Como um lojista que, a dias de passar o ponto, liquida o estoque, a senhora Rousseff busca desmanchar todos os fatores de soberania econômica ainda existentes no Brasil. A aviação é o último alvo desse surto de entreguismo contra o relógio.
Com a Medida Provisória (MP) 714 (01/03), o teto de participação estrangeira no capital votante de companhias que realizam voos domésticos foi ampliado de 20 para 49%. Em caso de “acordo de reciprocidade” com país que permita o mesmo a empresas “brasileiras”, não há limite. A direção das companhias pode, agora, ser confiada a pessoas de qualquer nacionalidade.
Pode-se questionar que importa onde nasceu o controlador, se foi preciso um empresário estadunidense (David Neeleman, da Azul) para que pudéssemos voar nos aviões que a Embraer fabrica aqui e vende ao mundo inteiro, enquanto os Constantino (Gol) e Amaro (TAM) importam Boeings e Airbuses dos EUA. Mas a MP 714 coroa uma sabotagem prolongada à aviação brasileira. E os donos da Gol são seus beneficiários e inspiradores, não suas vítimas.
Um pouco de história
No século XX, todo país com um grau mínimo de organização econômica tinha uma empresa aérea, geralmente estatal. O Brasil era exceção neste último aspecto, mas, ainda assim, de meados da década de 1960 a meados da de 2000, teve a Varig.
Sua agonia coincidiu com o primeiro mandato de Luiz Inácio (2003-6), responsável por fali-la, porque o Estado lhe devia tanto quanto ela ao Estado. Um encontro de contas teria preservado seu acervo de conhecimento, suas rotas, aviões e seus qualificadissimos trabalhadores de ar e terra. Se seus dirigentes não eram idôneos, como na época se alegou, bastaria o Estado assumir o controle, concretizando a ideia que, em 1963, levara-a a demitir — e logo reintegrar, por força de uma greve histórica — o piloto e dirigente sindical Mello Bastos: a criação da Aerobrás.
Afastada tal possibilidade pelo golpe de 1964, a Varig se valeu da perseguição à Panair e de relações com os governos ditatoriais fascistas para firmar-se como grande empresa aérea.
Quem nasceu pra Constantino não chega a Ruben Berta
Quando ela não pôde mais cumprir esse papel, o governo de Luiz Inácio resolveu que sua posição seria ocupada pela Gol, cabendo à TAM fatia menor. Das não monopolistas, primeiro foi desativada a BRA. Depois, o governo deu à Gol o que restava da Varig e, já com o incubador de monopólios Luciano Coutinho à frente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a Webjet. A TAM engoliu a Pantanal. A Azul absorveu a Trip.
A contrapartida que o governo exigiu para autorizar essas operações via Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) e Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) e financiá-las via BNDES foi nenhuma. Nos anos 70, a Varig tinha monopólio de rotas internacionais lucrativas, mas operava trechos deficitários importantes para a integração interna e externa e garantiu ao país excelência em segurança de voo e serviços. Gol e TAM não vão à África e Ásia, voam pouco ao interior do Brasil e não usam aviões brasileiros. Com tantos favores e em tão pouco tempo, estão quase tão falidas quanto a Varig há 10 anos.
A TAM existe, hoje, graças aos subterfúgios legais que permitiram sua fusão com a chilena LAN, em 2012. A Gol perdeu 84% de seu valor de mercado em 2015, mais 52% no primeiro mês de 2016. O início de rumores sobre a liberação do capital estrangeiro no setor, a partir de fevereiro, fez com que suas ações voltassem a subir, e muito. A MP 714 elevou seu preço em 20% em um único dia (02/03).
Isso se deve à iminente tomada de seu controle pela Delta Airlines, que tem hoje 9,5% de seu capital e pode comprar combustível em sua própria moeda (dólar). Menos claros são os efeitos para a TAM e as empresas menores toleradas pelo duopólio e pelo governo: Avianca (colombiana) e Azul, que tem sócios chineses (HNA) e americanos (United Airlines).
Repete-se na aviação o que já ocorreu em outros setores. Com a desculpa de fortalecer o capital nacional, o governo incuba monopólios; depois, financia sua desnacionalização, com lucro para os controladores. Foi assim com a Brahma, que, após fundir-se à Antárctica, transferiu sua matriz para a Bélgica; e com o Pão de Açúcar, que, depois de engolir as Casas Bahia, Ponto Frio, Açaí e Sendas, passou ao controle do concorrente francês Casino. Será assim com a Gol.