Artista popular que vê em sua arte uma maneira de se comunicar com o povo, procurando contribuir para uma reflexão crítica, o declamador de poesia de cordel, Cabral da Cabaceira, coloca-se como ferramenta a serviço de uma arte transformadora. Nordestino radicado no Rio há quatro décadas, Cabral encontra bem perto de casa, na favela onde mora, inspiração para as suas emotivas interpretações de cordéis.
— Poesia e arte em geral é paixão para mim, é emoção, fico feliz quando aprecio poesia. Sou cearense da cidade de Reriutaba, nasci no sítio Cabaceiras, às margens do rio Juré, e o cordel entrou na minha vida desde muito cedo, sem que eu soubesse que se tratava de cordel, porque não foi através dos folhetos, do cordel físico, e sim das poesias de memória, das histórias contadas pelo meu pai .
— Sou fruto de um casamento de um homem de 72 anos de idade com uma mulher de 22. Eram pessoas extraordinárias, sertanejos, sem muito estudo, mas com uma clareza impressionante. Minha mãe nunca estudou e meu pai estudou muito pouco. Recordo que já o conheci beirando os 80 anos, um homem de idade avançada, honesto, correto, inteligente, e um grande contador de histórias – relata.
— Somente quando cresci é que fui entender que muitas das histórias que ele contava faziam parte da literatura de cordel. Dizia: “um caboclo fez um verso”, e assim prosseguia contando. Eram estrofes que me tocavam muito, e só recentemente, aqui no Rio, é que fui descobrir aquelas mesmas estrofes em folhetos de cordel. Isso foi uma emoção muito grande para mim – expõe.
— Tive o meu primeiro contato com o cordel físico quando já era grande, ainda lá no Ceará, quando um parente que morava aqui no Rio, o José Antônio de Freitas, e que hoje é meu vizinho, foi nos visitar e levou uns folhetos de cordel. O resultado foi que eu acabei até decorando um cordel e falando, sem saber, que isso se chamava declamar ou recitar. A partir daí passei a ter contato com cantadores, violeiros repentistas que fazem versos de improviso – continua.
Com 18 anos de idade, Cabral migrou para o Rio de Janeiro em busca de condições melhores.
— Vim porque se dizia por lá que aqui era muito bom, que tinha como ganhar dinheiro para sobreviver, então pensei em construir um futuro melhor, enviar um dinheirinho para os meus familiares que ficaram, e depois de um tempo talvez voltar. Mas nunca mais voltei para o Ceará, já são 41 anos aqui no Rio – afirmou.
— Com o tempo compreendi que as dificuldades aqui são bem grandes, principalmente para quem tem pouco estudo, e que a questão da moradia é bem complicada. Percebi que teria que residir na favela, por ser o lugar onde o pobre pode morar, e inclusive já moravam meus parentes. Então vim para a Barreira do Vasco e nunca mais saí daqui — conta Cabral. Barreira do Vasco é uma favela próxima ao clube Vasco da Gama.
— No começo sentia muita falta das coisas do Nordeste, e queria ouvir aquelas músicas nordestinas que tocavam nas rádios de lá, era o forró do Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Marinês, os trios do Nordeste, tudo que por aqui nem se falava, foi muito difícil para mim. Também me chocou muito ver a pobreza, porque eu pensava que aqui não existisse pobre e muito menos pessoas em situação de abandono, vivendo nas ruas – continua.
Declamando a realidade do povo
— A vida na cidade grande, principalmente na favela, é bem sofrida, os descasos do governo, as mentiras, as covardias. Lá no sertão éramos bem abandonados, para nós não existia nem cidadania, por exemplo, muitas pessoas só “tiravam documento” quando vinham para a cidade, já adulto, porque tudo era muito longe. Com pouco tempo percebi que aqui se “tiram os documentos” muito cedo, mas são esquecidos da mesma forma – expõe.
— Deixei de ser sertanejo e passei a ser favelado, e são dois povos que eu gosto muito: o povo do sertão e o povo da favela, oh povo guerreiro, que vive na contramão, que enverga, mas não quebra, no sertão ou na favela enfrenta o descaso, o abandono da parte dos governantes. Os candidatos visitam as favelas na época de eleições, passam apertando a mão do povo, mas depois da posse o que se vê com muita frequência na favela são os caveirões – denuncia.
— Caso o político venha a precisar voltar algum dia, requer um aparato muito grande, muita segurança, nem parece aquele candidato que passou de casa em casa pedindo voto, de camiseta, acompanhado somente por seus puxa-sacos. O que quero com a poesia que declamo é denunciar os desmandos políticos, a discriminação com o nordestino, com o povo negro, com as favelas, porque se diz que a lei é feita para todos, mas o que mais se vê é benefício para os ricos e castigo para os pobres – continua.
Recentemente, Cabral da Cabaceira gravou seu primeiro CD, em que declama poesias que transmitem aquilo que ele acredita.
— As poesias que declamo no CD falam da profissão de garçom, que é a minha profissão para sobreviver, falam da favela, do político que só faz besteira, falam do inverno, que é a maior riqueza do sertão, é quando tem os legumes na mesa do sertanejo. Enfim, são esses os principais temas, aqueles que têm uma relevância para mim – conta.
— Quando descubro uma poesia como “A casa que a fome mora”, que está no meu CD, procuro logo aprender para declamá-la em vários locais, e assim atingir um maior número de pessoas. Acho que gosto tanto de me expressar através da arte porque nasci com esse dom. Andei perto de ser poeta, de escrever poesias, mas ainda não cheguei lá, então prefiro declamar essas poesias bonitas, desses poetas que temos – continua.
— Gradativamente fui descobrindo um poeta e outro, e a Academia Brasileira de Literatura de Cordel, liderada pelo meu conterrâneo, Gonçalo Ferreira da Silva, que me encorajou muito a declamar e me convidou para participar das reuniões da Academia. Assim pude encontrar poetas maravilhosos e começar a compor meu repertório – conclui.
O CD de poesias de cordel de Cabral da Cabaceira foi produzido pelo jornalista e radialista Adelzon Alves, contou com Carlito na operação do som, e a capa é de Guilherme Moura Lopes. O contato do artista é: (21) 98342-3575.
Oferta à república de parelhas
Poeta: Geraldo do norte (entrevistado na edição 56 do AND)
“Sabe que tem que ser pra ser
um tronco que tem raiz
saber que é aprendiz
neste mundo de querer
onde lutar pra ter
é um problema diário
você segue um calendário
de uma batalha por dia
enquanto estiver na terra
vai vivendo em pé de guerra
pra vencer a tirania”.