A teoria do direito na União Soviética (URSS) possui três expoentes principais: Pachukanis, Stucka e Vyshinsky. Após a morte de Stalin e início do processo de restauração capitalista na URSS, o revisionismo no direito se escancarou, tanto que no livro de 1963, Fundamentos do Direito Soviético, é falado, já na primeira página, em “Estado de Todo Povo e Direito de Todo Povo”, teses que negam a luta de classes e o caráter de classe do Estado e do direito. Uma asquerosa baboseira revisionista, já que quando falarmos de interesse geral, não falaremos mais de Estado e de direito. Em razão disso, vamos nos debruçar sobre as teorias da superestrutura jurídica da época revolucionária na URSS, onde as formulações mais avançadas floresciam e o revisionismo, em consequência, manejava camuflado. Em muitos momentos faremos menção às universidades brasileiras, onde essa discussão, infelizmente, se restringe no país, mas não nos limitaremos pelo estreito horizonte delas.
Reprodução
Petr Stucka
Pachukanis
Nossa análise começa por Pachukanis, que é o autor mais propagado da literatura soviética e dita “revolucionária” do direito nas universidades brasileiras. Ele é apresentado a corações e mentes inquietos, que entram nas faculdades jurídicas bastante críticos a essa superestrutura. A estratégia do imperialismo, da reação e do revisionismo é interessante. Pachukanis funciona como um Trotsky, de acordo com a seguinte lógica: já que não podemos deter o ímpeto revolucionário e democrata de alguns jovens, que eles sejam cooptados pelo revisionismo, que não descreve corretamente a realidade e, como consequência, não permite sua mudança.
Mas qual é, para Pachukanis, o fator principal que gera o direito? A mercadoria. Para ele, a circulação dela que produz essa superestrutura e, como sua generalização só está associada ao capitalismo, que transforma quase tudo em mercadoria, só existiria propriamente direito burguês. Aqui está claro que o autor dá primazia à circulação em detrimento da produção e, para isso, ele usa Marx, em O Capital, começando sua análise do direito por onde Marx inicia a do capitalismo: a mercadoria.
Acontece que Pachukanis não faz uma análise só sobre o direito privado (aquele por contratos entre particulares) ou do capitalismo, mas pretende fornecer uma explicação para origem da superestrutura jurídica como um todo. Além disso, Marx nunca colocou, para modo de produção algum, a sua principal parte na circulação, mas sempre na produção. Óbvio que temos uma relação dialética entre as duas coisas, mas que fique claro: o fator determinante são as relações de produção. Inclusive, falando sobre o direito, Marx diz que cada modo de produção gerará as suas próprias formas jurídicas e de governo e não, especificamente, a circulação dos itens que os homens e mulheres produzem.
A teoria de Pachukanis contraria também Engels, em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, que põe o momento de surgimento da superestrutura jurídica bem anterior ao capitalismo. Essa formulação, de que só existe direito burguês, também impossibilita o direito socialista. Assim, a ditadura proletária não pode ter uma produção normativa própria, segundo Pachukanis, pois todo direito é capitalista. A tese dele só pode ter dois objetivos ardis: justificar leis burguesas sob o socialismo, ou reivindicar a dissolução do direito antes da hora – leia-se, do Estado, e este sendo o da classe operária, a dissolução da própria ditadura do proletariado –, dando margem a restauração capitalista.
As formulações de Pachukanis nos pareceram bem-intencionadas, embora erradas, pois o autor oferecia uma explicação razoável para a expansão do direito burguês e privado no capitalismo, baseado na generalização da condição e circulação de mercadorias. Todavia, sua teoria contraria pedras angulares do marxismo. Isso explica o porquê de ela ter sido reabilitada na URSS no período de restauração capitalista, após a morte de Stalin. Fica aqui uma autocrítica, em relação às recentes publicações anteriores sobre o tema por mim assinadas, nesse ponto, e a afirmação do que Pachukanis e suas teses representam: revisionismo pútrido.
Stucka
Stucka ou Stuchka, dependendo do livro, é um autor com algumas obras traduzidas para o português, porém pouco trabalhado nas universidades, na maioria das vezes sendo mencionado como um bom teórico, mas rudimentar em relação a Pachukanis, com quem teria, segundo a “academia”, algumas “reservas marginais”.
Reprodução
O revisionista Evgeni Pachukanis
Segundo Stucka, em sua definição curta, o direito é um “sistema (ou ordenamento) de relações sociais correspondentes aos interesses da classe dominante e tutelado pela força organizada dessa classe”, porém, indo mais afundo em sua obra, ele coloca a principal fonte do direito nas relações de domínio sobre a propriedade dos meios de produção e sobre a terra em primeiro lugar. O autor ainda diz, em contraposição a Pachukanis, que o domínio sobre a circulação é uma fonte contingente do direito. Stucka, assim, se refere a essas duas matrizes da superestrutura jurídica, porém não fecha a questão, até onde conhecemos, sobre quais seriam as demais.
Stucka usa Marx para fiar sua principal fonte do direito, baseando-se na obra Contribuição à Crítica da Economia Política, na qual Marx diz que as relações de propriedade são expressão jurídica das relações de produção. Esse trecho não diverge da tradução feita para o português da obra, no entanto, Vyshinsky, sobre quem iremos nos aprofundar mais a frente, diz que ele está incorretamente traduzido do alemão para o russo. O autor coloca que a verdadeira tradução do trecho seria que as relações de propriedade são uma das expressões jurídicas das relações de produção. Embora exista a controvérsia sobre essa versão, nos parece um pouco estranho reduzir a expressão jurídica das relações de produção às relações de propriedade. Além disso, Marx diz, em Grundrisse, que relações de produção distintas geram suas próprias formas jurídicas e de governo, como falamos anteriormente, e sabemos que a forma como os homens e mulheres produzem e reproduzem sua existência produzem uma série de instituições, comportamentos, ideias etc., que não passam despercebidas à tutela jurídica.
O que estamos dizendo aqui é que a superestrutura jurídica se ocupa com a participação política, a família, a cultura, a imagem, entre outros aspectos, que não estão diretamente ligados à propriedade, porém que não se desvinculam do interesse de classe. Poderíamos dizer, no entanto, em favor de Stucka, que o direito, de maneira direta ou indireta, tem fundamento no domínio sobre a propriedade dos meios de produção. Todavia, isso é muito forçoso, quando falamos da tutela jurídica de alguns aspectos da superestrutura. Como o autor escreveu em um tempo em que o direito abarcava essencialmente a propriedade, ele pode ter a colocado como principal fonte da superestrutura jurídica e não trouxe outras que ele, talvez, não recusasse, mas que eram insignificantes em sua época.
Por fim, quanto a Stucka, recomendamos atenção em sua obra, nos pontos que dizem respeito ao direito civil e individuais, onde pesa a suspeita que o autor os enxerga, sob o socialismo, como essencialmente burgueses e não somente em certo aspecto¹, porém, com o nível de conhecimento que temos hoje, não podemos afirmar que Stucka foi um revisionista, mas recomendamos uma leitura vigilante sobre sua obra.
Vyshinsky
Por fim, iremos falar daquele que é mais vilipendiado na universidade e fora dela também. Para se ter noção da sua repulsa, é incomum citá-lo para fazer uma crítica a sua pessoa, mas comum é citar um terceiro que o criticou. Os “acadêmicos” não fazem uma análise pormenorizada da sua obra, que sequer leram, conforme tudo indica, e ainda o adjetivam como “procurador de Stalin”, “condutor dos processos de Moscou”, entre outras coisas, de forma a provocar preconceitos sobre a pessoa e sua teoria. Porém, longe disso gerar nossa repulsa ou desinteresse, despertou a maior curiosidade possível. No final, o feitiço se virou contra o feiticeiro.
Reprodução
"Tribunal soviético" (1928), pintura retratando a acusação de uma camponesa pobre contra um kulak
Para Vyshinsky, de maneira genérica, o direito de uma sociedade é o estatuto de sua classe dominante. De maneira mais pormenorizada, o autor define que a superestrutura jurídica é um conjunto de regras de conduta e costumes sociais estabelecidos em uma ordem legal, que expressam os interesses da classe dominante, numa sociedade de classes². A aplicação deste é garantida, segundo Vyshinsky, pelo Estado, através da coercitividade.
O autor descarta as concepções que colocam o Estado como produto da lei ou lei propriamente dita, como faz o positivismo. Destarte, para ele, o direito é produto de um Estado historicamente determinado.
Vyshinsky diz que a superestrutura jurídica tem como principal fonte as relações sociais de produção. Isso parece uma concepção apenas sutilmente diferente da de Stucka, mas não é, pois o conceito de Vyshinsky garante que o direito, baseado na infraestrutura de uma sociedade, tutelará também, com maior ou menor destaque, a esfera da superestrutura, o que faz muito sentido, hoje em dia, como dissemos, em um direito menos patrimonial, mas não com menor interesse de classe. Essa concepção é bastante importante, pois garante que a tutela jurídica não só repousará sobre a esfera de produção e propriedade, mas sobre as instituições políticas, a sociedade civil, a cultura, moral e todos os aspectos que forem necessários. Isso ocorre, pois, mesmo que algumas coisas ganhem uma feição autônoma no campo da superestrutura, elas têm uma base material, de onde retiram fundamento.
Reparem que isso tem um peso muito grande quando pensamos em revoluções culturais na sociedade socialista, tendo em vista que a contradição principal nesse caso se desloca para a esfera da superestrutura. A propósito, nesse sentido, Vyshinsky diz que os objetivos do direito socialista são a eliminação, enquanto classe, dos antigos exploradores e seus hábitos, costumes, vícios etc., além da edificação da sociedade socialista. Isso não difere do que Lenin enunciou, em O Estado e a Revolução, como objetivo da Ditadura do Proletariado. Outro ponto interessante sobre Vyshinsky é que sua teoria sobre o direito caminha ao lado da teoria do Estado. Na verdade, faz parte dela. A superestrutura jurídica parece emanada do Estado, de classe, para ditar um conteúdo uniforme e o mais racionalizado, de atuação, sobre todo um território.
Conclusões gerais
Não foi objeto desse texto, mas convém dizer que ainda não chegamos a uma formulação final sobre a teoria geral do direito e nem poderíamos nesse pequeno espaço. Contudo, já podemos constatar que tal formulação exigirá um aprofundamento da obra de Andrey Vyshinsky. Afinal, a teoria deste último parece ser a formulação subjetiva que mais corresponde à objetividade da realidade concreta, no que diz respeito ao direito. É importante dizer que isso também passará, muito provavelmente, pelos juristas da China, da época da revolução cultural. Todavia, não os mencionamos pois fugiam do objeto textual e, infelizmente, não temos nenhum material para falar sobre suas formulações.
Reprodução
Andrey Vyshinsky, figura mais avançada do direito soviético
Notas:
1- Tanto Marx, quanto Lenin, fazem referências ao Estado e ao direito sob o socialismo como sendo, em certo aspecto, burgueses, mas as referências ao direito burguês sob o socialismo, na Crítica ao Programa de Gotha, e ao “Estado burguês, sem burguesia”, do Estado e a Revolução, não dizem respeito a essência do direito e do Estado, o que seria perverter a relação entre infraestrutura e superestrutura, algo inimaginável para os dois. No campo do direito, Pachukanis, Reisner e outros, defenderam essa deformação, afirmando que uma base de sociedade socialista poderia produzir direito de outras classes
2 – Quanto às nossas conclusões sobre a subjacência da semifeudalidade no direito, apresentadas na edição 247 de AND, elas não perdem sua validade, sendo ainda um reflexo verdadeiro na teoria de Vyshinsky sobre a superestrutura jurídica.