No dia 16 de dezembro, os Guarani-Kaiowá da comunidade Pyelito Kue retomaram mais uma parte do seu território originário ao adentrarem na fazenda Cachoeira, em Iguatemi (MS). Os cerca de 30 homens, mulheres e crianças ocuparam uma pequena área de mata dentro do latifúndio de quase 2,4 mil hectares que fica praticamente todo sobreposto à terra indígena (TI) Iguatemipegua I, que abrange Pyelito Kue e outros oito tekoha (terra tradicional). Atualmente, a comunidade ocupa apenas 100 hectares do que seria seu por direito. Após sua justa retomada, o grupo foi atacado por pistoleiros a mando do latifúndio – assim como no mês anterior.
A área de mata ocupada, chamada pelos Guarani-Kaiowá de “Tororõ”, é uma das poucas áreas do território que não foi desmatada pelos latifundiários e coberta por pastagens, segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Típico do latifúndio, a maior parte de suas propriedades no local servem apenas para pastagem, não para alimentar o povo. Segundo dados do site De Olho nos Ruralistas, 91% dos 41,5 mil hectares delimitados em 2013 para a TI Iguatemipegua I estão sobrepostos por 69 fazendas e 68% da área é coberta por pastagem. Inclusive, há um avanço do latifúndio com relação a 2013, quando existiam 46 sobreposições totalizando 32,2 mil hectares (77,5%), conforme o “Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação” publicado naquele ano.
Indígenas acusam latifundiários de atuação conjunta
Dentre os latifúndios, se destacam as fazendas Cachoeira, Santa Rita, Vera Cruz e Maringá – acusadas pelos indígenas de atuarem conjuntamente no contrato de “seguranças privados” para ataca-los. Além da sobreposição de 2,3 mil hectares da Cachoeira, as demais ocupam, respectivamente, 2071,86, 1979,64 e 424,98, o que corresponde a totalidade ou quase de suas áreas. Em um ranking das maiores sobreposições, elas ficariam em 3º, 5º, 6º e 22º lugares, respectivamente.
Apesar de ser a última delas, a Maringá chama atenção por seu proprietário: o cardiologista Raniel Pitol, filho de Valter Pitol, diretor-presidente e um dos fundadores da Cooperativa Agroindustrial Consolata (Copacol), uma das 100 maiores empresas do “agronegócio” brasileiro, de acordo com a Forbes. Com mais de 7 mil cooperados, o grupo registrou faturamento de R$ 9,2 bilhões em 2022, segundo o De Olho nos Ruralistas. Além disso, três posições abaixo no ranking, está a Fazenda Saturno II, cujos 364,73 hectares de extensão estão inteiramente dentro dos limites da TI e pertencem ao ex-gerente de unidades e superintendente agrícola da Copacol, Rubem Marco de Salles Santos.
Em uma outra fazenda na região, identificada como “Pássaro Preto”, em buscas nos dias 22 e 23, servidores da Funai e agentes da Polícia Federal e da Força Nacional encontraram 88 munições de grosso calibre, principalmente 12. O proprietário – não mencionado nas notícias – foi preso em flagrante por posse irregular de munição e arma de fogo. Segundo o Cimi, essa mesma fazenda é referida por dois nomes distintos em fontes oficiais. No Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR), do Incra, a fazenda denominada “Pássaro Preto”, pertence a uma pessoa chamada apenas por “Rubem”. Há possibilidades de que ele seja o mesmo Rubem citado acima, visto que o mesmo código de imóvel atribuído à Pássaro Preto no SNCR identifica, por meio do Sistema de Certificação de Imóveis Rurais (SNCI), a fazenda Saturno II. Segundo relato dos indígenas, essa fazenda foi usada como base dos seguranças no ataque de 22/11.
Sucessão de ataques ocorre após evento com envolvidos na promoção da ‘bolsonarada’ de 8 de janeiro
No último ataque, na tarde de 22 de novembro, membros da comunidade relataram agressões e ameaças, e contaram que quatro Guarani-Kaiowá foram mantidos durante horas em cárcere privado pelos “seguranças” das fazendas, conforme registrado em boletim de ocorrência junto à Polícia Civil de Iguatemi. Além disso, pistoleiros agrediram o jornalista canadense Renaud Philippe, a antropóloga Carolina Mira Porto – ambos, inclusive, entrevistados pelo programa de notícias de AND, o A Propósito – e Renato Salim Farac, da direção do Partido da Causa Operária (PCO), que iam juntos ao local cobrir o ataque foram interceptados.
Naquele mesmo dia, à noite, ocorria o evento “Como defender seu patrimônio dos riscos atuais”, promovido pelo braço local do Movimento Endireita Brasil – criado nacionalmente por ninguém menos que o reacionário ex-ministro de Bolsonaro, Ricardo Salles, segundo o portal Brasil de Fato. Entre os “riscos”, claro, está o de “possível invasão”, conforme o título da palestra ministrada por Wilson Koressawa, que abordava também a “proteção da propriedade conforme termos legais” (sic). Falaram no evento também: Geovane Veras Pessoa, sobre trâmites e procedimentos da Polícia Federal (PF); Wesley Loureiro, a respeito da “aplicação dos métodos de defesa” e captação de recursos para “políticas protetivas”; e Marcus Torres, tratando da “utilização do poder financeiro em prol das propriedades urbanas, rurais e empresas”.
Todos os quatro têm vínculos diretos ou indiretos com grupos de extrema-direita. O primeiro tem sido a figura mais pública: em 05/12, em um vídeo no Instagram, Koressawa diz que fez uma representação na justiça “para evitar que os produtores rurais de Iguatemi (MS) fossem presos em flagrante delito enquanto estavam se defendendo dos invasores”. Ele insinua que os latifundiários estão sendo vítimas de injustiças e que uma investigação está “tenta[ndo] caracterizar que estes produtores rurais estão organizando-se em uma milícia privada”, diz o ex-juiz que se candidatou a deputado federal por Minas Gerais em 2022 pelo PTB, então partido de Roberto Jefferson, mas obteve apenas 354 votos.
Em outro vídeo, de 27/11, postado por Loureiro, Koressawa faz uma palestra na cidade de Toledo (PR), em um salão com um banner do Conselho Comunitário de Segurança Rural (Conseg Rural) e outro do Sindicato Rural do município. O Conseg Rural, inclusive, foi formado a partir de mobilização do sindicato patronal que, “ouvindo demanda dos produtores rurais”, “abriu diálogo com a Polícia Militar, Polícia Civil e Secretaria Municipal de Segurança e Mobilidade urbana no sentido de melhorar as possibilidades de atuação das forças de segurança”, conforme informa o site do sindicato. Criado em agosto, o conselho – o primeiro do Paraná no âmbito rural – foi oficializado em cerimônia de implantação em outubro em auditório anexo à Prefeitura de Toledo com presença do prefeito pró-latifúndio Beto Lunitti (MDB). Esse último, inclusive, postou no Instagram um vídeo em que o deputado federal Sérgio Souza (MDB) comemorava a derrubada dos vetos presidenciais ao anti-indígena “Marco Temporal”.
Os vínculos entre eles se estabelecem também a partir do movimento “Assembleia Nacional da Direita Brasileira” (ANDB). Veras, que é ex-delegado da PF, participou da convocação para a 3ª ANDB em Campos dos Goytacazes (RJ). Uma semana antes do evento, um dos seus organizadores, Diego Ventura – que antes organizara os acampamentos golpistas – foi preso por suspeita de liderar a “bolsonarada” de 8 de janeiro. Naquela ocasião, também fizeram convocações para o evento o visceral anticomunista e ex-candidato à presidência “Padre” Kelmon (PRD) e o igualmente reacionário deputado federal Zé Trovão (PL-SC) – esse com uma camisa da “Associação Brasileira de Patriotas” (Abrapa). A essa dita associação também pertence Torres que, em vídeo convocatório na Jovem Pan de Bauru (SP) para a 4ª ANDB, se gaba de ter coordenado uma campanha para disputar os cargos de conselheiros tutelares na cidade de Dourados (MS).
Tanto Koressawa quanto Veras – bem como o apresentador que entrevista Torres, Alexandre Pittoli – foram palestrantes na 4ª ANDB, que aconteceu nos dias 7 e 8/10 em Luís Eduardo Magalhães (BA), segundo consta no site Even3. Veras ficou famoso recentemente por ser o advogado do “Cacique Serere” – indígena que teria recebido R$ 17 mil reais do latifundiário Maurides Parreira “Didi” Pimenta para promover atos golpistas e que foi preso em Brasília em dezembro de 2022. Além disso, Veras requereu a visita a outros 14 presos da “bolsonarada”, conforme despacho de 17/12 do Supremo Tribunal Federal (STF) assinado por Alexandre de Moraes.
Cooperação entre latifundiários e policiais é denunciada, e indígenas não se intimidam
No dia do primeiro ataque, Phillipe, Carol e Farac relatam que tanto a PM quanto o Departamento de Operações de Fronteira (DOF) ignoraram seus pedidos de ajuda. Dois dias depois do segundo ataque (18/12), os Guarani-Kaiowá contam que duas viaturas e vários agentes do DOF foram até a área Pyelito Kue buscando mapear as lideranças da comunidade. Segundo relato ao Cimi, policiais entraram sem aviso prévio e de maneira truculenta e, em resposta, a comunidade se reuniu e exigiu a retirada do batalhão do local. A Força Nacional – novamente – foi acionada pelo Governado Federal. Apesar de terem chegado dia 19/12, isso não impediu um novo ataque no dia seguinte.
Matias Benno, coordenador do Cimi Regional Mato Grosso do Sul, acrescenta: “Existe um histórico de cooperação entre fazendeiros e policiais, principalmente do DOF. Entre 2015 e 2016, registramos ao menos trinta ataques paramilitares contra comunidades Guarani e Kaiowá. Em muitos deles, o DOF atuou bloqueando o acesso aos locais onde ocorriam ataques, dando apoio aos agressores e até dissuadindo forças de segurança federais”, afirmou.
Apesar do conluio entre o velho Estado e os latifundiários, os Guarani-Kaiowá têm se mantido firmes e não se deixam esmorecer. Ao Cimi, uma liderança evidenciou essa disposição: “A mulherada está pronta para ir ver onde foi que os fazendeiros que fizeram tiroteio nesta tarde, ali no mato”. No mini-documentário do órgão indigenista, “Pyelito Kue: Indígenas e jornalistas sob violência das milícias agrárias na fronteira com o Paraguai”, vemos um jovem afirmar sua intrepidez: “Se me acertarem, eu vou morrer pela minha terra”. Já uma senhora, no mesmo vídeo, é ainda mais enfática quanto a certeza da vitória: “Eu quero e ainda vou voltar para aquele lugar”.