Passado pouco mais de uma quinzena da histórica retomada de Cabul pela resistência nacional afegã liderada pelo movimento Talibã, que encerrou a condição colonial instituída pela ocupação ianque (Estados Unidos, USA) desde 2001 e o arremedo de “República Islâmica do Afeganistão” dos senhores de guerra, cultivadores de papoula e proxenetas de crianças (ver Os 'meninos dançantes' do Afeganistão publicado na edição 213 de AND), os imperialistas inundam os monopólios de imprensa com suas lágrimas de crocodilo pelas mulheres e as minorias étnicas pobres daquele país. Lamentam, cinicamente, a “perda de direitos” das mulheres, “conquistados” nos bombardeios da coalizão militar que as mataram, pauperizaram, enviuvaram e tiraram seus filhos, invertendo a ordem natural da vida por 20 anos. Tal falastronisse conquistou mais lágrimas incautas no Ocidente do que no próprio Oriente Médio, onde ainda hoje a expulsão da besta-fera é festejada.
Não resta dúvida que a nova velha ordem imposta pelo Talibã, baseada na interpretação medieval da lei islâmica “Sharia” com suas leis retrógradas e hostis à participação das mulheres e das minorias na política do novo Emirado Islâmico do Afeganistão não é democrática, como inclusive anunciou o próprio porta-voz do Talibã. No entanto, não cabe ao imperialismo tutelar o povo afegão e, cabe ressaltar, a ideia que alguns povos necessitam de tutela imperialista para alcançar o “progresso” histórico, além de chauvinista e racista nem ao menos é nova. Essa é uma velha narrativa adotada pelos Estados expansionistas europeus desde o século XVI quando as Grandes Navegações “descobriram” o “novo mundo” para a sanha colonizadora - discurso sempre repetido por todos os colonialistas e imperialistas, incluindo o nazifascismo.
O que falar da conquista da América pelos europeus? Foi certamente o maior genocídio da história que vitimou 90% dos povos originários do continente entre 1500 e 1600 e submeteu os demais à escravidão e à servidão. O lucrativo projeto colonialista foi justificado à época por uma ideologia salvacionista católica que alegava que a empresa colonial beneficiava os índios tirando-os do pecado e de hábitos bárbaros (neste caso sem aspas) como a antropofagia ritual entre diversos povos (que ainda não sabiam como dispor da mão-de-obra de seus prisioneiros de guerra). Ainda assim, o cômputo de assassinados pelos europeus é bastante superior ao número de inimigos dos tupinambás ou astecas sacrificados e deglutidos em seu modo de vida pré-invasão, da mesma maneira que as baixas impostas pela guerra de libertação afegã são menores em comparação com as mortes das forças da coalizão imperialista encabeçadas pelos ianques que ocuparam o país oriental por mais de 20 anos. Mais tarde, na colonização da África pelas potências imperialistas europeias, o discurso humanitário continuou permeando a subjugação e o massacre dos povos das colônias. Exemplos abundam desde o “Fardo do Homem Branco”, poema de Rudyard Kipling que justifica o imperialismo anglo-ianque sobre povos não brancos, até as “Aventuras de Tintin”, que trata os negros congoleses como incapazes de governarem sem a tutela paternalista dos belgas.
A ‘faccetta nera’ italiana na Etiópia
O fascismo italiano adotou este discurso para justificar sua anexação da Etiópia, àquela altura o último país africano que ainda não havia sido colonizado. Longe de qualquer Wakanda1 e das ilusões místicas da diáspora africana rastafári, a Etiópia era uma monarquia absolutista sustentada pelos grandes senhores de terra sobre as minorias islâmicas, animistas e judaicas. Sua economia tinha um baixíssimo desenvolvimento das forças produtivas e contava com o uso arraigado do trabalho servil e escravo, gerando contradições internas e externas com a Liga das Nações que, desde 1919, proibia a escravidão. Ironicamente, foi justamente essa proibição da escravidão que o governo italiano fascista utilizou para justificar sua invasão ao país africano em 1935.
A canção Facceta nera (rostinho negro, em livre tradução) foi composta pouco antes da invasão à Etiópia e para endossá-la explora bastante o apelo antiescravista no interesse do fascismo, com boas doses do romantismo e exotismo típicos das narrativas imperialistas que se referem à Ásia e África. A começar pela primeira estrofe, que precede à invasão italiana: “Se observar os mares do planalto. Ó morena, escrava entre escravas. Verá, como em um sonho, muitos navios. E um tricolor2 que tremula por você!”. A canção fascista aponta que a “morena”, la bela Abissinia (a bela etíope), personificação da Etiópia, se encontra reduzida pela escravidão e espera que o imperialismo italiano a liberte. A morena é incapaz de se libertar sozinha e necessita que os italianos lhes dêem: “outras leis e um outro Rei”. Lei essa que na estrofe seguinte diz ser “escrava do amor”, em clara contraposição à lei etíope que legalizava a escravidão. E, de jure, a primeira abolição da escravatura na Etiópia ocorreu sob ocupação italiana em 1935, em meio à guerra de libertação nacional do povo etíope. Quando o imperador etíope à época, Haile Selassie, retoma o trono em 1941 apoiado pelos britânicos, a escravidão é novamente legalizada, e abolida definitivamente em 1942.
Nas próximas estrofes, mais agressivos, os imperialistas fascistas assumem mais claramente suas intenções: vingar a derrota italiana na Etiópia em 1896³. “Nós, Camisas Negras, vamos vingar os heróis que morreram ao te libertar”; levá-la – la bela Abissinia – “até Roma libertada” (dominada), lembrando o ritual romano praticado com os chefes bárbaros derrotados por César e, depois, por fim, assimilá-la ao ideal fascista: “em uma Camisa Negra tu também vai estar. Rostinho negro (você) será romana, sua única bandeira será a Italiana (...)”. Nessa estrofe, ao menos somos obrigados a reconhecer que os italianos foram mais sinceros que seus congêneres ianques. Mas, o mais importante foi que em ambos os casos os “bárbaros nativos” venceram os imperialistas “humanitários”.
Em arte de Aurelio Bertiglia, tropas fascistas cantam "Facceta Nera" com etíope
Hoje, talvez, à luz da história do colonialismo ibérico e do fascismo na Europa, cuja má fama dispensa detalhes sobre os horrores cometidos em sua vigência, possamos ver com mais facilidade o caráter progressista da luta anticolonial, mesmo quando travada por astecas que sacrificavam seus inimigos como por etíopes escravagistas. A reflexão que urge hoje é defender totalmente o direito à autodeterminação do povo afegão sem nos deixarmos seduzir pelos que cantam amores e lágrimas de crocodilo às “faccettas copertas” (rostinhos cobertos) pelas burcas do Talibã.
Notas:
1- País africano fictício utópico onde se originou o herói da Marvel Pantera Negra.
2- A bandeira italiana.
3- Primeira Guerra Ítalo-Etíope (1896-1898): Guerra de rapina promovida pelo imperialismo italiano contra a Etiópia no contexto da partilha da África, na qual esse é vergonhosamente derrotado pela nação africana.