O seguinte texto trata-se de uma aproximação inicial de temas importantes da dialética com o poema da música Tempo II de Siba. Trata-se de um belíssimo poema que conforma, com o resto de sua produção, um corpo poético genuinamente dialético. Esperamos que o texto seja compreendido não como uma análise rígida, mas resultado apaixonado de interação com a obra deste importante artista brasileiro e um convite à sua apreciação.
A vida não dá certeza
pois tudo se movimenta
cada dia representa
a chance de uma surpresa
e até mesmo a natureza
se altera a cada segundo
o tempo é ventre fecundo
aonde tudo é gerado
se o tempo fosse parado
nada existia no mundo
Ninguém sabe o que será
do tempo futuramente
mas o tempo do presente
tudo tem e tudo dá
que o que tem no tempo está
em um caderno anotado
Tudo que o tempo tem dado
de tempo em tempo se soma
que o tempo com tempo toma
tudo o que deu no passado
(...)
Vejo o tempo que passou
montando o tempo que passa
e já respirando a fumaça
do tempo que não chegou
Automovimento
O primeiro tema dialético que compõe a obra de Siba é a ideia de automovimento, ou seja, que é da natureza de todas as coisas estarem em perpétuo desenvolvimento e que isso se deve às suas leis internas, não primariamente a um impulso exterior. Muito pelo contrário, em Tempo II, “se o tempo fosse parado, nada existia no mundo”. Isso nos remete à famosa citação de Engels em Anti-Dühring de que o “movimento é o modo de existência da matéria”, a matéria só existe em movimento, a estática sendo apenas relativa. O “tempo”, como aqui utilizado de maneira abstrata, parece referir-se mais a uma ideia geral de transformação e movimento que a uma medida quantitativa, cronológica. É nesse âmbito absoluto da transformação, de devir perpétuo, que tudo é gerado.
Devir
Nessa lógica então, o que seria o “tempo do presente”, que “tudo tem e tudo dá”? A ideia de “presente”, na verdade, é uma impossibilidade, porque conceitualmente trata-se de um instante T que já passou no momento em que se conforma. O que existe, então, é o devir, o “tornar-se”, é ele que é cheio de potência. Trata-se do processo, da contradição entre o que é e o que não é, entre o que já foi e o que desponta, parte daquilo que chamamos de história.
Essa ideia de um processo perpétuo com todas suas partes interpenetradas é exposto de maneira brilhante no poema, onde o “tempo que passou” monta o “tempo que passa” e vê evidências do “tempo que não chegou”. Portanto, ainda que Siba tenha posto antes que “ninguém sabe o que será do tempo futuramente” é possível respirar a “fumaça do tempo que não chegou” porque o tempo que não chegou está emergindo, desabrochando no tempo que passa. Portanto, ao estudar as leis de movimento de um fenômeno, é possível compreender suas possibilidades e necessidades, ainda que em sua forma imatura e débil. Essa ideia está presente também no famoso mote heraclitano de Siba “toda vez que dou um passo o mundo sai do lugar” na música de mesmo nome.
Salto
E como se dá essa passagem entre o que foi e o que será? No poema de Siba isso está posto com extrema clareza: “Tudo que o tempo tem dado/ de tempo em tempo se soma/ que o tempo com tempo toma/ tudo o que deu no passado”. Aqui temos que frisar duas etapas diferentes. Na primeira, o que o “tempo dá” se acumula gradualmente, “se soma”, como resultado do automovimento. Na segunda, o próprio “tempo toma” esse acúmulo; ficando subentendido, pelo próprio caráter absoluto do movimento para Siba, que ele toma para dar de novo, e assim tomar de novo… Ou seja, toma, demarcando a sucessão infinita de etapas.
Em filosofia, isso diz respeito à transformação da quantidade em qualidade e de uma qualidade em outra; demarcando o velho processo do novo processo que nele se gesta - demarcação essa a que chamamos salto e que Siba corretamente caracteriza como uma negação (dá/afirma - toma/nega).
Este tema também aparece em sua canção Preparando o Salto. Partindo de uma não-identidade consigo mesmo, o protagonista queima e se levanta “renascido e cru” (como a fênix mitológica), enquanto a “velha sombra ressecada” de seu antigo reflexo “de pés cortados não vai onde vou” - a negação do velho, partindo de si mesmo, gerando o novo. Aqui a categoria é chamada pelo nome: “preparando o salto/ deixando pra trás tudo”.
Contradição
Então temos o processo exposto por Siba: o automovimento das coisas, gerando um devir perpétuo, é demarcado por etapas em saltos de qualidade – num processo que atinge a tudo e não termina. Mas “falta” aí um ingrediente para completar o processo: explicar a causa do automovimento. Siba refere-se à passagem de tempo, mas só a passagem de tempo não explica a transformação como um todo ou mesmo a variedade dos tipos de transformação.
Encontramos a origem do automovimento justamente na contradição, ou seja, na unidade e luta dos contrários interna aos vários fenômenos; esta é a única maneira possível de compreender o movimento sem despender de um agente externo – o que faz da contradição ser, de fato, a única lei fundamental da dialética. É a contradição que faz fecundo o ventre do mundo, pra usar a linguagem de Siba; é nela que se exprime o devir (como unidade dialética entre o ser e o não-ser) e o salto (como unidade dialética entre o velho e o novo).
A poética de Siba não se exime de expor contradições, mas estas sempre aparecem como injustiça, de maneira negativa, não como o motor necessário dos processos – aquilo que em seu aparente caos conduz à transformação. Temos como exemplo dessa posição Quem e Ninguém (Quem tudo tem se levanta/ Onde quem não tem só desce) e 12 Linhas (Pra cada página de glória/ Tem uma mancha que invade). Reconhecer a universalidade do automovimento em todas as coisas já traz bastante riqueza filosófica à sua obra, todavia falta descobrir a origem do automovimento na unidade e luta dos contrários.
Esse contraponto, contudo, não muda o fato de que parte marcante da poesia de Siba, como tentamos expor, contém um caráter profundamente dialético e propenso a identificar o movimento em todas as coisas. Como dito à Revista Continente, assim como identificou na cultura popular como um todo, em sua poesia “(...) uma coisa não é só ela. Ela sempre traz a outra”.