“Informação é poder. Mas como todo poder, há aquelas que querem mantê-lo para si mesmos. O patrimônio científico e cultural do mundo, publicado ao longo dos séculos em livros e revistas, é cada vez mais digitalizado e trancado por um punhado de corporações privadas. Quer ler as revistas científicas, apresentando os resultados mais famosos das ciências? Você vai precisar pagar muito dinheiro para editoras como a Elsevier”.
Aaron Swartz em “Manifesto da Guerrilha pelo Acesso Aberto”
As revistas científicas
Tudo o que hoje sabemos advém muito pouco de nossa experiência direta e individual, e muito da experiência indireta e coletiva - experiência direta dos nossos antepassados - transmitida em grande parte por meio da escrita. Um pesquisador durante meses trabalhando em um laboratório sozinho está cercado de inúmeros outros cientistas, de diversos países e épocas da humanidade. A ciência é um processo necessariamente coletivo e é realizada diariamente por homens e mulheres no mundo todo como uma forma da prática social do ser humano no processo do conhecimento e transformação da realidade.
Charles Darwin, quando publicou sua grande obra A Origem das Espécies em 1859, expressou não só o produto de sua mente brilhante, mas o resultado de um longo processo de estudo e experimentação de homens e mulheres. Darwin não teria chegado à conclusão de sua obra se não fosse a experimentação científica e suas relações por via de textos e debates com seus contemporâneos, como o geólogo Charles Lyell¹ e o economista Thomas Malthus. Ou, sem o acesso às pesquisas e conclusões dos que o antecederam, como o próprio autor destaca no prefácio da edição de 1872 de sua obra, citando dezenas de estudos anteriores, principalmente do naturalista Lamarck², que havia já publicado em 1809 a obra que discutia a formação dos seres vivos como um processo de evolução e de constante mudança³ ⁴.
Da mesma forma que um cientista precisa conhecer o que a humanidade já sabe, também precisa registrar o que descobre. Se Copérnico, Galileu e Newton relatavam seus resultados a partir de livros técnicos, hoje em dia isto é feito principalmente através dos artigos científicos – peças curtas publicadas em revistas especializadas. As revistas científicas são diferentes das revistas e livros de divulgação científica, possuindo, teoricamente, um método muito mais rigoroso de verificação dos fatos antes da publicação. Quando um pesquisador chega a novos resultados, os escreve e submete para serem publicados em uma revista científica. Em geral, as revistas consideradas na academia como mais confiáveis se utilizam de um método chamado “revisão por pares”. Quando o artigo chega a uma dessas revistas, é revisado por outros cientistas da área que possuem a função de avaliar o método científico empregado, a relevância do assunto e a coerência das conclusões expostas. Depois, se o artigo for considerado válido e relevante, é publicado pela revista, e então, os resultados obtidos pelo pesquisador passam a ser acessíveis a toda comunidade.
Considera-se que quanto mais rigoroso é este processo de revisão anterior a publicação, mais difícil é se publicar na revista, mais confiável se torna o conteúdo deste periódico e assim também maior seu prestígio. Isso faz com que estas revistas sejam mais lidas e seus artigos mais citados, tornando os trabalhos dos cientistas que nelas publicam mais reconhecidos.
O custo de comprar e publicar em revistas científicas
Quando se trata de revistas científicas, se paga entre 20 a 100 dólares (100 a 500 reais) para ler apenas um único artigo da revista, e às vezes também se paga para publicar nelas. Quando um artigo é aceito por um periódico, ou seja, é reconhecido pelo mérito e importância do trabalho, usualmente é cobrada uma taxa ao pesquisador para que o artigo seja de fato publicado, como forma de “contribuição nos gastos da publicação”, valor que pode chegar até cinco mil dólares (R$ 25 mil)⁵. Esse valor será ainda maior caso o pesquisador receba a honra de ser convidado para ter seu artigo como capa da edição. Ainda, há revistas que, apenas para se ter a oportunidade de ter o artigo avaliado pelo revisor, já é necessário despender uma quantia.
Visto o alto custo envolvido no acesso e publicação de revistas científicas, esses gastos não são arcados por cientistas individualmente, mas por meio de contratos entre bibliotecas ou agências de fomento à pesquisa com as editoras. No Brasil, isso se dá principalmente a partir da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
As assinaturas por pacotes de revistas (Big Deals)
Com o preço alto de acesso aos artigos e a maior facilidade de trânsito das revistas a partir das publicações online, nos anos 90 cresce o modelo de negócios entre editoras e bibliotecas por meio de acordos por pacotes de revistas chamados de Big Deals. Este modelo propõe a assinatura de um grupo de jornais de uma editora por um preço único. Desde este momento, as instituições de ensino e pesquisa, para terem acesso às revistas mais prestigiadas, precisaram assinar inúmeros outros periódicos produzidos pela mesma editora. Dessa forma, este modelo serviu para enriquecer ainda mais as editoras, que passaram a vender todos os seus produtos, inclusive os de baixa e questionável qualidade científica, já que jornais que normalmente não seriam comprados pelas bibliotecas foram incluídos nos pacotes junto com revistas prestigiadas.
Os custos das assinaturas por pacotes, propagandeadas por representarem suposta economia para as bibliotecas, passaram a crescer todo ano e se tornar um peso para bibliotecas do mundo inteiro. Assim, desde 2004, ocorreram inúmeros cancelamentos de contratos com as editoras, mesmo nas universidades mais prestigiadas e bem financiadas dos Estados Unidos e Europa⁶. No Brasil, considerando ainda o aumento do valor do dólar nos últimos anos, o gasto de recursos para garantir as assinaturas é cada ano maior. Em 2014, a Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) precisou cortar 42% dos periódicos assinados⁷. Em 2015, a Universidade do Estado de São Paulo (USP) previa R$ 16 milhões do orçamento para a compra dos periódicos. Em 2020, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) gastou R$ 11 milhões nas assinaturas de periódicos acadêmicos⁸. A Capes aumenta todos os anos o gasto com o Portal Capes, maior acervo de artigos científicos disponibilizados para universidades brasileiras, destinando em 2020 mais de 480 milhões de reais para manter o Portal⁹.
Entre as editoras comerciais que dominam o mercado de publicação de revistas científicas está em primeiro lugar a Reed Elsevier, que fatura anualmente mais de 2,6 bilhões de libras (R$ 19,7 bilhões) somente em função da publicação de revistas na área médica e de ciências exatas¹⁰. Esta editora é resultado de uma fusão entre dois grupos nos anos 90, que resultou na multinacional britânica denominada RELX, avaliada em 2015 em 31 bilhões de libras (R$ 236 bilhões)¹¹.
A Elsevier se aproveitou muito dos acordos Big Deals, havendo períodos de contratos da Capes com a editora que incluíam no pacote de assinaturas 700 revistas jamais consultadas no acervo da Capes¹⁴. Através desses contratos, a editora também fez com que bibliotecas acadêmicas e instituições públicas de fomento à pesquisa financiassem periódicos que nem científicos são. Exemplos são periódicos pseudocientíficos sobre acupuntura, antroposofia, ayurveda e homeopatia que constam, até hoje, em seu acervo¹² ¹³. A Elsevier também foi denunciada em 2009 por receber dinheiro em valor desconhecido da multinacional estadunidense Merck, uma das maiores farmacêuticas do mundo, para que produzisse a revista Australasian Journal of Bone and Joint Medicine, que publicava artigos favoráveis aos produtos da empresa.
O monopólio por parte das Editoras Comerciais
Até antes da 2ª Guerra Mundial, a maior parte dos jornais científicos eram publicados por sociedades científicas. Depois, passa a se desenvolver o mercado de editoras comerciais e, no momento do surgimento dos periódicos eletrônicos nos anos 80, as editoras comerciais crescem drasticamente na publicação de artigos científicos e na compra das editoras menores. Entre 1997 a 2000, pelo menos 5 grandes editoras comerciais foram compradas por suas rivais. Isto foi acompanhado de um aumento de 20-30% nos custos das assinaturas das revistas¹⁴. Quanto maior os oligopólios, quanto mais revistas prestigiadas sob domínio de poucas editoras, maior o poder de negócio das editoras frente às bibliotecas acadêmicas.
Os dados a seguir comprovam o crescimento das editoras comerciais a partir dos anos 90: em 1973, as cinco maiores editoras comerciais de ciências naturais e médicas dominavam 20% dos artigos. Em 1996, este número cresceu para 30%, alcançando em 2013, 53% de toda a publicação na área. Na área de ciências sociais e humanidades este crescimento não é diferente: em 1973, as cinco maiores editoras na área (Reed Elsevier, Taylor & Francis, Wiley-Blackwell, Springer e Sage) correspondiam a publicação de 10% dos artigos. Em 2013 este número atingiu 51%¹⁵.
O ramo de publicação de artigos científicos é altamente lucrativo, principalmente depois do surgimento das versões virtuais e a quase inexistência da versão impressa. Para a produção dos periódicos as editoras não precisam comprar a “matéria-prima” (o artigo), que é dado de graça pelos pesquisadores, quando não é inclusive fornecido mediante pagamento. A revisão por pares também é realizada, geralmente, de forma gratuita, por pesquisadores de universidades convidados pelas revistas para prestarem este serviço. A venda é garantida para compradores dispostos a pagar muito, visto ser proibida a publicação de um mesmo artigo em mais de uma revista. Cada artigo e cada revista é uma peça única para as bibliotecas. Dessa forma, a publicação de artigos científicos é um ramo sem concorrência e o preço do produto não se relaciona com o custo da produção por parte das editoras.
Além disso, a “matéria prima” das revistas científicas vem de uma fonte inesgotável. Nos últimos anos essa fonte cresceu ainda mais. Infelizmente, não necessariamente porque a produção científica seja maior, mas em função do incentivo ao aumento da produção de artigos. Para um pesquisador ser reconhecido é necessário que tenha várias publicações e que sejam em revistas consideradas importantes. Por exemplo, um cientista brasileiro na área da Farmácia para receber a classificação de pesquisador de nível máximo (1A) do CNPq, precisa publicar 70 artigos científicos a cada 10 anos (um avanço a cada 2 meses)¹⁶ ¹⁷. Isto determinará a quantidade de dinheiro que receberá para o seu laboratório. Sem entrar no mérito do debate sobre a qualidade duvidosa da pesquisa que vem sendo produzida nesse modelo, a quantidade incessante de artigos científicos que são cobrados aos cientistas faz com que se torne incontável o material das editoras para produzir revistas científicas, e também facilita que estas cobrem muito dos autores para terem seus artigos publicados.
O pagamento das bibliotecas e instituições relacionadas à pesquisa para as editoras do mundo é enorme. Em pesquisa feita em 2019, contabilizando os gastos com pagamentos de editoras em 26 países europeus, o total obtido foi de 597 milhões de euros (R$ 3,6 bilhões), sendo 75% deste valor destinado para as cinco maiores editoras: Elsevier, Springer, Wiley, Taylor & Francis e American Chemical Society¹⁸. Essas editoras crescem e lucram cada vez mais, garantindo suas receitas a partir das bibliotecas acadêmicas, que representam de 68% a 75% do valor que recebem. Entre 1991 a 2013, os lucros da Elsevier, só na área científica, mais que dobraram (665 milhões de dólares para 1,45 bilhões de dólares), assim como também cresceu sua margem de lucro (de 17% para 26%)¹⁹.
No processo de desenvolvimento da pesquisa e divulgação de resultados no Brasil, semelhante a grande parte dos demais países, desde a assinatura dos periódicos a serem consultados, ao financiamento da pesquisa, compra de equipamentos e reagentes, pagamento da bolsa do pesquisador e da publicação do seu artigo, os recursos vêm principalmente das maiores agências públicas de fomento à pesquisa no país. As grandes editoras comerciais, todas estrangeiras, se utilizam das pesquisas produzidas pelo dinheiro público do nosso país para gerar seu produto, e o vendem novamente para nossas instituições públicas. Pagamos para produzir nossa pesquisa, pagamos para dá-las às editoras e depois pagamos para acessá-las a partir da assinatura das revistas. Neste processo, nem o direito autoral sobre a pesquisa fica para os cientistas.
Notas:
1 - Na época explorava diversos jazigos fossilíferos e examinava todo tipo de objeto desenterrado. Em 1863 publicara seu livro sobre o tema “The Antiquity of the Human Race”.
2 - Em 1809 publica a obra “Philosophie Zoologique” e em 1815 a obra “História natural dos animais invertebrados”.
3 - DE ALMEIDA, Argus V.; FALCÃO, Jorge T. R. As teorias de Lamarck e Darwin nos livros didáticos de Biologia no Brasil. Ciência & Educação, Brasil, v. 16, n. 3, p. 649, 2011.
4 - DARWIN, Charles. A Origem das Espécies: A origem das espécies por meio da seleção natural ou a preservação das raças favorecidas na luta pela vida. 6. ed. São Paulo: Martin Claret Ltda., 2014.
5 - Valor de 2019 da revista Lancet Infections Diseases da editora Elsevier, um dos principais periódicos de ciências biológicas e medicinais.
6 - COGHILL, Jeffrey G. The Big Deal: Should Libraries Stay or Should Libraries Go? Journal of Electronic Resources in Medical Libraries, USA, 2019.
7 - CISCATE, Rafael. Você pagaria R$ 6 mil para ler uma revista? ÉPOCA, Brasil, 2015.
8 - https://transparencia.unicamp.br/ (Acessado em 16 de novembro de 2021).
9 - Capes (Acessado em 16 de novembro de 2021).
10 - Key financial data (Acessado em 16 de novembro de 2021).
11 - Empresas estrangeiras no nosso dia-dia (Acessado em 16 de novembro de 2021)
12 - Journal of acupunture and meridian studies (Acessado em 14 de março de 2022)
13 - Chaos, solitons & fractals (Acessado em 14 de março de 2022)
14 - SOARES, G. A. D. O Portal de Periódicos da Capes: dados e pensamentos. Revista Brasileira de Pós-Graduação, Brasil, v. 1, n. 1, 11, 2004.
15 - ARIVIÈRE, Vicent; HAUSTEIN, Stefanie; MONGEON, Philippe. The Oligopoly of Academic Publishers in the Digital Era. PLOS ONE, USA, 2015.
16 - A máquina que trava a ciência (Acessado em 16 de novembro de 2021).
17 - GOUVÊA, Marcos. Produção científica na área de farmácia: produtividade e perfil dos bolsistas em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Trabalho de Conclusão de Curso, UFF, Niterói, 2016.
18 - STOY, Lennart; MORAIS, Rita; BORRELL-DAMIÁN, Lidia. Decrypting the Big Deal Landscape. European University Association, 2019.
19 - Idem nota 15