Era uma vez um fazendeiro. Ele se orgulhava da qualidade dos seus produtos. Detestava ter que usar chicote, tronco e outros castigos, mas seus escravos muitas vezes se negavam a trabalhar e até fugiam. Chegou a pensar em libertá-los e contratar empregados, porém, se assim o fizesse, seus produtos ficariam muito caros, sem competitividade no mercado e quebraria. Então rezou pedindo ajuda. Rezou com tanto fervor que Deus o ouviu e lhe enviou um monte de caixas de Prozac para ministrar aos seus escravos.
E o Prozac atuou divinamente, sem efeitos colaterais, e com tudo o que a propaganda viria a prometer.
E os escravos viveram escravos, felizes para sempre...
Depois da fábula a realidade
O Dr. Samuel A. Cartwright, médico que exerceu a sua profissão em Luisiana, USA, publicou, em 1851, no prestigioso periódico científico New Orleans Medical and Surgical Journal, um artigo no qual relatava a descoberta de uma nova doença mental. O “raro mal”, segundo seus estudos, atingia pessoas negras de origem africana, mais especificamente escravos. A enfermidade, que denominou de Drapetomania, levava os acometidos a um “desejo inconcebível de fugir”. Como terapia para a prevenção e até a reversão deste quadro de saúde humana, Cartwright propôs a ministração de chicotadas e, em casos mais graves, recomendava a amputação dos dedos dos pés dos pacientes.
Com o tempo a tal “doença” saiu da bibliografia médica. Talvez pelo fim da escravidão ou pela completa falta de base científica. Porém, hoje existem muitas doenças mentais reconhecidas com duvidosa base científica.
A fonte mundial para a definição das doenças é o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, mais conhecido como DSM, produzido pela Associação Americana de Psiquiatria, que, de tempos em tempos, ganha uma nova edição. Na primeira, de 1952, eram catalogados 106 transtornos psiquiátricos; na segunda, de 1968, já eram 182; e no de 1980 subiam para 265. Na última edição de 2013, o DSM 5, ultrapassou 300 doenças catalogadas (algumas das quais parecem ter sido inventadas sob encomenda dos laboratórios).
No geral, do meio acadêmico vigente, ante a queixa de um paciente, o mecanismo que o profissional de saúde mental adota consiste basicamente em enquadrar uma doença ou grupo de doenças que acometa a pessoa: depressão, psicose, distúrbios etc. E o tratamento: um psicofármaco. Assim como a penicilina e os antibióticos enfrentam as infecções, os psicofármacos enfrentariam os problemas mentais. Porém a analogia não se aplica nesse caso.
A consulta
Assim é o dia a dia do consultório de muitos médicos, e que não são especialistas psiquiatras:
Uma paciente chega ao médico, conta para ele que sente tristeza. O doutor rapidamente diagnostica depressão, explica que ela é motivada pelo baixo nível de serotonina no cérebro e que isso será resolvido tomando o medicamento Prozac.
Outro paciente relata ao médico que sempre está preocupado com alguma coisa que pode dar errado, não relaxa, vive tenso, sente falta de concentração e irritabilidade. Então, o doutor determina o diagnóstico: ansiedade generalizada, e a culpa é de um desequilíbrio químico capaz de ser resolvido tomando umas caixas de Aropax.
A leviandade na prescrição destes remédios muitas vezes é bem vista pelo paciente que, se achando bem informado, se auto-diagnostica e já vem solicitando a receita.
Mapa da mina
Como se chegou a este consenso na medicalização (caraterísticas e eventos da vida cotidiana convertidos em doença) onde um fármaco vai passar a garantir a saúde e até a felicidade?