Dezenove de abril é tido como o Dia do Índio. Dia de apoio a eles, deveriam ser todos. Pois a exemplo do que ocorre com os camponeses pobres, os indígenas brasileiros continuam sendo cotidianamente atacados pelo latifúndio semifeudal e as demais classes dominantes.

Gravura de Debret mostrando índios sendo escravizados por portugueses
É um processo que começou 500 anos atrás, quando o capitalismo mercantil europeu invadiu o território das nações nativas deste pedaço da América.
Sobre o genocídio que abateu milhões de índios brasileiros, disseram o historiador Pedro Paulo Funari e o arqueólogo Francisco Noelli:
"Aryon
Rodrigues, um grande especialista em línguas indígenas
(...) propôs uma estimativa sobre a quantidade de línguas faladas
por povos diferentes no território brasileiro (...) A projeção
alcançada foi da ordem de 1200 línguas no início do século
XVI.
(...)Nos séculos seguintes à chegada de Cabral, teria havido
uma drástica redução das línguas indígenas
no Brasil, principalmente em virtude da morte de muitos milhões de pessoas,
na ordem de mais de 80%, uma perda incomensurável de diversidade cultural.
Em termos demográficos, isso significa uma triste conta ainda a ser
feita, esperando por pesquisas que possam revelar a dimensão do genocídio
indígena".
O roubo
Conforme
o último relatório do Conselho Indigenista Missionário
(Cimi) , ocorreram 41 casos de invasões possessórias e de exploração
de recursos naturais em áreas indígenas no período 2008/2009.
As invasões foram cometidas por "pecuaristas, agricultores e grileiros"
(boa parte fazendeiros e grandes empresários, segundo outras fontes).
Madeireiras e garimpeiros retiraram ilegalmente de terras indígenas bens lucrativos como pedras preciosas, ouro, cascalho e areia. Os casos ocorreram nos estados do Acre, Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraná, Rio de Janeiro, Rondônia, Rio Grande do Sul, Roraima, Santa Catarina e Tocantins.
O estado com o maior número de casos (8) foi Rondônia. O relatório do Cimi registrou invasão de terras indígenas por fazendeiros, exploração ilegal de madeira, retirada de areia e construção de obras. Sublinhou ainda que o próprio gerente de Rondônia, Ivo Cassol, ocupa 80% do território tradicional do povo Wayurú.
Mato Grosso apareceu com 7 casos (entre desmatamento, exploração ilegal de madeira, invasão por fazendeiros, poluição de rios por agrotóxicos e pesca predatória). "Isto não surpreende, visto que o Mato Grosso tem registrado os piores índices de desmatamento em consequência da expansão de monoculturas, sobretudo de soja, que requerem, além de espaço, uso intensivo de agrotóxicos", afirmou o documento do Cimi.
No período foram anotados 16 conflitos relativos aos direitos territoriais dos índios: Bahia (2), Ceará (4), Maranhão (1), Mato Grosso (1), Mato Grosso do Sul (1), Pará (1), Rondônia (5) e Santa Catarina (1).
O relatório apontou que em 9 casos a causa principal "foi a morosidade das autoridades na regularização das terras indígenas".
O documento apontou outros 37 casos de omissão e morosidade na regularização das terras. "A Funai não atende às demandas das comunidades indígenas. Há demora na demarcação e algumas vezes até paralisação do processo", disse Roberto Liebgott, vice-presidente do Cimi.
Os índios enfrentam outro problema mesmo quando a homologação oficial é realizada: a retirada dos invasores. A área Apyterewa dos parakanãs, no Pará, é um exemplo. A terra foi homologada, no entanto mais de 1.200 fazendeiros e madeireiros continuavam no local, no período 2008/2009.
Outro caso foi o da comunidade dos tupinambás, que foi expulsa de forma violenta de uma área que havia retomado, porque a Funai não cumpriu o prazo estipulado pelo Tribunal Regional Federal para finalizar o relatório de identificação das terras.
Houve, por outro lado, 7 conflitos provocados pela construção de obras, como um centro turístico e um porto no Ceará. Em Rondônia, obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) da gerência Luiz Inácio, não levaram em conta os impactos aos chamados Povos Isolados (Obs: grupos indígenas ainda sem contato com os brancos), colocando em risco sua sobrevivência. Foi o caso da hidrelétrica de Santo Antônio, no rio Madeira, e do asfaltamento da BR-429, que liga os municípios de Presidente Médici e Costa Marques.
Os assassinatos
Segundo o relatório, 60 indígenas foram assassinados no país. Outras fontes informam que muitos deles foram por mando de latifundiários.
Desse total, 42 vítimas eram guaranis, que pertenciam ao subgrupo dos kaiowás, do Mato Grosso do Sul. As outras mortes foram cometidas no Maranhão (3), Minas Gerais (4), Alagoas (2), Pernambuco (2) e Tocantins (2).
"Ninguém é condenado quando mata um índio. Na verdade, os condenados até hoje são os indígenas, não os assassinos", disse Anastácio Peralta, liderança dos guaranis kaiowás, revoltado.
E complementou: "Nós estamos amontoados em pequenos acampamentos. A falta de espaço faz com que os conflitos fiquem mais acirrados, tanto por partes dos fazendeiros que querem nos massacrar, quanto entre os próprios indígenas que não tem alternativa de trabalho, de renda, de educação. A polícia vem rapidamente prender um índio que fizer algo errado. Mas se algo for feito contra ele, não são tomadas providências".
O protesto desses guaranis frente aos ataques e injustiças sofridas os têm levado até à auto-imolação: 34 deles se suicidaram, 50% mais que no período anterior.
A brava resistência
Apesar dos ferozes ataques das classes reacionárias,
as nações
nativas têm imposto uma resistência constante a esses criminosos.
Como vimos, no período de um ano houve 16 conflitos relativos a terras
e 7 relativos à construção de obras, somando portanto
23 casos em que os índios empreenderam lutas por seus direitos.
É importante
então, neste abril, homenagear os guerreiros indígenas
do país relembrando a história do povo kurâ (bakairi) do
Mato Grosso. Esta antiga nação, quando os brancos das classes
agressoras já achavam que estava desculturada e dominada, começou
a renascer das cinzas a partir dos anos 1960, travando embates e obtendo vitórias
pouco conhecidas pelos brasileiros.
No final da década de 1980 e início
da de 1990 acompanhei pessoalmente uma parte dessas lutas, resultando daí um
grande respeito e admiração
por esta tribo tão valorosa.
Os kurâs, conhecidos como bakairis
pelos brancos, pertencem à cultura
karib e habitam o sul do Xingu nas reservas de Santana e Pakuera, onde vivem
em diversas aldeias.
Hoje somam cerca de mil indivíduos. Uma grande
conquista de sobrevivência,
pois contaminados pelo sarampo, já estiveram à beira da extinção:
em 1884 estavam reduzidos a 77 pessoas.
Na verdade, toda a história
dos kurâs é uma sequência
de conquistas contra vários tipos de violência.
Na década
de 1730 foram transformados em escravos nas minas de Mato Grosso e, mais tarde,
anos 1800, nas de Diamantino. Nesta última época,
uma parte deles também foi explorada por fazendas agrícolas e
de gado na região do rio Paranatinga.
A partir de 1884, os kurâs
foram obrigados a trabalhar em empreendimentos seringueiros, na extração
da borracha, sofrendo grandes violências,
entre elas a proibição de falar a sua língua.
Na década
de 1920 o governou ordenou a ida dos kurâs ao Paranatinga
e nesta migração as epidemias extinguiram vários grupos
da tribo. Nesta fase, além de muitos continuarem subjugados pelos seringueiros
e de não poderem praticar o idioma ancestral, a nova aldeia Pakuera
teve que aceitar a nefasta presença de evangélicos ianques da
South American Indian Mission (SAIM). Esta entidade gringa hoje é ligada à Igreja
Cristã Evangélica do Brasil, tidos como protestantes dos mais
conservadores.
Sobre isso, a índia Darlene Tawkane, que conheci jovenzinha
na aldeia, sonhando em ir estudar na Universidade em Cuiabá, contou
em seu livro A história da educação escolar
entre os Kurâ-Bakairi ,
editado em 1999:
"Anos após a implantação da escola
(na Pakuera), em 1928, instalaram-se entre nós os missionários
protestantes da SAIM, com o objetivo de nos converter ao protestantismo. Nessa época,
muitos dos (nossos) recém-migrados do Alto Xingu haviam morrido em razão
de surtos epidêmicos que chegaram a extinguir aldeias inteiras.
Eles
(missionários) instalaram-se nos primeiros anos distante do Posto
do SPI (hoje Funai), às margens do Ribeirão Azul e perto de sua
confluência com o Paranatinga, onde hoje se localiza o Posto e a Escola.
Esses missionários e os agentes do SPILTN (Serviço de Proteção
ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais, também
conhecido como "escola do marechal Rondon") disputaram entre si o
poder sobre os Kurâ-Bakairi.
Em meio a essas disputas, os missionários
optaram por adotar uma estratégia
política que favorecesse suas relações com os indígenas:
presenteá-los para atraí-los, sobretudo aqueles que frequentavam
os seus cultos dominicais, com sabonetes, sabão, colares de miçangas,
roupas, tecidos, perfumes, etc.
Os meninos que frequentavam sua escola, que
funcionava em regime de semi-internato, trabalhavam nas hortas e as meninas
como empregadas domésticas na missão.
Como forma de pagamento pelo trabalho realizado, estas crianças recebiam
os mesmos brindes".
Essa situação descrita por Darlene durou
40 anos, quando então
os kurâs organizaram um movimento de resistência e combate a todas
as opressões sofridas, não apenas as relativas à missão
da SAIM.
Foi a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar!
Foi o fim
daquilo que a tribo chama de "tempo da escravidão",
marcado pelo trabalho forçado, pelo exílio compulsório,
pelo rígido controle de suas vidas, pelos castigos aplicados aos "infratores" da
ordem imposta.
Expulsaram os missionários gringos na década de
1960; voltaram a falar a língua ancestral; expulsaram os seringueiros
nos anos 1970 e na mesma época informaram a outros missionários
gringos (do Summer Institute, acusado de vínculos com a CIA e financiado
pelo bilionário
Rockfeller, entre outros capitalistas) que suas visitas não eram mais
benvindas; nos anos 1980 afastaram chefes do Posto local da Funai, brancos,
substituindo-os por um conselho de caciques e pajés, implantaram uma
educação bilíngue com professores exclusivamente kurâs
e retomaram práticas culturais que tinham sido proibidas ou abandonadas.
Entre tais práticas estavam a contação de lendas, os
cantos e danças do "kapa", a confecção de canoas
usando somente a casca do jatobá (uma especialidade da tribo, que preserva
a madeira da árvore) e a festa do batismo do milho.
Vivendo no Mato
Grosso, em 1988 tive a honra de fazer parte de um pequeno número de
convidados brancos que presenciaram a retomada da festa do milho, quando travei
amizade com alguns kurâs, principalmente com membros
da família Tawkane (Darlene, Doroti e Estevão).
Na continuação
desta amizade tive oportunidade, anos depois, já morando em Brasília,
de ser mensageira da aldeia junto à Funai.
Foi num episódio guerreiro em que o grupo indígena capturou alguns
paulistas, de famílias burguesas, que há anos faziam temporadas
de pesca no território kurâ, cometendo barbaridades nos rios dos índios,
tais como matar peixes jogando dinamite na água.