, das quais sempre tratou com transparência. Já era viúva de um casamento que consumou aos 12 anos de idade, tendo perdido dois filhos por desnutrição e sustentando outros quatro quando tentou se lançar como cantora. Em 1953, no programa de rádio “Calouros em Desfile”, é recebida com a pergunta debochada de Ary Barroso “De que planeta você veio, minha filha?”, ao que Elza responde “Do mesmo planeta que o senhor, Seu Ary. Do planeta fome”. Sua interpretação de “Lama”, de Paulo Marques e Aylce Chaves ganhou a nota máxima do programa e fez Ary exclamar que ali nascia uma estrela.
Cena de Elza Soares no filme ‘O vendedor de linguiça’ (1962), com Mazzaropi.
A carreira de Elza foi cimentada em repertório de temas populares e românticos, perpassada pela exaltação do povo preto e por sua preocupação com a opressão feminina – ela mesmo tendo sido sobrevivente de violência doméstica. Ressalta-se sua inclinação para o samba, em especial na sequência de praticamente um LP por ano desde seu debut Se acaso você chegasse (1960), passando por A bossa negra (1961), Um show de Elza (1969) e Elza pede passagem (1972), este último incorporando elementos de produção da black music. Fez também vários álbuns em colaboração, a exemplo dos três volumes de Elza, Miltinho e Samba (1967, 1968, 1969), Elza Soares & Wilson das Neves (1968) e Sangue, suor e raça (1972), com Roberto Ribeiro. Consolida-se como uma das mais distintas intérpretes da música brasileira, com sua técnica “rasgada” de cantar e sua expressividade.
Elza no Festival da Música Popular Brasileira, em 1966. Foto: Domicio Pinheiro/Estadão.
Elza manteve-se muito ativa nos últimos anos de sua vida, dos quais se sobressai o álbum A mulher do fim do mundo (2015), também colaborativo – desta vez com artistas da recente “cena paulista” como Rômulo Fróes e Kiko Dinucci – que introduziu uma vibrante e octogenária Elza Soares às novas gerações. Reproduzimos abaixo a letra de uma canção do álbum supracitado, autoria de Fróes e Alice Coutinho para Elza. Como previsto, esta mulher cantou até o fim, cantou tudo o que pôde.
A mulher do fim do mundo
Meu choro não é nada além de carnaval
É lágrima de samba na ponta dos pés
A multidão avança como vendaval
Me joga na avenida que não sei qualé
Pirata e Super Homem cantam o calor
Um peixe amarelo beija minha mão
As asas de um anjo soltas pelo chão
Na chuva de confetes deixo a minha dor
Na avenida deixei lá
A pele preta e a minha voz
Na avenida deixei lá
A minha fala, minha opinião
A minha casa, minha solidão
Joguei do alto do terceiro andar
Quebrei a cara e me livrei do resto dessa vida
Na avenida dura até o fim
Mulher do fim do mundo
Eu sou e vou até o fim cantar