‘Muitos tentam mudar de vida e morrem’: Camponeses denunciam rotina de servidão e repressão em campos de garimpo

Tivemos a oportunidade de entrevistar um casal de garimpeiros que retornaram após longos meses imerso nos garimpos de Ponte Lacerda, no Mato-Grosso. Ele, que aqui chamamos de Mário, já com quase 20 anos dentro de garimpos, e ela, Letícia, na sua primeira experiência em que ficou 7 meses. 
Foto: Júlio Cesar Ferreira de Souza/Reprodução/G1

‘Muitos tentam mudar de vida e morrem’: Camponeses denunciam rotina de servidão e repressão em campos de garimpo

Tivemos a oportunidade de entrevistar um casal de garimpeiros que retornaram após longos meses imerso nos garimpos de Ponte Lacerda, no Mato-Grosso. Ele, que aqui chamamos de Mário, já com quase 20 anos dentro de garimpos, e ela, Letícia, na sua primeira experiência em que ficou 7 meses. 

Tivemos a oportunidade de entrevistar um casal de garimpeiros que retornaram após longos meses imerso nos garimpos de Ponte Lacerda, no Mato-Grosso. Ele, que aqui chamamos de Mário, já com quase 20 anos dentro de garimpos, e ela, Letícia, na sua primeira experiência em que ficou 7 meses. 

AND: Boa tarde companheiros, em primeiro lugar, gostaríamos de agradecer a entrevista. Queremos iniciar perguntando um pouco sobre sua origem até chegar no garimpo. Como você chegou até o garimpo? O que você fazia antes? 

Letícia: Eu trabalhava na rua na cidade, fiquei sabendo do garimpo em Lacerda, conhecido ligou falando de oportunidade de emprego e eu fui. 

Mário: Trabalhava na roça. Plantava arroz, feijão. A situação na roça não era boa. Era eu e meus irmãos tudo junto, num lote. 1 lote, fazia roça, mas tinha que pagar arrendo de 10%. 100 sacos de arroz era 10 deles [dos donos]. Quem tinha terra naquela época a gente pedia, tudo que tirava dava 10% pro dono. Era pouco que conseguia ao final [ao distribuir com a família].

AND: Antes de você ir para o garimpo, você já participou de lutas por conquistar uma terra, moradia ou de algum movimento popular?

Mário: Numa época no Maranhão tentamos conquistar, mas não conseguimos, fomos expulsos da terra. Tinha 18 anos. Eram um grupo de 100 famílias da comunidade que entrou na área. Eles entraram e cortaram por conta, mas o governo não aceitou, prefeito não era em favor e a polícia foi colocada pra tirar. Não tínhamos muitas armas para segurar, era mais facão, machado, foice, por fora e eles conseguiram nos tirar.

Letícia: Já tive um bocado de experiência na luta por ter um pedaço de chão, 18 anos já lutando. Participei de várias lutas por tomada. Teve movimento de pressionar INCRA, fechamento de BR, reunião de INCRA, palestra. E nada de sair a terra pelo INCRA, só cadastro, promessa. “Vão chamar com o cadastro” e nada. 

AND: Como foi quando você chegou no garimpo? Como vocês viveram lá durante este período? 

Letícia: Ao chegar lá ficamos três dias tentando carro pra entrar, tinha muita chuva e lama do período de inverno. Ele chegou lá um ano, eu cheguei barriga verde, sem saber de nada. 

Mário: arrumamos vaga pra ela. A gente optava ficar lá na mata porque não tinha dinheiro pra ficar na cidade.

AND: Como funcionava a produção?

Mário: A porcentagem é 1% que você ganha, no melhor [dos casos] é 1,2%. Trabalha de baixo de chuva, sol, a polícia chega e toma tudo de nós, fala que é bandido. De um quilo, ganha 10g, a cozinheira ganha também assim, pode ser por mês, 20g, ou pode ser por produção, que pode tirar mais ou nada. Eu já ganhei 20g em 24 horas, mas depois pra frente não rodou mais. Não tem descanso, tanto faz se cozinheira ou garimpeiro, tem que saber enterrar PC [PC são retroescavadeiras, que precisam ser escondidas da fiscalização], carregar óleo, acordar 5 horas da manhã pra bater água do buraco, pra PC poder entrar e cortar o barranco, deixar seco. Não para. Na estrovega [outro tipo de máquina] também roda sem parar deste jeito. Cozinheira levanta 4h, faz café, bolo, 8h tem viradão com farofa, almoço 11h, merenda das 15h, janta da 19h, e merenda da noite. Muito lugar não para pra comer, revesa pra máquina não parar. Operação pode chegar da polícia pra fechar, então tem que aproveitar o tempo. As vezes [o garimpeiro] chega todo sujo, deita e dorme, sem tomar banho pra poder já voltar ao trabalho.

Você, por exemplo, gasta 6 mil litros de óleo, 6 reais o litro, e nisto vai tirar 2kg de ouro, 4 dias e 4 noites trabalhando. A cada 4 dias tem acerto de contas. Isto se a máquina for boa, pois tem máquina que tira menos. Tem risco botar PC lá dentro, de 1 milhão cada um, a [marca] Catarepila tá por um milhão, um milhão e duzentos mil [reais] cada uma; ai vem operação e queima tudo. O custo é alto.

[E a produção é assim:] uns ficam em cima da mangueira apontando ela pro barranco, e a água que vai levar a terra com o ouro. A maraca puxa água com minério e terra que cai numa caixa que fica com carpete, um  tapete que fica filtrando o ouro no cascalho. [Enquanto isto] vai ficando outros para tirar pedra, nisso fica com perna debaixo d’água o dia todo, pedra pode bater, quebrar a perna. E a gente trabalha com água retornada, não é água de rio não. Faz buraco, reservatório e vai segurando a água, usa a mesma água por 1, 2 anos.

Letícia: Há [também] roubo entre os garimpeiros, mas quem ganha no fim é o dono das máquinas. Quando máquina é nova, roda sem parar. Os Pczeiros [trabalhadores que operam as retroescavadeiras] ganha por hora. Tão pagando 70-80 reais por hora. Ele é só operador da máquina, não é dono. Quando anda quebrando a máquina, fica 2, 5 dias, até 1 mês parado. 

Mário: E não é toda máquina que produz este ouro. Tem máquina que produz 500g, 400g. Tem já peça pra trocar em muitos lugares, mas outros com PC velha que não presta não adianta trocar peça. Você acaba virando mecânico de PC no garimpo.

Letícia: Os mecânicos da cidade muitas vezes não conseguiam mais consertar de tanta gambiarra que tinha. 

Mário: teve menino que quase morreu por conta das gambiarras. 

AND: Como funcionava a estrutura lá? Tinha vocês, garimpeiros e cozinheiras, o dono da máquina, o dono da terra?

Mário: [começa assim:] tem o grileiro de terra, que pesquisa onde que tem ouro, e vende o trecho. Vende [geralmente] por 1kg, 2kg de ouro e quem compra tem que pagar ele e uma porcentagem pros indígenas. Muitas vezes tem gente que tem mais dinheiro e manda tu embora, atira, e você vai embora e eles ficam com a terra. O dono da máquina contrata gerente, garimpeiro, cozinheiro, que fazem barraco, acampamento, mesa, cozinha, poço. E enquanto isso a PC vai cortando a pista, 3, 4 dias você faz o barranco. E às vezes chega um que diz que é dono e expulsa as pessoas, as facções também fazem isto. E a polícia aparece com propina, vai e destrói a máquina de um e deixa para o do outro que pagou. 

Letícia: 60 dias atrás tinha um pessoal pagando num trecho, chegou 5 homens armados e matou PCzeiro e garimpeiro. Porque tava dando muito ouro lá. 

Mário: Aí você entra com máquina e não consegue sair por causa da facção. É CV [comando vermelho] lá. A polícia também é envolvida. Quando a polícia vai no dia 15, você paga pra polícia e já sabe que é esse dia. 

Letícia: E tem os grupos grandes. Grupo Boi na Brasa, por exemplo, tem 40 PC, são grandes, dominam em garimpos na Amazônia, tem contato com governador, com facção. 

AND: E como funciona a relação com os órgãos de fiscalização (IBAMA, FUNAI, prefeitura, governo do estado)? A policia (PF, PM) fazia incursões? Sabiam-se de pessoas ligadas a estas instituições que ganhavam subornos ou detinham garimpos?

Mário: Aparecem todos órgãos, federal, até exército. Entra IBAMA, FUNAI, junto com a polícia, entra e queima. 

[Neste momento o companheiro mostra uma gravação de áudio que denunciava que o governador Mauro Mendes do MT tava mandando reprimir e queimar máquinas no garimpo, pois ele próprio, explorava a região e teve empresa bloqueada por conta de rejeitos despejados na água, recebendo uma multa bilionária pelo crime ambiental. O áudio veio de dentro da Polícia Federal, segundo o companheiro, que recebia propina para avisar os garimpeiros]

Letícia: A polícia militar é a mais vagabunda que tem, você paga pra eles e eles deixam quieto. Quando tem operação é o conjunto, vai FUNAI, IBAMA, exército, polícia federal.

Mário: A PF que vem de fora não é comprada, que encaminham as operações. A PF local é geralmente comprada. Mas geralmente conseguem avisar uma previsão dos dias que vão ter operação. Geralmente a PF mesmo bate nas pessoas pra descobrir as PC. A gente enterra, demora 1h, 1h30 pra enterrar uma PC. Deixa uma de fora como laranja pra eles queimarem, a mais velha, mas as outras ficam enterradas. A pior [polícia] que tem é a GEFRON. Eles nem deviam tá naquela área, pois é fiscalização de fronteira. 

Letícia: Teve um dia que chegaram [a GEFRON] 3h40 da manhã, invadiram com bomba e tiro. Entraram com óculos de visão noturna. Pegaram 5 garimpeiros e 2 cozinheiras que era eu e outra senhora. Teve companheiro nosso que ao ver os tiros e bombas passou embaixo da lona do barraco e saiu correndo só de cueca. Conseguiu escapar. No momento do tiro não me levantei, com tanto medo e susto. Todo mundo teme eles, eles são maníacos lá, loucos, psicopatas. Eu pensei: não posso correr, vou ficar aqui, não levantei pra nada, mal respirava. Eles andam com refletor, vai longe. Fizeram fogueira lá que queimaram tudo. Quando foi clareando o dia me levantei. No meu barraco, estava distante uns 15 metros, fiquei escutando o terror, gente gritando, quando fez silêncio achei que tinham saído. Eles estavam todos escondidos na mata. Só com equipamento de visão. Chegou 2 e eu que eles pegaram. Quando me pegaram, miraram com laser. Perguntaram desde quando tava ai. Falei que desde quando eles chegaram. Falaram ‘porque não correu?’. Respondi que não devia [nada]. Perguntou nome, idade, de onde tinha vindo. Mandou sentar e nisto já tinha 6 pessoas sem camisa se abraçando. Eles começaram a bater nos garimpeiros de facão. Falaram que o lema deles não é dispensar nem homem nem mulher, só criança e idoso acima de 70 anos. Perguntaram pra mim “Então você dá conta de levar lapada de facão?”. Eu com medo só comecei a chorar. Perguntou pra um garimpeiro se eu aguentava lapada. Ele disse que não sabia. E aí bateram nele, que [ele] ia apanhar por ele e por mim, chamando ele de covarde. Depois jogaram plástico no fogo e colocaram o facão no fogo que ficou vermelho. Chegaram pra mim e perguntaram que rapaz devia apanhar com o facão e eu só abaixei a cabeça e comecei a chorar.

Mário: se um garimpeiro matar eles, quem entrega é o garimpeiro, pois polícia da pressão, fala que vai matar todo mundo e eles entregam. Na Guiana Francesa, eles são mais unidos. Teve gente que derrubou helicóptero. Botam uma sacola que a hélice puxa e faz o helicóptero cair. Quando eles veem as sacolas eles já saem. Lá os garimpeiros são mais unidos e a polícia não entra não. Mas se você é preso é enviado pra França e fica preso a pena toda, se é 20 anos, fica 20 anos. O garimpeiro tem coragem, mas falta união.

AND: Há muitas mortes nos garimpos?

Mário: Muitos morrem [no garimpo e tem seus corpos] jogados no rio, seja por polícia, facção, garimpeiros. Se tem morte, tem que levar pra ponte pra policia pegar. 

Letícia: Teve um lá que surtou, ficou correndo, bagunçando, e tentaram parar ele, quando um gerente falou: “vocês não sabem parar ele não? É assim.” [A companheira fez gesto indicando um revólver disparando]. E disparou vários tiros. 

Mário: Muitos tentam mudar de vida e morrem. Tão sendo enterrados como indigentes, quando não tem família que acaba sabendo. Muitos morrem sem família nem saber. 

AND: também é sabido a presença das facções criminosas nas regiões garimpeiras, eles apareciam lá? Eles também exploravam a atividade garimpeira?

Mário: a facção toma o garimpo, não compra. Entrar com muito armamento, tem lugar com 30 fuzil. Não pode usar arma lá, só eles. Eles obrigam a vender droga, dão um quilo de pó e se você pegar de outro vão bater pra disciplinar. Eles obrigam vender, em bar, cabaré. Se fizer algo que eles não gostam eles fazem as coisas mais tenebrosas. Eles se batem com a PF, GEFRON e FN [Força Nacional] que entram lá, eles fogem. Muitas das facções são donas de máquinas. Eles tão com grupo nacional, então ameaçam seu pai, sua mãe, se você fizer algo errado eles descobrem e caçam você onde você estiver. 

Letícia: Se alguém vender de outra organização eles matam. O PA e MT é dominado pelo CV, a polícia não mexe. 

AND: como é a situação da mulher no garimpo hoje? Tem muita prostituição?

Mário: [No passado] mulher muitas vezes vinha, fazer programa com 2, 3, 5. Não deixavam sair, quando queria ir embora, falava que ainda tava devendo. Deixavam ela presa num banheiro. Cortavam mamilos das mulheres. Era nas corrutelas em Itaituba antigamente [onde acontecia isto]. Polícia recebia propina pra deixar isto. 

Dono de cabaré tem que pagar pro dono da terra ou pro indígena. Agora as facções controlam mais estupro, 90% das mulheres que se prostituem acabam ligadas à facção. Eles [facções] ganham da prostituição e em troca protegem as mulheres. Se não pagam as prostitutas ou fazem errado com elas, eles [a facção] vão caçar e disciplinar o cara. Nisto, não acho errado eles. Errado é eles virem tomar sua terra.

AND: como você avalia a atividade no garimpo? Ela vale a pena? Como você vê as acusações que fazem a grande imprensa burguesa contra os garimpeiros? 

Mário: Muitas vezes as operações deles [o Estado] que incendeiam as matas, pois vão destruir as PC’s e barracos e tacam fogo em tudo que se espalha. 70% dos garimpeiros não tem nada, tentam fazer o seu pra sobreviver e vão embora. 

É muito risco, malária eu mesmo já peguei mais de 40. Num garimpo você pode ter sorte e ganhar mais, na cidade você tem salário muito baixo, não dou conta de trabalhar de firma ganhando salário-mínimo. É arriscado, mas vale a pena muitas vezes. 

A imprensa pensa que a gente é bandido. Mas somos trabalhadores que querem dinheiro melhor para sustentar a família. Muitas vezes [a gente] apanha. E quem acaba com a Amazônia é o fazendeiro, de ponta a ponta desmata. Nós às vezes não polui nem o rio, pois é uso de água retornável, você fica um ano às vezes usando a mesma água. 

O problema é que o garimpeiro tinha que ser mais unido. Coragem um bocado tem. Se fosse organizado já era. 

AND: Para você, o que poderia solucionar o problema que leva a milhares de pessoas para o garimpo, correndo todos estes riscos para sobreviver?

Mário: Se a gente tivesse uma terra pra trabalhar, plantar, pescar, não vivia no garimpo não. Viver na rua é como mendigar. Quem paga aluguel só dá pra pagar aluguel e comer mal. No garimpo tudo que ganha é lucro. Tem muita gente que grila terra, centenas de alqueires, porque não ter pro pobre? Falta união dos brasileiros mesmo, tá todo mundo junto.

AND: Companheiros, muito obrigado pelas informações que vocês nos deram nesta entrevista. 

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