Morte e ‘Vida’ de Roberto Burros N’água

Morte e ‘Vida’ de Roberto Burros N’água

NOTA DA REDAÇÃO DE AND: O presente artigo de opinião faz referência ao episódio ocorrido no último dia 23/10, em que o ex-parlamentar de extrema-direita, Roberto Jefferson, atirou com mais de 50 tiros de fuzil e lançou 3 granadas contra agentes da Polícia Federal (PF) que cumpriam a ordem de prisão expedida por Alexandre de Moraes após ataques à ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia. Jefferson, que estava em regime de prisão domiciliar com arsenal de guerra, convocou outros extremistas de direita a “resistir contra a opressão e tirania” do STF.

Nas primeiras horas após a recusa de Roberto Jefferson se entregar, Bolsonaro mandou seu ministro da Justiça ao local e repudiou tanto a Roberto Jefferson (seus ataques à ministra e sua ação armada contra agentes da PF) quanto o STF (afirmando que a ordem de prisão contra Roberto Jefferson tratava-se de “inquéritos sem nenhum respaldo na Constituição e sem atuação do Ministério Público [MP]). Horas depois, anunciando a prisão do ex-parlamentar, Bolsonaro afirmou que o tratamento a quem atira contra policiais é o de bandido – se desvencilhando daquele que, até ontem, era um dos aliados da extrema-direita. Seu repúdio a Roberto Jefferson tem como objetivo não se queimar eleitoralmente, dado que a disputa eleitoral tem exigido dele manter alguma pose de moderado com relação à divisão dos poderes, e da “democracia”.

O contexto em que a ação ocorreu, por sua vez, é sintomático do quadro de crise política em meio à farsa eleitoral: 6 dias antes do episódio Roberto Jefferson, o candidato do Bolsonaro ao governo de SP, durante visita à favela de Paraisópolis, afirmou ter sido vítima de um atentado, que depois de apurado, constatou-se ser troca de tiros sem qualquer relação com a presença do candidato. E 3 dias antes, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) havia possibilitado a retirada de conteúdos falsos de forma mais rápida (tendo inclusive censurado termos de um editorial da Jovem Pan). A ação de Roberto Jefferson representa o grau de decomposição das instituições brasileiras, fruto da grave crise de toda a velha ordem.

Segue, aqui, o artigo:


Agentes da PF conversam amigavelmente com Roberto Jefferson após esse alvejar a PF com 50 tiros de fuzil e três granadas. Foto: Reprodução

Os recentes tragicômicos episódios envolvendo nefasta figura do mundo político oficial, expoente de uma extrema-direita caricaturesca, que tão bem retrata a crise de decomposição do capitalismo burocrático agonizante no país, trouxeram à superfície o papel do martírio e dos heróis, ainda que como fraude. Seja quem for ou sua causa é inegável o efeito moral provocado pelo martírio. A ideia da escolha consciente pela morte em nome de ideais elevados espanta ao mesmo tempo que seduz. Não é absurdo afirmar que é o sangue dos mártires o combustível de sua causa. Há certeza no triunfo da ideia/espírito sobre a carne. Inclusive a própria certeza, apesar de estar na base da crença religiosa entre a maioria da humanidade, cabe a poucos a responsabilidade de confirmá-la com o seu exemplo e são imortalizados pelos demais em sua deferência.

Assim foram os primeiros cristãos, os terroristas russos do século XIX [1] e, também, os radicais muçulmanos em seus ataques suicidas. Apesar de não serem bem vistos por aqui, não esqueçamos a comoção causada pelo assassinato de Bin Laden em certas regiões do Paquistão e as inúmeras gravações de crianças sírias e iraquianas afirmando seu desejo de se tornarem a próxima geração de mártires do Estado Islâmico. Sem a intenção de aprofundar no debate militar e ético, devido à relevância conferida aos mártires, várias sociedades o instrumentalizaram para fins de exaltação moral, transformando o martírio numa espécie de suicídio honroso à revelia do pecaminoso dos desesperados que é condenado por todas as religiões. Em síntese: atirar-se contra um trem é fraqueza, contra o fogo inimigo é heroísmo.

Na política a morte heroica encontrou lugar em sociedades e circunstâncias as mais diversas. Tomemos dois exemplos: 1) Em 1970, o escritor Yukio Mishima, saudosista do velho Japão imperial defumado na velha doutrina do Bushido [2], acompanhado de quatro seguidores armados apenas de katanas [3], ensaiou um golpe militar prendendo um general e, em seguida, discursou da varanda de um prédio oficial conclamando aos demais soldados restituir o poder ao Imperador. Como era de se esperar, foi ridicularizado pela tropa que não obedeceu aos seus comandos. Fracassado e sem esperança de reverter a humilhação pessoal e a sua causa, o pretenso samurai, aspirante a xogum [4], se retirou da varanda e auxiliado pelos seus seguidores realizou o suicídio ritual samurai, o seppuku. Graças ao feito, como a sua carreira literária anterior, o nome de Mishima não caiu no ridículo como se esperaria de qualquer pessoa que, com quatro espadachins, tentasse dar um golpe de estado. 2) os Dezoito do Forte de Copacabana que, após a certeira derrota militar, deram a maior contribuição possível à causa do Tenentismo: saíram em marcha pela Avenida Atlântica em direção à sede do governo. Naturalmente, foram todos mortos e/ou feridos em combate, mas seu ato lhes garantiu a vitória moral sobre Epitácio Pessoa, que, ao contrário deles, mal é lembrado senão como mais um oligarca a governar a República Velha. 

Para ficar num exemplo mais recente do poder de comoção envolto na ideia do martírio e de sua manipulação pelas classes dominantes reacionárias no país, lembremos o episódio do atentado sofrido pelo então presidenciável Jair Bolsonaro em 2018, evento exaustivamente utilizado pela sua máquina de contrapropaganda digital e decisivo para sua vitória no pleito. 

Encerrada essa breve introdução, voltemos nossa atenção ao mais recente episódio envolvendo o renegado do Centrão e recém ingresso nas fileiras mais patológicas da extrema-direita, Roberto Jefferson, impedido de participar das atuais eleições presidenciais devido a sua prisão domiciliar, mas muito bem representado pelo seu vice, o patético “candidato Padre”. Essa figura caricaturesca ensaiou recentemente uma tragédia “heroica” em pequenos vídeos nas redes sociais. Após atacar a reputação e mesmo a moral sexual da ministra Carmen Lúcia, o paladino da “família tradicional brasileira” viu-se diante de mais um mandado de prisão expedido pelo ministro Alexandre de Moraes, respondendo com a promessa de “não se entregar” ao exibir seu fuzil de plataforma AR-15 nas redes sociais. Num domingo monótono os olhos dos monopólios de imprensa se viraram para sua casa num pacato condomínio no interior do Rio de Janeiro, no que se esperava um “grande combate”. 

A princípio os policiais federais – como de praxe em qualquer ação contra indivíduos das classes dominantes – apresentaram, cheio de dedos, o mandado de prisão para o ex-parlamentar que, ainda assim, reagiu com violência e rapidamente abriu fogo contra os agentes, com direito a tiros de 5.56mm e o arremesso de duas granadas de efeito moral, cujos estilhaços feriram dois policiais que terminaram hospitalizados. Prontamente, o presidente fascista Bolsonaro, temendo a escalada do conflito nas vésperas do segundo turno, no qual desesperado por votos pretende se apresentar como um “bom moço”, amigo dos nordestinos, dos posseiros do Amazonas e das mulheres, enviou seu Ministro da Justiça ao local para tentar acalmar os ânimos. Também estiveram no local militantes de extrema-direita e o tal padre político que passou a intermediar a negociação entre o “irredutível” Roberto Jefferson, que parecia fazer de “Deus, Pátria, Família, Vida e Liberdade… Liberdade!”  suas palavras finais em sua reedição do “400 contra 1” [5], o que acabou redundando numa “Batalha de Itararé” [6].

Após sua vergonhosa rendição, em meio a uma conversa amistosa com um outro risonho agente da PF, aquele que não iria se entregar às “violências do Xandão(sic)”, que se orgulhou de ter disparado contra a PF, se explicava humildemente dizendo que não pretendia acertar os agentes policiais e que os teve inúmeras vezes em sua mira, mas não disparou – um gesto de humanidade. Como tais declarações destoam do mesmo Roberto Jefferson duas horas antes, pareciam dois indivíduos distintos. O primeiro “só saía morto” e o segundo saiu vivo. “O líder não é só de palavra, mas dá o exemplo”, afirmou corretamente em meio às bravatas. Infelizmente para a extrema direita, ele não deu tal “exemplo”. Poderia, toscamente (como tudo da extrema-direita brasileira) se alçar a mártir do “bolsonarismo raiz”, mas preferiu se manter como insosso bobo da corte. 

Se por um lado, circunstancialmente, ele pode reivindicar ainda uma pequena vitória política por conseguir mobilizar algumas dezenas de fascistóides para defendê-lo e pela projeção alcançada com sua patuscada, politicamente queimou-se enquanto subchefe da extrema direita bolsonarista – mesmo Bolsonaro que salvou sua pele teve de renegá-lo mais que três vezes nesta reta final de sua campanha – prejudicando a si e ao seu Messias. Moralmente, num caminho oposto ao fundador de seu partido (PTB), Getúlio Vargas, saiu da história (mais preciso seria dizer do submundo da política) para entrar na vida particular medíocre de mais um político presidiário. Talvez morto, quiçá apenas baleado, sua intentona produzisse um efeito mais favorável ou menos medíocre ao seu grupelho de tresloucados. Como o pastorzinho de ovelhas travesso, que de tanto anunciar a vinda do lobo nenhum outro aldeão já lhe dá crédito, o bravateiro poderá anunciar quantas vezes quiser sua morte ritual sem que surta o mesmo efeito.

Eis as cenas escatológicas de uma sociedade terminal, cuja classe dominante é débil até para morrer. 

Notas:

[1] Conjunto de ações realizadas na segunda metade do século XIX e no início do século XX, por diversos movimentos políticos russos, com o objetivo de derrubar o império czarista pela realização sistemática de atentados contra autoridades governamentais. Nesse contexto, o “terrorismo” era concebido como uma forma de desestabilizar o governo e pressioná-lo por reformas, além de ser uma forma de insuflar o povo a se rebelar contra o status quo.

[2] Termo da língua japonesa que significa literalmente “caminho do guerreiro” (do japonês “bushi” = guerreiro; “do” = caminho). Este correspondia a um código de honra subentendido, não escrito e que de certa forma ditava o modo de vida dos guerreiros samurais do Japão feudal. Era uma série de regras que davam parâmetros ao guerreiro para que este tivesse uma vida e morte com honra.

[3] Katana ou catana é uma espada japonesa tradicional, que foi usada pelos samurais do Japão antigo e feudal. A katana é caracterizada por: uma lâmina curva de um único fio, com uma guarda (tsuba) circular ou esquadrada e um cabo longo para acomodar duas mãos.

[4] É a abreviação do termo japonês Seii Taishōgun, “Grande General Apaziguador dos Bárbaros”. Na prática correspondeu a uma espécie de ditador militar hereditário do Japão que exercia o poder temporal em nome do Imperador, que por séculos exerceu apenas função cerimonial devido a crença em sua ascendência divina.

[5] “400 contra 1 – Uma História do Crime Organizado” é um filme brasileiro dirigido por Caco Souza. Com estreia em 06 de agosto de 2010, aborda a história do Comando Vermelho, uma das maiores organizações criminosas do Brasil. Seu nome faz referência ao episódio da morte do assaltante Zé Bigode, que morreu durante um cerco de 12 horas à sua residência no qual participaram 400 policiais.

[6] Referência ao conhecido episódio da história contemporânea brasileira, ocorrido na cidade de mesmo nome, no contexto da reestruturação do velho Estado brasileiro em 1930. Na ocasião, após grande alarde pela imprensa e a criação de certa comoção acerca de um “inevitável confronto sangrento entre as tropas de Getúlio Vargas e Washington Luís”, tal batalha nunca ocorreu. Por esse motivo, esse termo é utilizado, geralmente em tom irônico, para se referir a batalhas em que se criam grande expectativa, mas que não se concretizam. 

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