para Daniel Herz e seus atuadores fantasistas, e para
Jorge Enrique Rodríguez, combatente de Malvinas
É da guerra o de que se trata. E é de tão perto que a guerra nos chega que ela parece não ter nome, não ter hora, não implicar registro cartográfico, não nos ofertar coordenadas de qualquer espécie – uma certa Razão de Estado; delimitações estratégicas de cunho geopolítico; motivações contábeis e financeiras de complexo industrial-militar; aspectos logísticos que versem sobre contingente de tropa e especificidade de armamento; relatórios e mapas do território no que se vai plantar o teatro de operações; cálculos balísticos a ver se o que se dispõe é suficiente ao enfrentamento ou se o que se anuncia é o sacrifício prévio dos combatentes. Nada disso é o que nos chega em primeira hora. A ausência de lugares-comuns, de zonas confortáveis ao passo tranquilo é condição de imersão, espécie de convocatória à revelia, na forma de um telegrama que chega e nos diz: fulano de tal – nome sobrenome apresentar-se dia tal hora tal regimento tal batalhão x evitar atrasos faltas sob as penas da lei atenciosamente e já estamos. A guerra nos começa pelo telegrama que chega, pelos noticiários falaciosos em rede nacional, ou pelo apagar das luzes ao tocar do segundo sino, o palco todo escuro, os atores imóveis como se fossem de granito ou de mármore, o terceiro sinal – quiçá mais agudo, quiçá de uma estridência que dói e arde como uma agulha no tímpano, um badalo de lâminas afiadas. E já estamos.
NO FRONT nos invoca o testemunho na contagem dos vivos, na contação dos mortos: NO FRONT, e Daniel Herz e seus excelentes atuadores, nos impõe a hora sem fundo e sem resgate, o tempo descarnado e carregado de poeira química, a agonia dos instantes trafegados a narrativa – seu dever histórico; o inventário dos que restam, o rastreio dos resíduos; os vestígios ao soterramento – a escuta atenta àqueles que gritam sufocados em meio aos escombros, porque parece haver uma criança ali, porque parece que o filho que é a criança está ali, a presença material concreta da palavra que grita, é a mãe que grita, é a mãe que chama pelo nome do filho que a terra vai comendo e que ainda não, por que quede que o filho, quede que ele que não está no quarto, que não está em meio aos seus joguetes, quede que ele que não está com o seu cão de guarda, quede que ele, e a mãe é ágil, agônica, estropiada, desossada também ela, ela continua a sua sina no que debulha o terror, ela continua a lavoura no que ara a terra caída em brita cimento ferragens, ela grita uma segunda vez uma segunda voz, a sua palavra que gira revolta, que entra e que sai da boca, palavra cheia de gestos em partitura, palavra de Carol que parece continuar no que seus braços sacolejam a terra numa espécie de colheita derradeira; palavras de Carol que é como braços que catam sementes pisoteadas en tierras mal habidas onde o que há são ruínas e pedaços de gente e entulhos de gestos encerrados em meio a um tempo suspenso – palavras cheias de dedos, mãos que não titubeiam em gagueira, em glossolalia, mãos que são como pinças, como escavadeiras.
“O lugar ficou vazio, não sobrou nada. Apenas uma árvore meio morta no centro. Uma mãe, sem memória alguma, corre de um lado para o outro atrás do seu filho. Enquanto corre, tenta lembrar do que acabou de acontecer. Se lembra em parte, mas é difícil mesmo ter clareza depois de ver a sua vida inteira ruir na sua frente enquanto você toma um gole de café. (…) Uma bomba jogada por um país que ela não conhecia, fez tudo queimar por dentro e por fora. Nessa hora não se pensa em café, não se pensa em pessoas, não se pensa em móveis, não se pensa em nada! Ela se apoia na única parede da casa que restou de pé e decide ficar ali, inerte para sempre olhando para os escombros. Até que escuta um barulhinho, um choro que ela conhecia bem. Largou a parede e correu pra salvar o único ponto de vida que restou da casa. Só deu tempo de salvar o filho. Um soldado se aproxima. Ela corre com a criança e se esconde! Ao perceber que seu filho iria voltar a chorar, tampa a boquinha dele com força! Um passo do soldado e mais força, um passo e força e força e força. Ela tampa a boca da criança com a certeza de que ele era a única coisa de si que restava no mundo! Deu certo! O soldado foi embora. Ela comemora como se tivesse vencido a copa do mundo! Tira a mão da boca da criança, que cai desfalecida no chão”. 1
Todavia falta saber se a criança é viva, ou se ela ensaia o seu desfalecer num jogo de mentiras e erros, se é de partituras teatrais a sua morte esfalfada; ou talvez que falte saber se o tempo da lavoura será fértil, todavia falta; talvez que sequer seja de fatos o de que se constitui a narrativa, talvez que os fatos estejam condenados a despencar em blocos de concreto sobre a cabeça das gentes que estão a guerra de que se conta; talvez que seja de intentos que não se completam, de movimentos cortados ao meio, de palavras e olhares que não terminam, de um virar para o lado errado quando se tratava de um pas de deux que não engata – espécie de tango deslocado este que falta e falha; talvez porque esteja fora de causa contar tudo, contar cada minuto do que se viveu, aquelas personagens costuradas em uma tessitura que abarca ausências como parte imprescindível do processo constitutivo, afinal se trata da guerra na que se está, afinal a guerra não é a compleição exata entre espaço e tempo, afinal a guerra não é feita do principado de uma enxuta e cartesiana linearidade, afinal a guerra é suspensão, é compressão, é como a teia do cenário que vai baixando que vai descendo como se fora o teto e as paredes ou o que há de teto e parede o que comprime – porque é da falta o de que se trata, isto nos diz Daniel Herz, é da falta que há em cada um dos personagens que transitam no palco onde a guerra ensaia sua crônica de mortes previamente anunciadas.
NO FRONT nos convoca às urgências de um presente no qual a guerra é a totalidade do tempo. Nenhuma pista nos indica o caminho de leitura aos fatos. Todavia se está sob o seu imperioso rigor. Se está sob sua regência incontornável, sob sua liturgia trágica que vai tecendo e destecendo os modos da finitude na que todos cabemos, inteiros, ou nas partes fatiadas pelas esquirlas de uma bomba que explode nos arredores e que desmantela meio mundo, e que atropela corpo e meio, descascando-o em dois três quatro, uma banda para lá, outra para cá, e eis que nunca mais se encaixa, nunca mais que se junta isto no que se entendia por um combatente, ou por um desertor, ou mesmo por um espia.
NO FRONT nos entrega a bandeja compassada dos atos cênicos pelo espocar de bombas que a cada vez parecem estar mais próximas, e todos correm, e as personagens se juntam em teia como se a um entramado de gentes que miram a um só lugar, que divisam o que ninguém enxerga, um ponto no horizonte cada vez mais curto porque o míssil não atrasa, porque o bombardeio não tem hora marcada, porque a granada não respeita limites de boa vizinhança, ele cai, ela explode no entorno da casa que não há, no hospital público da região conflagrada porque também lá explode impiedosa a granada inimiga.
Porque não há lugar seguro, a bomba é feita para matar gente, para destruir casas, para tirar vidas, não tem lugar seguro, ela cai em todos os lugares, não adianta fugir2, são palavras de Kaique – que está na guerra, e que tão somente pelo fato estar por lá, sabe que não há lugar seguro àquele que tem a guerra dentro, porque não há um lado de fora da guerra quando ela está, a guerra é toda parte, ela é todo tempo, ele diz isso, não adianta que um se esconda em meio ao que já não há, porque sequer o hospital, porque sequer a caravana de caminhões com os víveres, porque sequer a criança que brincava com o seu cachorro, porque sequer a outra criança que cisma em não crescer, em não estufar o filheiro de Deborah, porque talvez se faça calor de hora a outra, porque talvez o calor seja de arrancar pela raiz um filho que não está ainda com os pés plantados nas paredes do ventre, porque a guerra vem ela já vem chegando, porque NO FRONT não especifica de que guerra é esta que se está sob a sua devastação, sob a fúria do vento da desgraça, e que talvez por isto, possamos sugerir, certa hora, que o território seja inóspito o suficiente, e que não seja mais do calor de alto forno o de que se padeça, mas que seja de um frio tonitruante que congele a todos os combatentes, e que a umidade sem par assole os pés dos soldados às trincheiras…
Kaique nos lembra que as bombas, que os tiros vêm de todos os lados, que eles não param mesmo que nas altas horas da madrugada, que os mísseis atingem a todos os lugares.
Talvez que eles tenham chegado, certa feita, certa hora daquele abril, daquele maio, daquele junho de 1982, nos longes de Malvinas.
2
A guerra fala por todos os seus lados, a guerra transpira por todos os seus poros. A guerra é loquaz, tagarela, a guerra é emudecida, obliterada. A guerra é dura – se se quebra em pedaços, ela insiste. A guerra chega por meio de cartas3. A guerra (des)chega por meio de evasivas, ao modo do extravio, ou do tanto que se calou nas linhas rabiscadas. Porque nem tudo se dirá em cartas. Porque certas cenas não cabem na sintaxe, não se expressam se transcritas. Porque certos ocorridos não se comportam em cena – o teatro de operações, transpondo a quarta parede, atravessando o palco como se escorresse para os lados e desconformasse a arena que rebate, que retarda, que recua sob a espreita do horror.
Porque certas imagens não se equilibram ao ‘tampo da representação’ em sua dimensão ‘obs-cena’ – e esta torrente de não-ditos, e esta vazante conspícua que extrapola a visão – para onde será que jorra, caudalosa, imperativa? Será que tais imagens paralisam àquele que ousasse mirá-las de frente? Será empedrava a cervical retorcida tal como se dera aos atuadores de NO FRONT no instante em que lá fora o som ensurdece os bons modos dos convivas – que somos, incautos expectadores? Será a guerra chega de roldão, de golpe, de brusco, sobressaltada, confusa de si própria, precipitada entre causas e finalidades, arrojada como se fora cega de princípios e se deixasse levar em sua destinação derradeira?
A guerra chega por cartas intoxicadas de selos. Por vezes, as cartas prometem algo que não se irá cumprir – o espectro do retorno – a cidade em comitiva, a província o povoado, o assado e o mate que se compartilha, o abraço largo dos que aguardam na plataforma, a mulher tomada de fôlego de tanta espera, a família que escutara a guerra nas ondas curtas dos rádios que mentiam a guerra, e que mentiam a tal ponto que parecia mesmo que era guerra de fato a guerra contada pelo rádio; guerra de vencedores, guerra dos bravos soldados heroificados como se se tratassem de titãs metade homem, outra metade o corpo em combate costurado às vestes do destemor; as cartas desdizem as ondas curtas dos rádios que mentem essa paisagem de glória e sacrifício, este painel de sucessos que se acumulam, esse avançar de divisões em conquista, a marcha ereta viril em coturnos que cabem perfeitos nos pés – tão distintos do desacerto de Kaique e seu aleijão de hora4, sim, Kaique, personagem e combatente, indivíduo e tanta gente, porque por vezes, Kaique atende em ser vários tipos, homens vários e distintos, personagem-síntese, um coquetel de combatentes que trafega em zona cinzenta, tantos rostos para tão poucos nomes…
Quando será que a guerra termina? Quem sabe se aos acordos internacionais mediados por sabe-se lá quais instâncias neutras; quem sabe se sob o estigma da rendição, as armas em baixa e depostas, os corpos dos mortos insepultos, os feridos arrastando-se, em meio a lama, e se assomando à paisagem arrasada; a destruição fazendo neles uma pista de pouso e paragem – alguma paralisia facial, os olhos saltando do buraco do rosto, a amputação de membros como um distintivo que impossibilita que a guerra seja esquecida, os surtos pós-traumáticos, os fantasmas dos companheiros mortos nas trincheiras em combate, o estranho sentimento de culpa de ter sobrevivido quando tantos foram os que morreram, quando alguns dos que morreram foram mortos ao seu lado, quando se presenciou o morrer da morte neles, a última palavra, o fechar dos olhos, a boca seca, os lábios cortados de frio, as mãos apertadas de tal jeito que os ossos ensaiam quebrar mas não descola a mão dos companheiros na gravidade do instante último, o silêncio profundo, a lágrima corrida em meio a sede, o soco de raiva na parede da trincheira, a hora definitiva compartilhada.
Onde será que a guerra termina? Será termina em uma revoada de pombos de Picasso? Será de uma voz ao autofalante a anunciar o sursis como se fora a boa nova floreada junto aos campos e a safra de morangos silvestres – um contrato forjado às setes chaves sob segredos de alcova que serão lacrados por cem anos e timbradas como documento confidencial?!5 Quais serão os sinais do fim da guerra? Será quando das ordens que não se tem como cumpri-las – ou porque são disparatadas, ou por que depõe contra as convicções que se teve que envergar para que a força desumana do combatente se fizesse quente e renovada?!
“Os soldados britânicos seguiam gritando que nos rendêssemos, porém eu não podia suportar a ideia de ser derrotado, de nos rendermos tão rápido, de entregar algo que era realmente meu, o território de Malvinas. O combate se havia convertido em lutas individuais de uma trincheira a outra, cada homem com seu próprio inimigo, tratando de sobreviver, matando-o. Agora já não eram somente granadas de morteiro, mas todo tipo de projéteis. Finalmente compreendi que era inútil continuar sacrificando vida, que estava tudo perdido e que não tinha sentido seguir a luta”6.
Mas a guerra não termina fácil, ela insiste, ela tem o seu repertório de duração expandido, ela ingressa por regiões turvas, por filetes de luz em meio a nebulosas e balas traçantes, ela se imiscui por ramas de flores rasteiras ao deserto de areia, bosque de nunca, sertão insular, esta ausência de cordilheira, essa planura de precipícios…
“Havia nevado toda noite e seguia nevando, a terra estava totalmente branca e nossos uniformes podiam ser vistos a mil quilômetros de distância… ou não tão longe, mas a apenas quinhentos metros, dos morros em frente, no instante em que iniciávamos nossa retirada (era a manhã de 14 de junho) vimos uma fileira de comandos britânicos caminhando exatamente sobre a crista do monte: caminhavam lentamente, sem dúvida com a segurança da missão a cumprir e já quase com a absoluta certeza da vitória. Por outro lado, nós marchávamos a passos rápidos sobre a neve, em direção ao sul, para nos colocarmos do outro lado do monte e assim não sermos vistos tão facilmente. E isso era tudo o que sabíamos que tínhamos que fazer. Já não havia missão, somente restava o precipitado, o errático, o olhar uma e outra vez para trás, a pura improvisação da sobrevivência”7.
Quando será que a guerra termina? Será quando as bombas cessam? Será quando o alto comando assina os acordos? Será quando já não há para onde recuar as divisões e falta aos combatentes absolutamente tudo – munição, fardamento, o de que comer? Será quando as cartas não chegam e não partem? Será quando as ondas curtas das rádios, enfim, se calaram, e desdisseram o que outrora bradavam à rosa dos ventos?
O plano rudimentar consistia em seguir esse rumo uns mil metros e ali tomar posições mirando ao oeste – que era para onde o inimigo estava avançando, porém tudo isto ia tomando um ar de loucura que seguia crescendo desde nossa saída de Moody Brooke, duas noites atrás. Que podíamos fazer – nos perguntávamos – contra um inimigo que caminhava em direção a Puerto Argentino com tamanha segurança, que nos observava do alto dos montes e que até chegava a nos saudar, debochando de nós…? Então, pouco a pouco, sem que ninguém distribuísse, sem que ninguém desobedecesse a uma ordem, nosso rumo foi se deslocando para o oeste, para o povoado. Explicitamente ninguém dizia nada, porém o instinto, nessa manhã gelada e branca da derrota, ia guiando invisivelmente nossos passos até o lugar onde, por rendição ou massacre, terminaria tudo”8.
Quanto será o preço a pagar quando a guerra termina? Para além do saldo irresgatável dos que caíram, como lhes será o regresso? Quanto tempo dura até que o dia seguinte se inicie, límpido, translúcido, benfazejo? Haverá espaço e tempo suficientes para que os fantasmas do desterro se desalojem da cabeça e do corpo dos que voltaram? Será aos sacolejos este expurgo? Será que passa este passado que gira em círculos de fogo?
3
Carol, Maria, Kaique, Deborah e Jean são estes da fotografia. Na máscara do rosto, o anúncio do fim promove sulcos e surpresas. É que se NO FRONT começara leve, tergiversando o horror na preparação da festa de aniversário do filho de Carol – que não sai do quarto, que não sai do escombro, que se grudou nos arames de um tempo derruído -; é que se NO FRONT começara nos cálculos da regra que não desce, milagre da concepção, trabalho minucioso do plantio de Deborah, os cuidados para com a cria que cresce não cresce por dentro do filheiro, que alarga e afasta para os lados os espaços dos órgãos; é que se NO FRONT começara pela presteza dadivosa na trata dos feridos, o asseio das escaras por Maria, o conforto quando da extenuação, a dor que grita em prantos e em berros estapafúrdios; agora, a este tempo de depois é este agora ubíquo, instante em que principia o fim, presente sob o assalto de um passado que não passa, passado de coturno e de fuligem, passado de saqueio a golpear a linearidade da narrativa; agora tudo neles se desprega; as meias palavras já não encaixam com os gestos fatiados – o fazer que se vai e se estanca; a curvatura sonora da palavra que tateia e para; o fazer de ações cotidianas como se nada estivera fora de ordem; as meias verdades conformadas de silêncio e cumplicidade, agora é não-mais. A experiência-limite toca os baixios, desata os carretéis da farsa, e arranca dos fundos falsos do armário a miragem da górgona. Talvez que seja este o painel de fundo, metade reversa do palco, coxia de chapiscos pontiagudos e arame farpado, a careta de górgona assoprando a Carol, Maria, Kaique, Deborah e Jean as novas regras do carteado. Agora as apostas estão às alturas. Quem não for hoplita não garante a si a permanência no jogo. Quem não for bárbaro que tome o rumo de casa – mas qual casa, qual festa, qual domingo que já não há. A festa acabou, a porta não há, o chão da colheita é seco duro com rachaduras como se fossem veias curtas.
Carol é irmã de Kaique que é marido de Deborah que é irmã de Maria que é filha de Jean. Eis a primeira forma de transcrição à quadra de filiação. Mas não alcança o que se tem que dizer tal quadra. Tentemos outra. Carol é mãe da criança pequena que não chega para que Kaique lhe abrace um abraço não tão apertado como os cuidados de Deborah para com a cria que custa e que custa e que custa o tanto que parece custar a presença de Jean ao testemunho de Maria que o rechaça. Nada cola, nada enseja versos de primavera. Segunda chance a uma quadra que não serve.
NO FRONT segue avançando. Carol é e fora mãe de um filho que virá não virá ao aniversário de não mais. Kaique onde será estivera que não estava entre as pernas das tratativas junto a Deborah que o esperara tecendo e destecendo a manta larga da ilusão. Jean é este que deambula aturdido entre ordens recebidas, entre gestos de encomenda, entre decisões de hora – criminoso de guerra, general estratego, genocida que ordena atear fogo ao paiol onde ardem em chamas 643 alvos humanos como se fossem fogos de artifício, um são joão fora de temporada, como se fossem ossos do ofício, como se fora um passo a frente a um avanço sucessivo e programático. Maria é esta que rompe numa cajadada os apelos hipocráticos, desliga aparelhos, arranca de um puxão equipos, escolhe a dedo os inimigos que irão morrer, e os precipita a falta de oxigênio, como se cedesse aos ditames da fúria, como se gritasse em sua garganta um refrão, um ritornelo lembra-te que também sou Medeia, lembra-te que sou Medeia no deserto desta Grécia trovoada de mísseis e de náufragos.
NO FRONT se acerca do fim. E não será de uma boa recepção esta hospedagem. Como quando ao retorno dos ex-combatentes de Malvinas lhes fora o silêncio e degredo. Lhes fora o atravessar para o outro lado da calçada, como lhes fora o desemprego, a mendicância, a evitação das gentes que os mirava como se eles portassem consigo uma carteira de ações mortuária, como se fossem pestilentos que envergam a onipresença de um passado que não passa de passar no que permanece e insiste. Memória em excesso quando se trata de esquecer. Aos heróis de ainda há pouco na grita da rádio, das telas do programa 60 minutos, agora será a desmalvinização – o descer do pano, o descer da tela, cenografia do real e da farsa, teatro de afazeres sob a urgência urgentíssima do agora9.
4
Daniel Herz nos convida a esta miragem perto demais, demasiadamente dentro, imerso engolfado, de uma guerra transposta a um palco despido de cenário, sobrecarregado de fisicalidade, na que tudo parece se depositar no corpo dos atores. Teatro não realista no que prima o espaço vazio, a sensação de angústia e de soterramento10.
NO FRONT requisita a tarefa política e social de um teatro que toma pelas crinas a densidade e o horror do momento histórico em que vivemos. Momento este em que o genocídio imperialista avança sua fúria saqueadora e assassina sobre a Palestina. Momento este em que, por meio do variegado cardápio de espionagem, infiltração, custeio, sabotagem proveniente das principais agências de inteligência dos países imperialistas se promove golpes de Estado, desestabilizações de governos populares, para que avance a rapinagem de nossos recursos estratégicos. Momento este em que as ‘democracias ocidentais’ despem a máscara e revelam a fastidiosa nudez de seu protofascismo de plantão. Como a um mover de peças tático em garantia do êxito de sua estratégia – porque fora assim outrora, e porque se repete assim agora. É que quando esquenta a chapa tórrida da opressão, é que quando se esfalfam as taxas de lucro dos grandes capitais internacionais e seus sócios locais, se constrói os cenáculos e suas justificações para que os corvos e os chacais sejam libertos de seus lúgubres esconderijos, e avancem sobre nossos territórios e suas populações, sobre nossas riquezas e organizações.
Daniel Herz, ao seu modo, nos pontua tal ubiquidade da guerra, sua dimensão integral, seu extravasamento para além das zonas de exclusão – simplesmente porque agora não há uma zona de fora da guerra, ela é todo tempo todo lugar. Sequer que aos combates, sequer que aos confrontos entre regimentos, sequer que entre as forças adversárias a um teatro de operações – embora também aí a guerra esteja, rediviva e reeditada, apenas que ela não se restringe a este deslocamento de peças como se a um tabuleiro demarcado com antecipada precisão. É que, segundo Daniel, a guerra invadiu todos os espaços da vida social por sua dinâmica tecnológica. Talvez, de fato, que tal guerra já não seja como a de Malvinas, o campo de batalha distante do povoado onde viviam os Kelpers. Distante de Río Gallegos ou de Comodoro Rivadavia, porção continental que é apenas uma parte da Argentina; sua outra metade, insular, continua agora saqueada e ocupada pela coroa britânica. Todo modo, àquele conflito, entre abril e junto de 1982, havia zonas de exclusão, espaços delimitados. A cidade rodeada pela guerra, mas ela mesma, a cidade sob certa franja de defesa, ao resguardo de tratados e convenções internacionais de regulamentação de conflitos.
Certa feita, em uma das entrevistas que realizei com os ex-combatentes de Malvinas, e neste caso com Rodolfo Carrizo, soldado do Regimento 7 de Infantaria de La Plata, membro ativo do Centro de Ex-Combatientes de Islas Malvinas – CECIM11, Rodolfo me chamava atenção para o fato de que quando se pensa em guerra hoje se pensa em Gaza12. E Rodolfo acrescentava, Gaza não é guerra, é genocídio de população indefesa, é a cidade torpedeada, é a infraestrutura de funcionamento da vida social tomada pelo terrorismo bárbaro das ações imperialistas. E Rodolfo contrapunha: Malvinas era a planura, o deserto, a quase que total ausência de zonas escarpadas o que nos deixava mais visíveis aos inimigos, como eles a nós. Mas éramos soldados de uma guerra na que a população civil não era sacrificada. Daniel Herz é certeiro no que acena nesta direção – se trata de uma outra forma de guerra, de uma gestão ostensiva da morte do homem comum que todos somos, e é nesta direção, como a uma rajada cirúrgica, que ele faz voltar a cena teatral expressa de forma ímpar em NO FRONT.
- Texto de NO FRONT, de Daniel Herz, Carol Santaroni, Deborah Sargentelli, Jean Rey, Kaique Bastos e Maria Paula Marini. Trecho da fala da personagem Carol. ↩︎
- Trecho de fala da personagem Kaique. Que na sequência dirá: ‘No meu primeiro dia no exército, coloquei o coturno e vi que ele ficou extremamente apertado no meu pé. Não entrava de jeito nenhum. Ali eu já deveria ter desistido da guerra’. ↩︎
- Tais cartas pertencem ao acervo particular de Jorge Enrique Rodríguez, veterano de Malvinas, onde combateu como soldado no 6° Batalhão de Infantaria. Tal acervo foi cedido ao Museo del Veterano de Malvinas Livio Cossiani. Destaca-se o fato de que entrevistamos durante uma hora a Jorge no dia 8 de janeiro de 2024. O ensaio derivado da entrevista, assim como a sua transcrição na íntegra, será matéria de um novo trabalho a ser publicado no portal de A Nova Democracia, na série Relatos de Juan Nadies. ↩︎
- Nos termos de Kaique: “No meu primeiro dia no exército, coloquei o coturno e vi que ele ficou extremamente apertado no meu pé. Não entrava de jeito nenhum. Ali eu já deveria ter desistido da guerra”. Texto de NO FRONT. ↩︎
- Sigamos este largo trecho final do 2° volume da trilogia Os Caminhos da liberdade (1940), de Jean-Paul Sartre: “Entrou no quarto com os jornais. Ivich estava sentada na cama, baixava os olhos: – Pronto! Assinaram esta noite. Ivich ergueu os olhos, ele parecia feliz, mas calou-se bruscamente embaraçado com o olhar dela. – Quer dizer que não haverá guerra? – perguntou ela. – Naturalmente. Nada de guerra, nada de aviões sobre Paris; os tetos não se desmoronariam sob as bombas, ia ser preciso viver. – Não haverá guerra! – disse ela soluçando. – Não haverá guerra e você parece satisfeito. Milan acercou-se de Anna. Titubeava e seus olhos estavam rosados. Tocou-lhe o ventre e disse: – Aqui está um que não terá sorte. – Quem? – O garoto. Digo que não terá sorte. Aproximou-se da mesa mancando e encheu um copo de álcool. Era o quinto naquela manhã. – Lembra-se – disse – de quando você caiu da escada? Pensei que fosse abortar. – Então? – disse ela secamente. Virara-se para ela, com o copo na mão; parecia erguer um brinde. – Teria sido melhor – disse escarnecendo. Ela olhou: ele erguia o copo, sua mão tremia um pouco. – Talvez – disse ela. – Talvez tivesse sido melhor. O avião aterrara. Daladier saiu com dificuldade da carlinga e pôs os pés na escada. Estava lívido. Ouviu-se um clamor imenso da multidão e toda aquela gente pôs-se a correr, arrebentando os cordões da polícia, derrubando as barreiras; Milan bebeu e disse, rindo: – À França! À Inglaterra! Aos nossos gloriosos aliados! Depois jogou com toda a força o copo na parede. A multidão gritava: Viva a França! Viva a Inglaterra! Viva a paz! Carregavam bandeiras e ramalhetes de flores. Daladier parara no primeiro degrau, olhava-os com estupor. Voltou-se para Léger e disse entre os dentes: – Cretinos! IN: SARTRE, J-P. Sursis – Os caminhos da liberdade vol.2 Tradução: Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1983 (p.400-401). ↩︎
- Depoimento de Ernesto Peluffo, soldado. IN: SPERANZA, G. & CITTADINI, F. Partes de guerra – Malvinas 1982. Buenos Aires: Edhasa, 2022 (p.137). ↩︎
- TERRANO, D. 5.000 Adioses a Puerto Argentino. Buenos Aires: Editorial Galerna, 1985 (p.103-104). ↩︎
- Idem, p.104 ↩︎
- Sugiro assistir ao curta Regimiento 7 regresa a casa, de Fernando Spiner: https://www.facebook.com/turismo.roqueperez/videos/regimiento-7-regreso-a-casa/253508859147979/ ↩︎
- Entrevista com Daniel Herz por André Queiroz, em 20 de agosto de 2024, no Teatro Poeira, em Botafogo, no Rio de Janeiro. ↩︎
- A entrevista com Rodolfo Carrizo foi realizada em 12 de dezembro na sede do Centro de Ex-Combatientes de Islas Malvinas, na cidade de La Plata, província de Buenos Aires. ↩︎
- Vejamos este depoimento de Nayin Ragab, um dos coordenadores de Media Luna Roja Palestina (MRLP): “De retorno na ambulância pegou o celular para pedir a um colega do hospital al-Awda, Jalid Abu Saada, que viera o mais rápido possível. Depois chamou a Zakaria Abu Hardib, jornalista da agência Ramatán. Lhe disse: – Venha a praia, por favor, isto é um massacre. A primeira série de projéteis que caíram sobre a praia em Beit Lahia feriu a quatro membros da família de Abu al-Amrín. Minutos mais tarde, às 16:40 horas, uma segunda série atingiu em cheio a família Galia. – Desde aquele dia me pergunto o que terá pensado o soldado que disparou sobre nós. Não estava em risco a sua vida, não estava em meio a uma operação militar. Do barco via que havia uma ambulância, que ali não havia mais que civis – me disse indignado -. Você já viu algo assim em algum outro lugar do mundo? Você já viu algo tão brutal? Tal coisa somente fazem os israelenses. Nayim me conta que nos últimos tempos aumentaram os ataques contra equipes de emergência da Media Luna Roja. Descreve os diversos casos de enfermeiros e motoristas que foram feridos ou assassinados desde que começou a operação Chuva de Verão. – Desempenhamos um trabalho humanitário, mas ainda assim eles disparam contra nós. Isto viola a Convenção de Genebra – prossegue enquanto tomo nota de suas palavras. – A mim não me importaria que o ferido fosse israelense. Porém parece que a maioria do mundo não pensa do mesmo modo. Por que os líderes de seus países não saíram a condenar o assassinato da família na praia, ou a morte de tantas crianças e mulheres nas últimas semanas? Por que saem, por outro lado, a condenar o sequestro de um soldado israelense? Nosso sofrimento parece não contar”. IN: ZIN, H. Llueve sobre Gaza – vida y muerte en tierra sitiada. Barcelona: Ediciones B, 2007 (p.251-252). ↩︎