Para o monopólio da imprensa, o regime de exceção que vigorou durante a gerência militar no Brasil foi brando. Mas o que a direita e a falsa esquerda omitem é que o objetivo central do golpe de 64 foi a total conquista do Estado brasileiro pelo imperialismo ianque e a segurança de que seus desígnios seriam cumpridos sem hesitação.
No último dia 17 de fevereiro, o reacionário jornal Folha de S. Paulo disse textualmente que a ditadura de 1964 foi branda. A classificação veio com o termo "ditabranda", que na concepção do jornal melhor caracteriza o regime de exceção brasileiro se comparado com as outras gerências militares no Cone Sul.
A atitude da Folha de S. Paulo fomentou uma onda de manifestações. Centenas de cartas foram enviadas ao jornal, milhares de pessoas subscreveram um abaixo-assinado pela internet e cerca de 400 cidadãos protestaram em frente à sede do jornal, no dia 7 de março. Entre as faixas, uma dizia "Abaixo a mídia golpista".
A Folha foi sócia da ditadura
Ao tentar amenizar a brutalidade do sistema de governo implantado no Brasil entre 1964 e 1985, a Folha não fez nada além de ser fiel a seus princípios. Como se sabe, a Folha de S. Paulo clamou pelo golpe militar de 64 para "combater o comunismo e a república sindical de Jango"; apoiou o setor "linha dura" dos generais golpistas; cedeu seus carros de reportagem para transportar os presos políticos à tortura; e foi o jornal que mais abrigou policiais dentro da redação. A empresa prosperou nas masmorras da ditadura militar.
Em entrevista ao portal de internet Viomundo, a escritora Beatriz Kushnir, autora do livro Cães de Guarda — Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988, confirma a vocação reacionária do jornal da família Frias:
— A Folha nasceu para ser um jornal pra disputar o mercado com o Jornal da Tarde. (...) Após a morte de Marighela, esse jornal dá uma guinada à direita. Passa a dar informações dos órgãos de repressão como se fossem reportagens. (...) Durante anos o jornal foi completamente aparelhado pela repressão. Tanto que no livro existem várias fotos de carros da Folha queimados por militantes porque antes os militantes chegavam perto dos carros pra denunciar o que estava acontecendo, e aí saiam policiais. Por isso você tem carros da Folha sendo queimados.
O que foi a gerência militar
Entretanto, para entender o neologismo da Folha de S. Paulo é preciso compreender o que foi a gerência militar de 64. Senão, o máximo que se vai conseguir é uma onda de manifestações superficiais. O que está no bojo da derrubada do presidente João Goulart é a conquista definitiva do Estado brasileiro pelo imperialismo ianque e o domínio da economia nacional pelas suas corporações. Isto, até o momento, não foi considerado pelos que protestam de boa fé e muito menos pela falsa esquerda. Para a direita e o monopólio da imprensa, por sua vez, esta omissão é convenientemente adequada.
René Dreifuss, em seu clássico livro 1964: A Conquista do Estado — Ação Política, Poder e Golpe de Classe (Editora Vozes) demonstra claramente a intervenção estrangeira no processo democrático brasileiro.
"O capital monopolista transnacional ganhou uma posição estratégica na economia brasileira, determinando o ritmo e a direção da industrialização e estipulando a forma de expansão capitalista nacional".
O escritor revela ainda que o golpe não pertenceu apenas a grupos militares, mas contou com decisiva participação de setores civis — FIESP à frente. Outras instituições de "estudos" foram fundamentais para desenvolver uma ideologia servil aos interesses estrangeiros, como o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), o Conselho Nacional das Classes Produtoras (CONCLAP), a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e a Federation of the American Chambers of Commerce do Brasil. Com relação aos investimentos estrangeiros no IPES, o autor identifica 297 corporações dos EUA e 101 provenientes de outros países. Embora os membros do IPES negassem, o então cônsul dos USA Niles Bond disse ter certeza de que fundos estadunidenses chegavam ao IPES. Ademais, o embaixador Lincoln Gordon também atuou em favor dessas operações. Por fim, Dreifuss complementa: "Dinheiro da CIA americana também era canalizado para o IBAD" (página 223).
As empresas que lucraram
Entre os que conspiraram para o golpe que sequestrou, torturou e matou milhares de brasileiros estão: Unibanco, Esso, Souza Cruz, Mesbla, Morgan Group (que avalia o "risco-país"), Mercedes-Benz, Brascan, Texaco, Shell, IBM, O Estado de São Paulo, Organizações Globo, FIESP, TV Record, Light, Itaú, Gerdau, Votorantim, Motorola, Johnson, Nestlé, Alpargatas (que fabrica as Havaianas), Coca-Cola, Panair, Varig, Cruzeiro do Sul, Grupo Sul-América, Lojas Americanas, Kibon, Cia. Suzano de Papel, Antárctica, Brahma e Editora Saraiva.
René Dreifuss relata a criação do Grupo de Opinião Pública, que funcionava dentro do IPES e tinha como objetivo declarado manipular a opinião pública por todos os meios disponíveis. JB, Estadão e Repórter Esso são citados como colaboradores do esquema, e o general Golbery do Couto e Silva foi apelidado de Chefe Geral de Opinião Pública.
Mas nenhum outro veículo de comunicação foi tão importante para sustentar o regime de exceção quanto a TV Globo. Fundada a partir de um contrato assinado em 1962, em Nova York, entre Roberto Marinho e o Grupo Time-Life, a Globo nasce com o claro objetivo de formatar uma opinião pública que aceitasse a ditadura. É o que explica o escritor Roméro da Costa Machado, que trabalhou na Fundação Roberto Marinho por dez anos:
"O escândalo Globo/Time-Life não é meramente um caso de um sócio brasileiro (Roberto Marinho) que aceita como sócio uma empresa estrangeira (Grupo Time-Life), contra todas as leis do país. O escândalo Globo/Time-Life é mais do que isso. É antes de mais nada um suporte de mídia que visava apoiar, dar base, sustentação e consolidar a ditadura no Brasil, apoiada e supervisionada pela CIA, por exigência dos Estados Unidos, comandado por terroristas da CIA, como Vernon Walters e Joe Walach, sendo este último com emprego fixo na Globo, como "representante" do grupo Time-Life".
Não há dúvidas de que a ação do Estado, apesar de passado para mãos "civis" continua seguindo o mesmo padrão. Tanto que o modelo é o mesmo: agrário-exportador, concentrador de renda e violentamente opressor (as polícias militares estão aí para provar).
Portanto, quando a Folha de S. Paulo escreve que a ditadura brasileira foi branda, ela não faz nada mais que reiterar seu caráter de classe antipovo. Além, é claro, de reforçar a participação no golpe do monopólio da imprensa, aliado ao imperialismo, em quem não se pode confiar em absoluto.