Liderança indígena falou ao jornal A Nova Democracia sobre a brava resistência de seu povo. Foto: Conselho do Povo Terena
Em entrevista ao Comitê de Apoio ao Jornal A Nova Democracia de Campo Grande (MS), concedida durante o 71º encontro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), liderança indígena Terena fala sobre as principais organizações de base de seu povo, o processo das retomadas dos territórios tradicionais e o caminho da luta que se traça frente ao governo Bolsonaro, tutelado pelo Alto Comando das Forças Armadas reacionárias.
Lindomar Ferreira, também conhecido por Lindomar Terena, nasceu e foi criado na Terra indígena Cachoeirinha, localizada nos municípios de Miranda e Aquidauana, no estado de Mato Grosso do Sul. Um homem que carrega nas costas uma vida inteira de sangue e luta pelo seu povo.
Além de liderança histórica reconhecida internacionalmente, Lindomar hoje é membro do Conselho do Povo Terena e da Coordenação executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), importantes organizações de base dos povos indígenas. Sobre a organização Conselho do Povo Terena, Lindomar explica:
— O conselho, quando nasceu, a gente se reunia em assembleias, duas vezes ao ano, uma geralmente em março e a outra no final do ano, em novembro. As assembleias nossas são sempre um espaço onde as lideranças da nossa comunidade possam participar, apresentar e contribuir para que possamos tirar um documento final. Então, ao final das nossas assembleias, nós nos organizamos numa caravana através de ônibus para que possamos estar levando esse documento final da assembleia do povo Terena para Brasília, seja na FUNAI, no Ministério da Justiça, em todos os âmbitos do governo que tratam da questão do direito dos povos indígenas.
A resistência ao aprofundamento do capitalismo burocrático e das relações semifeudais existente no campo, somada à escalada de violência do velho Estado burguês-latifundiário contra os povos indígenas, gerou bases para que o movimento indígena começasse a tomar forma organizativa mais definida a partir dos anos 70. Tais fatores impulsionaram a articulação de assembleias e organizações indígenas de base para que o processo de resistência fosse feito de forma coletiva, incluindo povos de etnias diversificadas e visando construir pautas em comum.
Entretanto, será após o fim do regime militar-fascista que o movimento ganhará força e corpo definido, surgindo várias federações indígenas pelo país, com algumas delas centrando a luta pela garantia dos direitos indígenas na Constituição Federal de 1988. Cabe lembrar que a ditadura militar-fascista também estendeu seus porões de tortura e morte no campo, ceifando e sumindo com a vida de milhares de camponeses, quilombolas e indígenas, entre eles boa parte da população do povo Terena, como consta nas sórdidas páginas do relatório Figueiredo.1
Atualmente, a principal organização indígena do país é a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. A APIB nasce da articulação do movimento indígena e do Fórum Nacional de Lideranças Indígenas, durante o Acampamento Terra Livre (ATL) de 2005. Hoje, a APIB organiza a Mobilização Nacional Indígena (MNI) e a ATL, que é a maior conferência indígena que ocorre anualmente em Brasília.
A organização de base dos Terena é o Conselho do Povo Terena. O conselho está presente na maioria das aldeias dos Terena, aglomerando diversas lideranças que possuem grande reconhecimento de seu povo. A entidade integra a APIB e tem assento na Organização das Nações Unidas (ONU). Para Lindomar, o conselho é, em suas palavras:
— O conselho do povo Terena é uma organização tradicional do povo, muito antiga e reorganizada agora de novo em 2012. Ela nasceu a partir da necessidade do nosso povo de se organizar para a defesa dos nossos direitos, como o direito da saúde, defesa da educação e, principalmente, o carro chefe do conselho do povo Terena, que é a demarcação das nossas terras.
O espaço em que os Terena constroem seus planos de luta, discute assuntos referentes a educação, saúde, retomadas de terra e os processos demarcatórios, além da construção da solidariedade entre todos os povos que vivem no campo. É a Grande Assembleia do Povo Terena – Hánaiti Ho’únevo Terenoê. A assembleia ocorre duas vezes ao ano, uma no primeiro semestre, e a outra no segundo. Sobre a organização da Grande Assembleia, Lindomar explica:
— A assembleia é esse espaço legítimo onde contempla o povo. O conselho do povo Terena não tem um presidente, um coordenador geral; é um colegiado onde a figura principal é o cacique nosso, que é a autoridade máxima dentro da aldeia. Cada cacique tem o seu assento dentro da assembleia do povo Terena, dentro do Conselho, mas as decisões no âmbito da assembleia são debatidas com todos, com a participação dos jovens, das mulheres, dos nossos anciões, pajés.
Sobre as conquistas do povo tomadas em assembleia, Lindomar prossegue:
— Entendemos que a assembleia do povo Terena trouxe várias conquistas, principalmente em expansão territorial nas retomadas. Conquistas na educação e a questão da saúde.
Autodemarcação e os direitos indígenas nas mãos das “Raposas”
O agronegócio em Mato Grosso do Sul representa um papel chave na economia e na política do país, concentrando boa parte da produção agrícola nacional.
No estado ‘do boi e da bala’ se deu o processo de usurpação, ou roubos, dos territórios de seus verdadeiros donos — indígenas, camponeses e quilombolas —, concentrando essas terras nas mãos de poucas famílias em detrimento de milhões que ficaram sem um pedaço de terra para viver. Essa relação de propriedade da terra e de alta concentração destas nas mãos de poucos se torna a base do atraso econômico semifeudal e semicolonial do país. O capitalismo burocrático alinhado ao imperialismo não permite que essas terras sejam democratizadas, pois o resultado disso seria a libertação das forças produtivas no campo, as divisões das terras e o desenvolvimento econômico do país. O imperialismo necessita das relações semifeudais nas semicolônias para subjugar e explorar os povos, transferindo toda a riqueza para os poderosos donos do mundo. Por isso o fato do campo ser a ponta da corda que mais tensiona no país, gerando intensos conflitos que se assemelham a guerras civis em algumas localidades. O agronegócio é, tão somente, mero exportador de cana, soja e milho; não alimenta a população brasileira e muito menos enriquece a nação.
Logo, é a partir dos acirramentos dos conflitos gerados pelo aprofundamento do capitalismo burocrático e do rompimento da ilusão de que as terras seriam demarcadas por esse velho Estado, que, no ano de 2000 em diante, os indígenas passaram a reivindicar a autodemarcação através das retomadas como ferramenta de luta política. A autodemarcação é a forma dos Terena de tomarem o que é seu com unhas e dentes, sem esperar resoluções através das vias legais. Sobre a autodemarcação, a liderança diz:
— Então o que que resta para nós enquanto povo é romper a cerca que nos separa de nossos territórios. E o que isso significa? Significa nós cortar a cerca e, a partir daquilo que a gente reconhece como nosso território, retomar essas terras. Hoje, para a gente, isso é como uma alternativa única, porque o Estado tem dito que não vai demarcar; se não demarca, cabe às organizações do nosso povo se organizarem, pensarem em estratégias, como fazer com que isso aconteça. E já está sendo feita, por exemplo, em nossa região nós temos retomado mais de 40 mil hectares de terras nos últimos tempos. Então, vai ser assim, não tem uma alternativa, será desse jeito, nem que pagamos o preço por isso.
Cabe ressaltar que na gerência Lula/Dilma poucas terras foram demarcadas ou homologadas, sendo a gestão oportunista e bandida que mais beneficiou o agronegócio, matou e perseguiu lideranças do campo, além de manter os latifundiários impunes de seus crimes. A história cobrará um preço caro daqueles que enganam o povo. Sobre a aliança do governo PT com latifundiários e pistoleiros, Lindomar afirma:
— A gente viveu no governo PT no período Lula e Dilma. Tivemos algumas conquistas, como espaços da CNI, conselho de políticas indigenistas, mas também entendemos que a demarcação das terras não caminhou no governo PT. E por quê? Porque entendemos que o governo PT era o governo que a gente acreditava, mas que se alinhou com aqueles que sempre foram declarados contra o direito dos povos indígenas, jogando nas mãos das raposas os setores importantíssimos para a efetivação dos direitos dos povos indígenas. A demarcação de terras não avançou, e as que avançaram, foram por força da retomada do próprio povo.
Avançar nas retomadas e vencer na marra as investidas reacionários do governo Bolsonaro
O governo Bolsonaro e dos generais coloca os povos indígenas na mira da pistolagem e do rolo compressor que passará por cima dos direitos da população. Anunciando, desde a sua campanha eleitoral, que não daria nem um centímetro de terra para os indígenas, e incentivando abertamente a prática da pistolagem entre os fazendeiros, essas ameaças do fascista não ficaram apenas na fase da campanha eleitoral.
Entre os ataques, está o desmonte da Fundação Nacional do Índio (Funai), a transferência da entidade nas mãos de militares (cargos estratégicos que as Forças Armadas reacionárias pretendem se posicionar), a perseguição de organizações indigenistas que elaboram políticas direcionadas para esses povos, o desmonte da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), dentre outros. Bolsonaro também deu carta branca para as forças repressivas do velho Estado e os latifundiários criminosos invadirem os territórios tradicionais para causar um verdadeiro banho de sangue.
Em resposta às investidas sanguinárias de Bolsonaro, os Terena irão resistir e avançar as retomadas de suas terras nem que seja na marra. Mais que uma luta por um pedaço de terra, as retomadas são uma luta pela manutenção e reprodução da vida. É a resposta a todos esses anos de usurpação, de genocídio e de colonização. Com coragem e determinação, Lindomar Terena afirma que seu povo resistirá contra a guerra declarada do governo Bolsonaro contra o campo:
— Nesse governo de agora, a gente se prepara porque o governo declara, a todo vapor, acabar com todos os direitos de nosso povo. Mas os povos indígenas entendem que isso não mudará muita coisa, pois já vinha essa negação de nossos direitos por parte do Estado brasileiro há muito tempo. O que cabe a nós povo é se organizar nas nossas organizações tradicionais e pensar estratégias de como resistir.
O caráter burguês e latifundiário do velho Estado brasileiro, que atende às demandas do imperialismo, evidencia a impossibilidade de resolver os conflitos agrários e o problema da terra dentro de sua estrutura política-jurídica e parlamentar. Como nos provou o governo PT durante seus 14 anos de gestão, a falta de resolução não é um problema específico de determinada gerência, e tampouco a falta de ferramentas ou entidades indigenistas institucionais. A disputada pelo monopólio das terras pelos latifundiários é a base de sustentação da realidade semifeudal e semicolonial brasileira. Somente uma Revolução de Nova Democracia poderá democratizar as terras e dividi-las entre todos os povos que nela trabalham e vivem; somente uma Revolução Agrária, primeiro passo dessa Revolução de Nova Democracia, aliando camponeses, indígenas, operários e estudantes na cidade, com a aliança operário-camponesa, poderá esmagar o imperialismo que nos subjuga.
Nas palavras finais de Lindomar: “Cabe a nós resistir e lutar, essa é a palavra de ordem!”.
Nota da Redação:
1- O denominado Relatório Figueiredo, supostamente desaparecido em um incêndio, trouxe à luz para todo o país aquilo que nunca desapareceu da memória de centenas de comunidades indígenas, que sofreram atrocidades indescritíveis, praticadas pelo Estado brasileiro ou por latifundiários com toda a sua complacência.
O documento foi escrito em 1967/1968, ficou desaparecido por décadas nas gavetas da ditadura e só foi achado em 2012. Nele foram apontadas todo tipo de atrocidades cometidas pelo Serviço de Proteção ao Índio (parte delas sob a gerência militar) e seus aliados, principalmente letifundiários e/ou pistoleiros a mando destes. (Obs: O SPI foi criado em 1910 e substituído pela Funai em 1967.)
O Relatório cita alguns casos de roubo de meninas e meninos índios. Como os ocorridos na década de 1940, no PR, quando “várias crianças do povo Xetá foram sequestradas pelo Estado brasileiro, através do SPI, para serem adotadas por famílias não-indígenas” (impresso do CIMI; ver em fontes, no final desta matéria).
Ou como o acontecido com a indiazinha Rosa, de 11 anos, dos bororos do MT. Flávio de Abreu, chefe da Inspetoria do SPI local, vendeu a menina a um homem conhecido por Seabra, que a escolheu na escola, dentre uma fila de pequenas alunas indígenas. Rosa foi entregue por Abreu como pagamento pela construção de um fogão.
Também segundo o jornal O Estado de Minas de 19/04/2013, o “Relatório de 1968, supostamente desaparecido, relata extermínio de aldeias inteiras, envenenamentos, torturas e assassinatos praticados pelo próprio Estado. A investigação, feita em plena ditadura, a pedido do então ministro do Interior, Albuquerque Lima, em 1967, foi o resultado de uma expedição que percorreu mais de 16 mil quilômetros, entrevistou dezenas de agentes do SPI e visitou mais de 130 postos indígenas. Jader de Figueiredo e sua equipe constataram diversos crimes, propuseram a investigação de muitos mais que lhes foram relatados pelos índios, se chocaram com a crueldade e a bestialidade de agentes públicos”.