Em memória do operário Thiago Dias
“Thiago não recebeu o atendimento de que precisava na mesma velocidade em que fazia suas entregas sobre uma moto no trânsito de São Paulo”. Começa assim a matéria da Folha de S. Paulo ao relatar a morte de Thiago Dias, 33, morto no frio 8 de julho, em São Paulo. Contudo, esse cabeçalho diz muito pouco sobre, para não dizer distorce, a sua saga, que é carregada de simbolismo e nos revela com a dureza e a concretude com que só a realidade cotidiana das massas empobrecidas do nosso país pode revelar o estado de putrefação e a decomposição avançada, já agonizante, do Estado genocida brasileiro.
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Proletário de 33 anos teve AVC após anos de longas e intensas jornadas de trabalho na Rappi
O fato
Primeiro, o fato: Thiago, trabalhador motoboy do aplicativo de entregas Rappi, sofreu um AVC durante o seu expediente. Fez a entrega. Caiu no chão, quase inconsciente, foi socorrido por moradores locais. Uma das últimas coisas que fez foi pedir que avisassem no aplicativo que não poderia mais trabalhar naquele dia; foi tratado com a frieza robótica típica de uma máquina por seus patrões: um aplicativo de celular. Chamaram o SAMU, a Polícia, os Bombeiros. Ninguém em seu socorro. Chamaram, então, um motorista de aplicativo (Uber), o motorista se recusou a levá-los, uma vez que Thiago estava urinado como decorrência de uma crise aguda de dor de cabeça. Família e amigos, em seu socorro, levam-no ao Hospital. Barrados na entrada do Pronto-socorro – que só recebe pacientes em ambulância – tiveram de quebrar a lei para acessarem a Emergência, não tinha maca. Foram duas horas até o primeiro diagnóstico e o sofrimento se prolongou até segunda, quando Thiago teve morte encefálica constatada.
A exploração mistificada do semiproletariado
O primeiro aspecto desse crime que salta aos olhos, é o fato de Thiago ser um entregador empregado pela plataforma Rappi, empresa estrangeira de serviço por aplicativo que é uma das maiores do ramo.
Num país com mais de 28 milhões de desempregados, não pode haver outra oferta mais atrativa do que você se auto-empregar. É aí que entram em cena empresas como o Rappi, Uber, entre outras, a prometerem liberdade total de horário, de patrões e de jornada. É só o começo da história de como essas empresas ficaram bilionárias superexplorando a força de trabalho, sem quaisquer encargos jurídicos, éticos, financeiros ou morais.
O poema de Vinícius de Moraes, ao qual o título do texto faz referência, relata a saga de um operário da construção civil. Outros tantos artistas brasileiros, como Chico Buarque (em Construção) e Zé Geraldo (em Cidadão), utilizaram-se igualmente da imagem do operário da construção civil em suas obras que denunciavam a exploração e a opressão. Não poderia ser diferente, pois num país semicolonial e semifeudal, como o Brasil, em que o proletariado industrial decresce quantitativamente a cada ano, fruto da desindustrialização, o operário da construção civil fora o símbolo do trabalhador brasileiro: frequentemente empregado pela grande burguesia burocrática e compradora, superexplorado, precarizado e quase sempre trabalhando em condições praticamente extintas na maior parte dos países capitalistas avançados (imperialistas).
Hoje, no entanto, nada retrata melhor o proletariado brasileiro, especialmente das grandes regiões metropolitanas, do que o serviço informal, o bico, a sublocação, o subemprego e o desemprego total. Por isso mesmo, a maior parte da massa trabalhadora das cidades brasileiras é, em verdade, semiproletária urbana. O surgimento das plataformas digitais de ocupação dessa força de trabalho subalocada e/ou desempregada, quase sempre no ramo dos meios de transporte e logística, é só uma nova (e mais reacionária) forma de precarização do trabalho, que leva também à maior exploração do mesmo (o chamado “info-proletariado”). O outrora operário da construção é agora mais fielmente descrito no operário na condução.
Empresas assim, que obrigam o trabalhador a estar 100% do tempo calculando o quanto mais precisa trabalhar para poder pagar o sustento da família, trabalhar sob o risco de acidentes de trânsito, ser assaltado, sequestrado e, em pior situação, ser morto; obrigam o trabalhador, a cada acontecimento do dia, lembrar que tem uma família para sustentar e que a “empresa” para qual ele trabalha não se responsabiliza e ainda se exime de qualquer vínculo trabalhista.
Decomposição do Estado e da sociedade
A crise de decomposição do capitalismo burocrático brasileiro, que se agrava a cada dia e já é agonizante, leva também a uma maior reacionarização do Estado burocrático-latifundiário. Como parte desse processo de reacionarização, os pacotes criminosos antipovo, que atacam direitos mínimos conquistados pela luta dos trabalhadores, são elaborados sob direção do imperialismo e passam no Congresso de corruptos sob o véu de “reformas”.