No fechamento desta edição de AND (10/09), as 43 categorias que oficialmente compõem o funcionalismo estadual gaúcho se encontravam em seu 11º dia de greve unificada — sem contar as paralisações realizadas anteriormente por policiais civis e professores. Além da paralisação dos serviços, os trabalhadores do setor público estadual mantinham fortes mobilizações por todo o estado, com acampamento na Praça da Matriz (onde se localizam a Assembleia Legislativa e o Palácio Piratini, sede do Executivo estadual) e atos em locais importantes do interior, como a Câmara Municipal de Santa Maria, a praça central de Santo Ângelo e o túmulo de Getúlio Vargas, em São Borja. Houve bloqueios de rodovias e de quarteis, para impedir a saída de viaturas.

Servidores públicos protestam contra pacotaço que ataca salários
Tamanha capacidade de mobilização não se dirige, porém, neste momento, à obtenção de conquistas, mas a uma aguerrida resistência ao corte de salários e direitos. Os servidores reivindicam a retirada ou rejeição de dois projetos de lei enviados à Assembleia pelo governador José Ivo Sartori (PMDB), que congelam salários e concursos e jogam o dinheiro de suas aposentadorias na roda da especulação. Reivindicam também o fim do fatiamento de salários: no início de setembro, haviam sido pagos a cada servidor apenas R$ 600 das remunerações de agosto. O restante das remunerações seria dividido em outras três parcelas ao longo do mês.
Se a capacidade de resistência e luta dos servidores gaúchos (surpreendente para quem conhece suas direções sindicais burocratizadas, desta vez levadas de roldão pela força da onda) é um traço distintivo entre a situação do estado e a do resto do país no momento, o pano de fundo que origina a greve é o mesmo no país inteiro: estados e municípios quebrados pela recessão que o imperialismo e a grande burguesia impõem usando o governo federal como correia de transmissão.
Para calotear salários, congelar contratações e aprofundar a entrega da previdência do serviço público a bancos e seus satélites, Sartori alega uma crise que essas ações só agravam em vez de atenuar. Como todos os seus antecessores desde que Ildo Meneghetti substituiu Leonel Brizola à frente do estado, de Olívio Dutra à Yeda Crusius, ele não pode, não sabe e não quer tomar as medidas necessárias à reversão da sangria que aflige o RS há mais de meio século.
Dois fatores, fundamentalmente, afligem a economia gaúcha. De um lado, a sangria financeira imposta aos estados e municípios a partir de 1994 e aprofundada com o advento da mal chamada Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2001. O arcabouço jurídico-financeiro então criado tolhe qualquer margem de autonomia dos estados para promover sua própria reativação econômica mediante a emissão de títulos de dívida, como havia feito Brizola no último surto de progresso econômico gaúcho, em fins da década de 1950. Somado a esse, há outro fator de importância igual, senão maior: o monopólio da terra, que se manifesta, na metade sul do território gaúcho, em sua face mais retrógrada e improdutiva, mantendo a economia estagnada e fazendo com que um estado outrora atrator de imigrantes perca sua população rural jovem, que emigra.
O crescimento econômico tão decantado no período da gerência de Luiz Inácio, beneficiou de verdade apenas os monopólios e, no período atual, assim como todas as regiões do país, o RS sofre barbaramente com a retração econômica, sobretudo com a paralisação de atividades da Petrobras e da construção naval no pólo da cidade de Rio Grande.
Tudo isso é temperado por uma política econômica contracionista que tem entre suas maiores vítimas as duas categorias mais numerosas de trabalhadores do setor público: professores e policiais — com exceção, quanto a estes últimos, das altas patentes militares e dos que faturam dinheiro extra vinculando-se à repressão ou ao crime. Salários irrisórios (agora, nem sequer pagos em dia) mantêm deprimido o mercado interno e inibem qualquer atividade produtiva.
Claro que as elites do funcionalismo estadual mantêm intactos, ou quase, seus privil égios. Detentores de altíssimos salários, como é o caso de vários servidores da Assembleia Legislativa, Tribunal de Contas, juízes, promotores e coronéis da Brigada Militar, não sofrem sequer parcelamento. Aprofunda-se, assim, a divisão do serviço público em duas castas.
A urgente ruptura com esse quadro não encontra expressão política nem no falido sistema eleitoral, nem mesmo nas organizações sindicais, camponesas e estudantis, quase sempre em mãos de burocratas ligados a uma ou outra legenda do Partido Único(não importa se a sua ala "esquerda" ou "direita"). A própria eleição de Sartori para o governo do estado foi uma expressão agônica do labirinto em que patina a população gaúcha. Com um dos mais poderosos monopólios do estado (a RBS, do setor de imprensa) decidido a substituir o governador que melhor servira a todos eles (o sedizente mentor da "Frente de Esquerda" e da refundação do PT, Tarso Genro) por uma funcionária de carteira assinada com suporte político na extrema direita (Ana Amélia Lemos, atualmente senadora), a maneira que a população encontrou de repudiar os dois pólos desse arranjo foi eleger Sartori, cujo único mérito era precisamente não ser nem um empregado da RBS, nem um burocrata ligado à face mais sombria e repressiva dos governos federais e estaduais do PT.
Tardou muito pouco, porém, para que o governador e seu partido (o PMDB) assumissem à risca o receituário oligárquico e se esvaziassem de qualquer legitimidade e respaldo popular. Até mesmo a decisão de não depositar uma parcela da dívida com o governo nacional, que teria em si mesma algum mérito, se perde num contexto em que o governo pede ao Legislativo para extinguir órgãos públicos e congelar concursos e seu líder na Assembleia chama os servidores em greve de vadios.
Não restam dúvidas, a esta altura, sobre a baixa estatura histórica de Sartori nem sobre a dimensão da crise que o gerou e que o engolirá por sua incapacidade de enfrentá-la. A greve geral do setor público é, por sua vez, um salto qualitativo importante na resistência às causas e efeitos dessa crise. Ela retoma mobilizações realizadas no período Yeda Crusius (2007-10), que Tarso Genro (2011-14) conseguira aferrecer usando a posição dominante do PT na burocracia sindical.
Transformar a resistência em ofensiva é algo ainda distante, mas a greve em andamento talvez seja o passo mais importante já dado para iniciar a estruturação da frente política apta a fazê-lo.