MS: Força Nacional consolida 12 anos de atuação contra indígenas no estado a mando do latifúndio

MS: Força Nacional consolida 12 anos de atuação contra indígenas no estado a mando do latifúndio

Em 28 de julho de 2022, o governo federal anunciou, por meio do Diário Oficial da União, a intervenção da Força Nacional de Segurança Pública (FNSP) em três municípios de Mato Grosso do Sul: Amambai, Caarapó e Naviraí. De acordo com a portaria nº 136, a FNSP vai atuar até 31 de dezembro deste ano com o intuito de “preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio” – propósito da força desde sua criação no governo de Luiz Inácio, em 2004. A medida é uma clara resposta ao avanço da combatividade na luta pela terra na região, encabeçada principalmente pelo povo Guarani-Kaiowá nas retomadas (tekoharã) de seus territórios tradicionais.

RETOMADAS INDÍGENAS E A LUTA DE CLASSES NO CAMPO EM MS

Há que se destacar como um estopim dessa situação o assassinato do jovem guerreiro Alex Lopes, de 18 anos, em 21 de maio de 2022, no município de Coronel Sapucaia. Antes do raiar do dia seguinte e como resposta a sua morte, os indígenas em luta retomaram o latifúndio onde ocorreu o crime. Poucos dias depois, em 26 de maio, o presidente do sindicato rural de Amambai solicitou a intervenção da Polícia Federal (PF) e os sindicatos rurais de 11 cidades do Mato Grosso do Sul convidaram Nabhan Garcia, o então representante da Secretaria Especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, para um encontro entre latifundiários e “autoridades” nos dias 28, 29 e 30 daquele mês, em Ponta Porã. São elas: Amambai, Antônio João, Caarapó, Coronel Sapucaia, Dois Irmãos do Buriti, Douradina, Iguatemi, Rio Brilhante, Ponta Porã, Sidrolândia e Tacuru.

O apelo à PF – praticamente uma “carta convite” dos latifundiários de MS à FNSP – dizia que o estado “voltou a enfrentar situações de conflito agrário, em face de invasões de propriedades privadas perpetradas por indígenas nos últimos dez dias”, mencionando “invasões” em Amambai e Aral Moreira, em 23 de maio. A verdade é que a luta dos indígenas através de retomadas nunca deixou de ocorrer no MS. Nas proximidades de Jopara, por exemplo, fica Kurusu Amba, que foi palco do assassinato de duas lideranças em 2007 (Xurite e Ortiz Lopes, de 70 e 46 anos, respectivamente) e que já sofreu intervenção da FNSP em 2015. A diferença é que, de fato, vive-se um momento de agudização da luta de classes no campo, não só no estado, mas no país todo. Afinal, ao contrário do que o genocida Jair Bolsonaro diz, a luta no campo cresce de Norte a Sul – como já demonstrado pelo AND em Cresce o número de famílias em tomadas de terras por todo o Brasil.

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O reconhecimento do avanço da luta indígena fica patente no apelo desesperado dos latifundiários, quando dizem que há “155 propriedades privadas invadidas” na região. De fato, os tekoharã tem aumentado, conforme pode-se ver no Gráfico 1: de seis retomadas em 2004 e 14 no ano seguinte, os indígenas passaram a 30 territórios reocupados em 2013, ano em que atingiu seu auge – o mesmo ano das Jornadas de Junho. Este é certamente um sintoma da falência da gestão do oportunismo no campo e de que as massas haviam cansado de esperar pelo processo de demarcação do velho Estado. Outro sintoma de falência do oportunismo é que, no mesmo período em que crescem as retomadas indígenas, diminuem as ocupações camponesas, dirigidas na região principalmente pelo MST. Após certo declínio das autodemarcações de terra em 2014-2015, o alto número de 20 tekoharã é atingido em 2016 [1]. Em tal ano, se viu a decisão dos indígenas de Caarapó que, diante da intervenção federal, não hesitaram em retomar seus territórios. Após certo refluxo nas lutas, seguiram-se, então, as destacadas retomadas de Teko-Ava (Naviraí) e Laranjeira Ñanderu (Rio Brilhante), em 2021. E, mesmo depois do apelo dos latifundiários em 2022, ainda houveram as conquistas de Kurupi (Naviraí) e Guapo’y Tuju’i Mirim (Amambai).

Fortalecendo a operação policial, uma segunda leva de agentes da FNSP foi encaminhada para o estado no período da farsa eleitoral. Isto se deu a partir da medida prevista pelo Código Eleitoral (1965) herdado do regime militar. Se, no primeiro turno, foram mandados efetivos para 561 localidades de 11 estados e, no segundo, apenas para 80 localidades de 4 estados [2], a continuação das nove cidades do MS (Amambai, Antônio João, Aral Moreira, Bela Vista, Caarapó, Caracol, Coronel Sapucaia, Paranhos e Ponta Porã) na lista demonstra o sinal de alerta ligado pela reação para com a luta local. Amambai e Caarapó se repetem no destino das tropas, uma vez que já receberam em julho. Soma-se à elas Coronel Sapucaia, abarcando, assim, as quatro cidades (junto com Naviraí) com o maior histórico de lutas por terra e território recentes.

A operação da FNSP, que foi autorizada pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, se justificaria pela “presença significativa da população indígena e proximidade da linha internacional de fronteira”, segundo revelou o monopólio de imprensa Dourado News [3]. E, de fato, outras cidades proeminentes na questão indígena são escolhidas como destino das tropas reacionárias: Aral Moreira – em que há o Tekoha Guaiviry, local da morte de Nísio Gomes em 2011 – e Antônio João, local do território Ñanderu Marangatu, onde morreu Simeão Vilhalva em 2015. Para ambas, já foram enviadas tropas da FNSP após as mortes dessas respectivas lideranças como tentativa, fracassada, de deter a luta dos indígenas.

Há que se destacar também os recentes exercícios militares que as Forças Armadas vêm fazendo que dizem respeito à região e relacionam-se com a luta indígena. Em agosto de 2022, a simulação “Guardião Cibernético 4.0”, organizada pelo Comando de Defesa Cibernética do Exército para as eleições contou com um cenário em que se combatia a organização política “Ideal Proletário Pantaneiro” (IPP) – em menção a um dos biomais mais famosos do MS e em alusão, na sanha anticomunista das Forças Armadas reacionárias, ao Exército do Povo Paraguaio (EPP), organização guerrilheira que se reivindica marxista-leninista e que tem como prática o justiçamento de pistoleiros e políticos ligados ao latifúndio [4]. O IPP exigiria, no exercício dos militares reacionários, a “demarcação de reservas” que pertenceriam a seu território originalmente, o que claramente é um paralelo com a luta dos indígenas pelas suas terras.

HISTÓRIA DA FORÇA NACIONAL EM MS E O AVANÇO DA MILITARIZAÇÃO NO CAMPO

O envio de tropas militares para a região está em consonância com o constante avanço da militarização dos Estados burocrático-latifundiários na América Latina a serviço do imperialismo, principalmente ianque. Emblemática para a comprovação disso, a própria “inspiração” para a criação da FNSP é o modelo da Organização das Nações Unidas (ONU) de “intervenção para paz”. Na sua origem, tal força recebeu auxílio de instrutores dos EUA, Israel e Colômbia [5] – ou seja, justamente da maior potência imperialista e dois capachos do mesmo: o Estado responsável pelo genocídio palestino e o país do subcontinente latino-americano que “cooperam” com o imperialismo ianque no pretenso combate ao tráfico de drogas e às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). A partir dessa “filosofia” e desses treinamentos, é que a FNSP tem registrado um longo histórico de intervenções no MS, geralmente sob a fachada de combate ao tráfico de drogas, mas, na verdade, com clara intenção de ser tropa de defesa do latifúndio diante dos embates pela terra na região.

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Desde julho de 2011, a FNSP está presente na região fronteiriça do Mato Grosso do Sul e “apoia as forças locais no policiamento ostensivo, a fim de evitar conflitos entre indígenas e não índios”, conforme a Agência Brasil [6]. A sua estada foi tornada permanente em novembro daquele ano após o assassinato de Nísio Gomes, em Guaiviry (Aral Moreira). Em junho de 2015, sua atuação foi expandida para Amambai e Coronel Sapucaia; no mês seguinte, para Antônio João e Japorã. Em agosto do mesmo ano, a permanência da FN no estado foi dilatada por seis meses, o que ocorreu novamente em fevereiro de 2016. Antes do fim do prazo dessa prorrogação, em junho, os militares chegam em Caarapó, palco de batalha dos Guarani-Kaiowá contra o latifúndio na retomada Tey’ikue e da morte do agente de saúde Clodiodi Aquileu dos Santos, de 26 anos, no chamado “massacre de Caarapó”. De forma quase ininterrupta, sucessivamente se aumentou esse prazo de atuação na região até hoje.

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A atuação da FNSP na região antecipou até mesmo o ensaio de intervenção militar no Rio de Janeiro em 2018, mostrando como a luta no campo se agudiza ainda mais do que na cidade. A atuação dessas forças do velho Estado tem a clara intenção de coibir a luta do povo Guarani-Kaiowá e tem promovido um verdadeiro terrorismo contra os indígenas. Em 2018, a FNSP invadiu a Tey’ikue, prendeu a liderança Leonardo de Souza, de 57 anos, pai de Clodiodi, e ainda ameaçou exterminar o resto da família. Em 2020, essas tropas atiraram contra os indígenas, em uma incursão na área em conjunto com o latifúndio, representado pelo sindicato rural.

Em todos esses casos, o velho Estado brasileiro, além de criar os problemas e assassinar o povo, os culpa por lutar. Em junho de 2015, criticado pela não-demarcação, o Ministro da Justiça de Dilma Rousseff, José Eduardo Cardozo, disse que a culpa dos conflitos não era do governo, mas que é o “radicalismo” que “gera morte e conflitos” [6]. Nada diferente de Bolsonaro, que culpou os indígenas e “caboclos” pela destruição de suas terras e que responsabilizou o jornalista inglês Dom Phillips e o indigenista Bruno Araújo pelos próprios “sumiços”.

BREVE HISTÓRICO E TENDÊNCIAS DA LUTA NA REGIÃO

É preciso lembrar que a média anual de assassinatos de indígenas, segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), passou de 20,9 nos mandatos de FHC (1995-2002) para 56,5 na gestão Lula (2003-2010), num aumento de 170,7% [7]. O aumento prosseguiu nos governos Dilma e Temer, quando consolidou-se a atuação da FNSP na região, tendo o número de assassinatos atingido o recorde (até então) de 138 mortes no governo Dilma, em 2014, conforme mostra o Gráfico 2 [8]. Dois anos depois, a ONU denunciou um aumento de 50% desses crimes entre 2006-2016 e afirmou que o estado do MS era o estado mais perigoso para os povos indígenas. Sob o governo genocida militar de Bolsonaro, a média de assassinatos de 123 indígenas no período de 2015-2019 subiu para 179 em 2020-2021 [9], num aumento de 45,5%.

Fonte: Souza & Mizusaki, 2022, p. 18.

O que se observa é que nenhum dos governos de turno pôde resolver o problema dos povos indígenas, pois esse é um problema ligado à concentração de terra promovido pelo velho Estado burocrático-latifundiário à serviço do imperialismo, principalmente ianque. De fato, na região, diversos territórios reivindicados pelos Guarani-Kaiowá entram em contradição com propriedades de políticos-latifundiários da região. Por exemplo, a ex-candidata a presidente Simone Tebet tem o registro da fazenda Santo Antônio da Matinha (Caarapó), de 860 hectares, que está na área do Tekoha Pindorocky, na Terra Indígena Amambaipeguá. A fazenda Yvu, palco do assassinato já mencionado de Clodiodi, também fica na mesma área das terras de Tebet. Sua ligação umbilical com o latifúndio é patente: dos quase 3,3 milhões recebidos para sua campanha ao Senado em 2014, mais de 2,8 milhões são originários de grupos do “agronegócio”, dentre eles a JBS [10]. Atualmente, a ex-senadora é cotada para assumir algum Ministério no vindouro governo Lula. No cenário estadual, Tebet declarou apoio ao representante oficial do latifúndio e de 50 sindicatos rurais, Eduardo Riedel. A maior parte do PT também declarou estar apoiando “criticamente” Riedel num pretenso combate ao “bolsonarismo” [11] (embora os dois candidatos do MS tenham declarado apoio a Bolsonaro). Figura de destaque nesse apoio é Zeca do PT: dono de propriedades de 145 e 50 hectares em Dois Irmãos do Buriti, ele é filiado ao mesmo sindicato rural citado nominalmente na “carta convite” mencionada no começo da reportagem [12].

Do outro lado, os Guarani-Kaiowá anunciaram a realização de sua grande assembleia, o Aty Guasu, para dezembro. Historicamente, a reunião tem gerado grandes e combativas decisões com relação à luta. Em junho de 2021, por exemplo, em plena pandemia e no território da morte de Clodiodi, os indígenas deliberaram combater o Marco Temporal por meio do fechamento de rodovias. Dito e feito: eles fecharam dezenas de rodovias em várias cidades. Além disso, o Aty Guasu fez uma carta de apoio à luta da Liga dos Camponeses Pobres (LCP). Nesse ano, os Guarani-Kaiowá, por meio de sua assembleia, deflagraram o apoio à luta dos estudantes da FAIND contra o fechamento de seus cursos. Mais recentemente, durante a celebração de 20 anos do AND, representantes presentes do Aty Guasu afirmaram que a luta não para, mesmo diante dos ataques, e que os Guarani-Kaiowá estão se preparando para responder à altura os golpes que vêm sofrendo. A próxima grande assembleia certamente será então decisiva para os rumos que tomará a luta desse povo e a luta pela terra como um todo na região.

Notas:

1 – Souza, José Gilberto de; Mizusaki, Márcia Yukari. Retomadas (tekoharã) no Mato Grosso do Sul e enfrentamento da lógica de financeirização do território. GEOUSP (online), São Paulo, v. 26, n. 1. p. 15.

2 – Os outros estados são Acre, Mato Grosso e Tocantis. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o AC tem a quinta maior quantidade de famílias envolvidas em conflitos por terra em 2021 (10.567); o MT tem o quinto maior número de ocorrências de conflito de terra em 2021 (79); e TO, compondo a região do Matopiba com o anterior, é o terceiro estado com mais assassinatos devido a conflitos agrários em 2021 (3). Fontes: Borges, Rebeca. Estados da Amazônia concentraram 52% dos conflitos por terra em 2021. Metrópoles, 18/04/2022; Prizibisczki, Cristiane. Amazônia concentra 80% do total de assassinatos em conflitos no campo. O Eco, 18/04/2022.

3 – Carbonari, Wender. Nove cidades vão receber apoio da Força Nacional no 1º turno das eleições. Dourados News, 19/09/2022.

4 – O EPP e suas ações já foram objetos de notícias do AND em diversas ocasiões, vide: “Paraguai: EPP captura ex-vice-presidente em resposta a terrorismo da Estado” (14/09/2020), “Paraguai: Crianças filhas de dirigentes do EPP são assassinadas por ‘força-tarefa’” (08/09/2020), “Paraguai: Velho Estado condena membros do Exército do Povo Paraguaio” (10/07/2020), “Paraguai: Combatentes do EPP eliminam pistoleiro de latifundiários brasileiros” (11/07/2019), entre outras.

5 – Mendes, Vannildo. A elite da elite da Força Nacional de Segurança. O Estado de S.Paulo, 05/07/2008.

6 – Rodrigues, Alex. Ministério da Justiça autoriza envio da Força Nacional para Mato Grosso do Sul. Agência Brasil, 26/06/2015.

7 – Souza, André de. Assassinato de índios aumenta 168% nos governos Lula e Dilma. O Globo, 07/06/2013.

8 – Souza & Mizusaki, 2022, p. 18.

9 – Rangel, Lucia Helena; Liebgott, Roberto Antonio. Sob Bolsonaro, a violência contra os povos indígenas foi naturalizada. Le Monde Diplomatique Brasil, 17/08/2022.

10 – Para mais detalhes sobre Tebet, ver: Quadros, Vasconcelo. Fazendeira e ruralista, Simone Tebet perde aliados no MS ao se afastar do bolsonarismo. A Pública, 05/07/2022.

11 – Bitencourt, Edivaldo. Com Lula rejeitado por ambos, maioria do PT optou por Riedel no 2º turno, diz presidente regional. O Jacaré, 29/10/2022.

12 – Redação. Zeca do PT passa a integrar a classe ruralista de MS. A Gazeta News, 12/06/2009.

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