Dourados, MS - Com muita luta se forja, dia a dia, o povo Guarani-Kaiowá nas terras do Mato Grosso do Sul. Expulsos de seus tekohas (aldeias)e colocados em reservas, onde foram durante décadas confinados e impedidos de viverem a seu modo tradicional, os guerreiros partem para a retomada de seus territórios originários, enfrentando latifundiários e seus bandos armados de pistoleiros. Em entrevista ao AND, lideranças explicam o motivo das retomadas e denunciam os crimes do velho Estado burguês-latifundiário.
Indígenas reunidos em visita de integrante da ONU
— A política de reservas traz danos para os Guarani-Kaiowá hoje, causa problemas de conflitos entre os próprios indígenas por conta de espaço, pois a reserva não é o tekoha, não vivemos no modo de ser Guarani-Kaiowá. A reserva é um confinamento, vivemos cercados como se fosse um pássaro dentro de uma gaiola, sem o direito de viver a liberdade do nosso povo, que sempre viveu assim — afirmou Élson Canteiro Gomes, da recém identificada Terra Indígena Dourados-Amambaipeguá I.
Respondendo ao monopólio de imprensa local, que em sua histeria contra as retomadas bradam que “os índios não precisam de terra” e — num puro cinismo — chamam o latifúndio exportador de “produtores rurais” (pasmem!), os indígenas explicam que a terra não é apenas uma propriedade, mas sim a totalidade que engloba sua maneira de viver:
— A retomada é importante para continuarmos reproduzindo nossa cultura, viver o nhadereko [modo de ser ou de viver como Guarani-Kaiowá], nossa cultura, a caça, a pesca, a reza, para ter a liberdade de circular no território. Não é apenas retomada da terra, é a retomada da natureza, dos animais, das rezas. É pelo futuro das nossas crianças que precisamos de demarcação, pois na reserva ou na cidade o índio não é feliz, apenas somos felizes no nosso tekoha guasu [Grande Território]. Então a cada passo pra dentro do nosso tekoha tradicional, estamos pisando em nossa terra sagrada. O nosso sonho Guarani-Kaiowá nunca vai morrer, a cada momento vai nascer uma nova esperança de viver neste tekoha, por que neste tekoha que muitos parentes morreram e foram enterrados.
Eles também denunciam o papel do velho Estado e seu caráter latifundiário:
— Ao invés do governo garantir o território para que nosso povo possa viver nesta terra com paz e liberdade, criam leis que modificam a Constituição Federal, que garante o direito à demarcação, como a PEC 215, que tem como objetivo acabar com as terras indígenas. Dessa forma muita dificuldade vem ocorrendo na comunidade, como a falta de atendimento de saúde e educação das crianças, e com isso a comunidade sofre com a criminalização por parte do governo. Em Caarapó, os fazendeiros se organizam e colocam o povo em uma situação de difícil acesso à cidade, proíbe ter acesso aos mercados para fazermos compras e tudo mais. Os parentes são torturados na cidade pela própria polícia. Assim que o Estado está massacrando o povo indígena” — completaram, citando os artigos 231 e 232 da constituição de 1988.
Guarani-Kaiowá realizando ritual
Frente a tal realidade, a imprensa local deixa pública sua face fascista e reacionária, e suas mãos sujas de sangue indígena. Montes de calúnias são divulgadas, colocando todo o povo pobre dos municípios contra os indígenas.
— Nosso povo já não confia na imprensa local, como a TV Morena e o Caarapó News, pois eles distorcem os fatos e defendem os fazendeiros, e depois dizem que o CIMI e a FUNAI incentivam as tomadas de terra, mas quem decide tudo é nosso próprio povo. Precisamos de aliados que defendam a causa indígena, que falem a verdade do massacre do povo Guarani-Kaiowá — destacou Élson, ressaltando a importância da imprensa popular e democrática.
As lideranças também denunciam os ataques sistematizados e a participação das policias junto com os latifundiários.
— Os ataques pelos fazendeiros se dão de várias formas, tudo muito bem organizado. A primeira coisa é que eles são apoiados pela segurança do estado que legitimam os ataques e incentivam os latifundiários a se armarem e atacarem os indígenas das áreas de retomada. Nestes ataques sabemos que estão envolvidos a DOF, a polícia militar e a polícia civil, bem como jagunços e os próprios fazendeiros, que se articulam com outros proprietários da região. Compram armas pesadas para nos atacar e atacam de uma forma cruel, sem piedade, não escolhem se vão atacar liderança, criança ou idoso.
Ainda sobre os ataques, destacam que esta contraofensiva do latifúndio está presente em toda a região:
— Essas milícias estão por toda a parte, estão atacando todas as áreas de retomada. São os mesmos que tiraram a vida de Semião Vilhalva em Nhaderu Marangatu, os mesmos que atacaram Kurussu Ambá, Poelito Kue, Guaviry, Takuara, Te’ýi Jusu, Kunumi Vera, Guapoy, dentre outros tekohas, e que ceifaram a vida de Clodiodi [no fatídico 14 de junho], uma pessoa que gostava muito de ajudar o povo dele. Sendo agente de saúde, ele foi até o local do ataque para ajudar os baleados e acabou levando tiros, não resistindo — vale destacar que, desde a morte de Semião, em setembro de 2015, foram registrados mais de 25 ataques paramilitares em áreas de retomada.
Toda esta barbárie é marcada pela impunidade. Nomes citados, figuras conhecidas, novos tiros e nada dos assassinos serem punidos. Pelo contrário, o judiciário tenta criminalizar Leonardo de Souza — pai de Clodiodi e do professor Jesus (outro ferido no massacre) — como sendo o responsável pelas retomadas de terra e agressor de policiais. Além disso, tekohas sofrem reintegrações de posse e são perseguidos por juízes locais.
A luta continua!
Cansados de esperar e sem qualquer ilusão com o velho Estado, os Guarani-Kaiowá garantem que toda esta ofensiva não abalará a luta pelas terras tradicionais e, cada cova que for aberta, uma nova terra será retomada. Exemplos desta decisão são os seis novos tekohas que se ergueram após o ataque de 14 de junho.
— Com as reintegrações de posse, os Guarani-Kaiowá decidem no Conselho Aty Guasu [Grande Assembleia] de que chegou o momento de retomar para não sair mais. Nosso povo já esperou demais e acabou nossa paciência. Enquanto esperamos a demarcação, muitas mortes estão acontecendo. Decidimos de uma vez por todas que não iremos abrir mão de nosso tekoha guasu.
Demonstrando toda a fúria revolucionária da mulher, uma indígena declarou:
— Nós estamos guerreando contra os fazendeiros, por que ele mataram o nosso irmão lá, derramou muito sangue, por isso estamos aqui.
Outro guerreiro emendou:
— Diante dessa violência cruel que estamos vivenciando, não iremos nos calar. Quanto mais morremos, lutaremos com toda força que nos resta! Por que conseguimos ainda sobreviver através da nossa resistência e da luta, por que a nossa luta é que faz valer a lei!
Sendo assim, avancemos a cada dia fortalecendo a aliança operário-camponesa, indígena e quilombola! Defender o avanço das retomadas é tarefa dos revolucionários! Contra o genocídio, tomar todas as terras do latifúndio!