‘Que se vão todos!’
No dia 5 de março, intensos enfrentamentos se iniciaram entre as centenas de manifestantes e as forças de repressão paraguaias, após ataque dos policiais contra o protesto que acontecia em frente ao congresso, na capital Assunção. O Ministério da Fazenda foi incendiado pela multidão em rechaço à política econômica antipovo.
As massas revoltadas contavam, entre elas, com um grande número de professores e profissionais da saúde. Os profissionais protestavam contra a falta de remédios, vacinas e contra os preços excessivos de tratamento no setor privado da saúde, além de exigir meios dignos para combater a pandemia do novo coronavírus.
Os manifestantes ainda exigiam a renúncia do presidente Mario Abdo Benítez, sob a palavra de ordem entoada generalizadamente Fora, Marito!
Em alguns momentos, a fúria popular superou os números da polícia, obrigando os fardados a atirar lenços brancos para “pedir uma trégua”. Em contrapartida, pelo menos 20 civis foram feridos.
Quatro dias depois, em 09/03, um novo protesto combativo ocorreu em Assunção, iniciando-se no Congresso, passando pela sede do partido Colorado, ficando cerca de cinco horas em frente à residência do presidente do Paraguai, e terminando em frente a casa do ex-presidente Horacio Cartes (2013-2018), também do partido Colorado.
Após repressão policial atingir o protesto que ocorria em frente à casa de Horacio Cartes, os manifestantes responderam às forças de repressão com pedras, queimando lixeiras e jogando ovos e papel higiênico na casa de Cartes, além de picharem “Narco” (em clara menção a narcotraficante) e “Máfia” nos muros de sua casa.
O pesquisador e professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Integração Latino-Americana (Unila), Lucas Mesquita, em entrevista à Revista Fórum América Latina relatou que é um momento especial do subcontinente: “É uma das primeiras manifestações populares que a gente tem na região nesse período da pandemia com essa intensidade.” E prosseguiu: “Isso demonstra uma mudança. Por mais que a gente esteja no pior cenário da pandemia, a população já está chegando a um esgotamento, inclusive a um esgotamento político. ‘Estou morrendo e preciso encontrar uma forma de não morrer.’ É esse o ponto”. concluiu o professor.
Em meio à pandemia, povo protesta
Em 2020, em agosto, o povo paraguaio já protestava sob as palavras de ordem A fome não está em quarentena! e O povo tem fome!
Os vários protestos que ocorreram naquele momento também denunciavam os casos de corrupção, e provocaram a demissão de chefes da Aeronáutica e da companhia petrolífera estatal. A crise geral do velho Estado paraguaio (na qual a corrupção é apenas uma das facetas) também impediu a compra de insumos necessários para mitigar os efeitos da pandemia.
No mesmo período, o desemprego no Paraguai aumentou 7,9% no primeiro trimestre do ano que findou, sendo que 60% dos trabalhadores do país são informais.
Além disso, as massas denunciaram o fato da dívida pública do Paraguai ter alcançado o equivalente a 25% do PIB em 2020 após novo empréstimo, defendido pelo governo de turno como “única maneira” de atenuar a crise do capitalismo burocrático agravada pela pandemia.
Em entrevista ao The Guardian sobre sua condição material durante a pandemia, uma artesã indígena, mãe de quatro filhos, afirmou: “Não há apoio, não há nada do Estado. Os meus filhos estão passando fome”.
“A solidariedade mútua é o que se destaca; as pessoas pobres ajudam outras pessoas pobres. Ajudamos e damos tudo o que podemos. Juntos organizamos uma cozinha e distribuímos sopa para que os vizinhos tenham o que comer”, disse outro entrevistado do bairro Tacumbú de Assunção.
Caos na saúde
O contágio pela Covid-19 no Paraguai se intensificou nas últimas semanas, o que levou ao colapso dos centros de saúde. No país, há apenas 304 leitos de UTI públicos para mais de 7 milhões de pessoas. Até 06/03, 3.256 mortes e 164.310 casos haviam sido relatados, de acordo com dados da Universidade John Hopkins.
Além disso, apenas 4 mil pessoas foram vacinadas no Paraguai. Proporcionalmente à nossa população, o equivalente seria de cerca de 550 mortes por dia.
Existem mais 202 leitos de UTI em hospitais privados, mas custam 5 mil dólares por dia se os pacientes não tiverem plano de saúde. O Instituto de Segurança Social (IPS) entrou em colapso desde muito antes da pandemia. Segundo dados oficiais, o Paraguai é um dos países com o menor “gasto social” da América Latina, depois da Guatemala e da República Dominicana.
Marito, ‘filho da ditadura’
O atual presidente é membro do direitista e conservador Partido Colorado, um dos mais antigos do país. Seu pai, de mesmo nome, foi secretário e íntimo de Alfredo Stroessner, presidente da “república” durante o regime militar no país. Durante os 35 anos de governo de Stroessner, segundo dados oficiais, 19.862 pessoas foram presas, 18.772 foram torturadas e houve um total de 128.076 vítimas diretas e indiretas.
Através do programa da Aliança para o Progresso, o Estados Unidos (USA) injetou dinheiro no governo de Stroessner, ao ponto de o Paraguai se tornar o terceiro país mais beneficiado por essa “ajuda”, endividando e submetendo ainda mais o país.
O velho Estado Paraguaio aplicou a anticomunista “Doutrina de Segurança Nacional” imposta pelos ianques (Estados Unidos, USA) no seu quintal, a América Latina. Isso ocorreu no mesmo período que as ditaduras no Chile, com Augusto Pinochet, e os generais no Brasil.
Diante disso, as multidões agora entoaram: Filho da ditadura!.
A embaixada do USA se posicionou sobre a insatisfação do povo com o governo de turno numa mensagem no Twitter do seu “encarregado de negócios” no país, Joe Salazar. “Desejamos paz e ordem contínuas para os nossos parceiros e amigos, o povo do Paraguai. O Estado democrático de direito é a pedra angular da democracia”, observou o funcionário ianque.
A declaração seria uma orientação dos ianques a, diante das mobilizações populares e profunda crise institucional no país, manter a aparência a mais democrática possível, atenuando as possibilidades explosivas da revolta e asseverar que acompanha de perto a situação.
O temor se dá em vista da busca por evitar que se repitam os acontecimentos do quase-vizinho, Chile, em rebelião popular incessante desde 2019. Esse país em específico, inclusive, doou milhares de vacinas para o Paraguai em meio à insatisfação popular.
Mostra do acato às ordens ianques e o pavor à rebelião das massas, foi a “renúncia” do ministro da saúde e outros três: da educação, da pasta da mulher (próximo ao 8 março), e o chefe de gabinete da presidência. Desta forma, o reacionário “Marito” busca dar a fachada de “limpeza” dos corruptos no seu governo. Medida derrotada pelas massas populares, que não se abatem e seguem combatendo nas ruas.
O ataque popular ao presidente gerou um racha dentro do próprio partido Colorado, escancarando a pulsante crise política.