Em canto geral, Vandré desafia o regime fascista e defende abertamente a revolução
A canção que eu trago agora fala de toda a nação
A pista dada por Disparada, em termos composicionais, nos leva a Canto Geral (EMI/Odeon, 1968), de expressivas semelhanças rítmicas. O álbum é representativo da ruptura completa de Geraldo Vandré com a bossa-nova e afirmativo na disputa que se desenhava na Música Popular Brasileira (MPB). Os tropicalistas lançavam "Tropicália Ou Panis Et Circenses" (Phillips, 1968), que era a materialização gravada do que entendiam como “som universal”, o produto necessário da bobajada que intitularam de “linha evolutiva da Música Popular Brasileira” defendida por Caetano Veloso. Em síntese, significava que quão maior fosse a adoção de formas musicais estrangeiras, mais evoluída seria a música brasileira. A opinião de Geraldo Vandré quanto a isso era resoluta, como relata a biografia escrita por Vitor Nuzzi: "Só entendo canção de forma universal se ela partir da música popular brasileira, afirmou Vandré em São Bernardo, para em seguida citar o escritor Mario de Andrade. O artista que procura se expressar na arte universal corre o risco de, de repente, se surpreender fazendo arte de outra nacionalidade que não a sua".1
Não só como parte do claro antagonismo estético que se desenhava, Canto Geral é um álbum de resistência ao regime militar-fascista e de defesas abertas da Revolução. Nele, o engajamento alcança seu ápice, abordando a situação de vida das massas, a relação da vanguarda com elas e a necessidade da organização popular para a luta partindo do campo. Diferentemente de seu álbum anterior, as posições revolucionárias aparecem de forma muito mais direta.
Na capa, as cores verde e amarela. O título é escrito em vermelho, sobre a imagem do gado de um lado e do povo de outro – possivelmente numa referência à letra de Disparada. Na contracapa, uma citação de Bertold Brecht: “Desses tempos em que falar de árvores é quase um crime, pois implica em silenciar sobre tantos erros – aos que virão depois de mim.”. Categórico, diante do que viria a se tornar. O texto segue como um discurso político de autoria própria: "(...) A invenção e a elaboração somente transcendem seus aspectos puramente formais e passam a ser efetivamente criativas quando servem a uma necessidade real e concreta de repartir. Sem bondades e sem heroísmos. Por uma decorrência natural de ser e de ter. Porque repartir é, em última análise, um exercício fundamental da existência e a única razão de ser da propriedade. Construindo casas ou pontes, igrejas ou hospitais, pintando, curando doentes, viajando ou varrendo as ruas, fazendo política ou amor, morrendo e, porque não, matando, a vida importa somente pela doação que se faz dela, pelo sentido e pela direção (...)".
Sua posição, com influências claras do marxismo, reconhece a propriedade privada dos meios de produção como grande mal a superar. Além do mais, defende a arte e a cultura a serviço do povo. Do ponto de vista formal, possivelmente como um recado aos tropicalistas, reconhece a importância do conteúdo acima da forma. Via na fusão da canção com a luta coletiva o caminho para indicar o que é novo, levando sua atenção muito mais ao que é dito, sem cosmopolitismos.
Em Terra Plana, faixa que abre o álbum, defende sua concepção de arte e a tarefa correspondente enquanto cantor popular. Reconhece a necessidade do povo de se organizar para enfrentar o inimigo e defende a violência revolucionária. Em O Plantador, expõe a situação de exploração vivida pelo povo camponês e aponta a radicalização da luta no campo como “tempo de queimada”. Em Arueira, o próprio cantor afirma em entrevista que a música é “um grito de protesto contra o capitalismo norte-americano e as classes opressoras”2. Nela, trata do “dia que já vem vindo”, da situação das classes populares, sua capacidade de governar, e o troco: o “cipó de arueira no lombo” das classes dominantes. Essa é, sem dúvida, uma das canções mais radicais do álbum, pois apesar do uso do repetido mote, propõe um caminho violento para alcançá-lo. Além do mais, aborda a questão do poder, retirando do “dia que já vem vindo” seu porvir messiânico, para atribuir ao povo esta responsabilidade na prática. Mostra-se um compositor autocrítico. O negativo, podemos observar na concepção de que o canto seria o responsável por guiar as massas na luta, refletindo uma posição um tanto quanto pequeno-burguesa de que a esta classe pertence a responsabilidade de guiar as massas no processo da revolução brasileira e não ao proletariado.
O uso de arranjos principalmente ligados à música camponesa como a guarânia e a moda de viola, indicava uma tentativa de comunicação a partir da modificação urbana do gênero, como uma forma de servir à política revolucionária de algumas organizações que consideravam a ida ao campo como uma necessidade para o tipo de revolução que corresponde ao Brasil, um país semicolonial e semifeudal com um capitalismo de tipo burocrático.
Sem dúvida, Canto Geral é o que de mais avançado se produziu nos limites da indústria fonográfica em termos políticos e estéticos até aquele momento. Os contatos políticos que obteve ao longo de sua vida, fruto da inserção no movimento estudantil — seu principal público —, modelou aos poucos suas posições políticas, expressamente colocadas nas canções mais combativas. Maturava seus ideais, vendo na arte um fim mais do que artístico: somá-la ao desenvolvimento da luta popular em ascensão como canção revolucionária.
A certeza na frente, a história na mão
A apresentação de Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores, ou Caminhando, no III Festival Internacional da Canção, pode ser facilmente considerada o fato mais importante da resistência cultural ao regime militar. Seus elementos constituintes são muitos: a expressão lírica do sentimento político presente em boa parte da esquerda; a simplicidade melódica e rítmica; a cadência marcial com a forma de execução batida no violão e discursiva na voz; a tensão do momento político vivido no país. Em uma referência ao hino da Revolução Francesa, Caminhando é conhecida como a Marselhesa do Brasil, por ter sido a canção que mais representou os ímpetos revolucionários do povo brasileiro em sua história, além de ter penetrado profundamente na consciência do povo como uma música símbolo de nossa resistência.
Liricamente supera todas as agruras dos contendentes por um desenvolvimento da canção de protesto, sobretudo na mensagem que passa. O “dia que virá” se faz no presente, com “a certeza na frente e a história na mão”. A crítica aos militares é feroz, reduzindo sua ideologia a algo vazio de significado. A convocação à luta imediata é o mote do refrão. Para comentar uma polêmica, o trecho que mais gera discussões dentro da esquerda diz: “Pelas ruas marchando/Indecisos cordões/Ainda fazem da flor/Seu mais forte refrão/E acreditam nas flores/Vencendo o canhão”. Apesar de parecer uma leitura niilista ou pacifista da situação política, enxergamos mais como uma crítica aos “indecisos” da pequena-burguesia, que acreditavam ser possível combater a reação com flores. Não faria sentido o oposto, considerando o contraste do refrão. O aspecto verdadeiramente negativo que cabe situar, é a tendência ao imediatismo típico da pequena-burguesia, que ora vai à esquerda com um radicalismo desmedido, ora à direita na medida em que as circunstâncias recrudescem. Não por acaso, é o que viria a acontecer com o cantor. De todo o modo, isso não apaga o significado e importância da canção para a luta revolucionária em nosso país. Após a reapresentação, Geraldo Vandré ofereceu simbolicamente seu violão ao público, segurando-o com as mãos sob o fundo, dando sua última grande contribuição à luta.
Na biografia de Vitor Nuzzi, consta um relato de Ziraldo, jurado da votação que deu à "Sabiá", de Tom Jobim e Chico Buarque, a injusta vitória no festival. Numa conversa após a vitória moral de Caminhando, Geraldo Vandré disse num tom misterioso: "Eu tinha exatamente o que fazer com o dinheiro. Os companheiros precisavam dessa ajuda" 3 4.
O sucesso da canção foi visto com maus olhos pelas casernas. Os quartéis se agitavam com algumas declarações de repúdio à música na imprensa, além de concursos poéticos em resposta a canção, realizados entre os próprios militares.
No dia 13 de dezembro é promulgado o Ato Institucional Número 5 (AI-5), dando garantias legais à elevação da repressão. A censura às obras artísticas e programas de televisão era oficialmente legalizada. Reuniões políticas poderiam ocorrer somente sob autorização da polícia. O Congresso Nacional era fechado e a centralização do Estado estava ainda mais nas mãos do Executivo dirigido pelos militares.
Geraldo Vandré se refugiou na casa de amigos, artistas e apoiadores antes de deixar o Brasil em fevereiro de 1969. Já era visado pelo regime militar, como aponta o relatório da polícia: "Em 23-6-1965 esteve presente à reunião de cantores, radialistas, atores, etc. A reunião era composta de cerca de 80 pessoas, notando a pessoa do Sr. Paulo Singer e do Deputado Esmeraldo Tarquínio [no primeiro caso, provável referência ao economista Paul Singer; Tarquínio foi deputado e prefeito eleito de Santos em 1968, cassado antes da posse].
Em 28-11-1966 fez parte do “Show da Fraternidade”, realizado no Teatro Maria Della Costa.
Em 9-1-1967 esteve presente em uma reunião realizada no Teatro Paramount contra a nova Lei de Imprensa. Participou da conferência sobre o Movimento da Paz promovido por frei Chico, no colégio Sion".5
Caminhando foi o ponto de partida e de chegada do que poderíamos chamar de canção revolucionária no Brasil até aquele momento. A reação ao seu peso foi feroz, algo previsível para a época. Geraldo Vandré não esperava tal efeito, sendo um dos aspectos de seu destino traumático: a canção de maior relevância para a resistência cultural ao regime militar tornava-se rapidamente um pesadelo para suas aspirações artísticas. Num misto de intrepidez e ingenuidade, típico das concepções de classe que o influenciavam, queria ao mesmo tempo cantar a revolução brasileira e ser um artista conhecido, com vida pública e legal. Não estava pronto para as agruras do caminho que defendeu e passaria a sentir seu peso.
Bandeira branca
Passou por Chile, Argélia, Alemanha, Grécia e Itália, até se estabelecer na França e lá permanecer por mais tempo antes de regressar ao Chile. Foi um período de muito sofrimento. Muitos são os relatos de instabilidade emocional, mudanças repentinas de comportamento somadas a um abatimento notável em sua aparência, como relata a biografia de Vitor Nuzzi.
No exílio, gravou Das Terras de Benvirá (Phonogram, 1973), lançado no Brasil somente em 1973, alguns meses após o seu retorno. O título do álbum é uma referência a um suposto “Benvirá”, que viria com a vitória eleitoral de Salvador Allende no Chile6. La Passion Brasilienne, de 1971, foi o nome que recebeu na França, contendo apenas duas músicas em um suporte compacto com o selo Le Chant du Monde.
Das Terras de Benvirá, do ponto de vista estético, assume continuidades com Canto Geral, especialmente na simplicidade instrumental das canções. No entanto, essa característica é fruto da menor preparação artística do álbum como um todo, que não tinha mais um Geraldo Vandré inspirado, ou interessado como em outros tempos, assim como não era atribuída aos músicos que o acompanhavam a tarefa de arranjar em detalhes ou ser criativos. Segundo o próprio compositor, algumas músicas foram gravadas a partir de uma declamação literária livre. Podemos observar muito mais uma influência da Nueva Canción Chilena do que da música popular brasileira, que apesar de estar contida em algum grau, é secundarizada. Não vemos mais a diversidade de gêneros musicais presentes em Canto Geral ou em Hora de Lutar.
A posição política presente no álbum é nova, bastante influenciada pela particular situação que vivia. A “saudade do Brasil”, apresentada por alguns críticos como uma valorização do popular e nacional na canção, é muito mais uma posição de rendição à situação em que foi colocado do que a aparência tende a demonstrar. O perdão, a união, a “bandeira branca”, se diferem bastante de temas cantados poucos anos antes, como o enfrentamento, a organização, a luta, etc. A melancolia presente na gravação e a pouca inventividade são aspectos formais que materializaram este sentimento nostálgico de arrependimento e a pouca disposição a enfrentar os perigos da luta. Não à toa, o próprio lançamento no Brasil de um disco produzido pelo cantor mais perseguido dentre todos, poucos meses após o seu retorno, dão sinais de permissividade por parte dos militares quanto ao baixo risco que poderia oferecer.
Notas:
1- NUZZI, Victor. Geraldo Vandré. Uma canção interrompida. 1ª edição. São Paulo. Kuarup Produções Ltda. p. 122, 2016.
2- Ibidem.
3- Ibidem.
4- Ziraldo assume a declaração de Geraldo Vandré como uma “bravata”, mas os relatos de que muitas personalidades, incluindo militantes, frequentavam sua casa, é fato conhecido, o que torna bastante provável o trabalho de apoio a alguma organização revolucionária. De todo o modo, apesar das suspeitas de vinculação à AP, não há nada nem ninguém até os dias atuais que tenha assumido qualquer organicidade do cantor com o movimento.
5- NUZZI, op. cit, p. 229
6- Ibidem, p. 251.