‘Nós vamos dar golpe em quem quisermos’: o lítio boliviano e a pilhagem de recursos sul-americanos

‘Nós vamos dar golpe em quem quisermos’: o lítio boliviano e a pilhagem de recursos sul-americanos

População indígena aimará extrai o sal incrustado na superfície do Salar de Uyuni, na Bolívia, onde o lítio, de interesse de monopólios imperialistas, está acumulado no seu subsolo. Foto: Cédric Gerbehaye

No dia 24 de julho, o imperialista Elon Musk, teceu a seguinte declaração descarada: “Vamos dar golpe em quem quisermos. Lide com isso!”. O comentário veio após Musk ter criticado um pacote de subsídios do governo do Estados Unidos (USA), afirmando que não estaria “no melhor interesse do povo”, e receber como resposta de um internauta: “Você sabe o que não era de interesse do povo? O governo do USA organizar um golpe contra Evo Morales na Bolívia para que você possa obter lítio lá”. Pouco depois, Musk deletou sua publicação que escancarava sua posição política. 

Há algum tempo já vinha-se especulando sobre a participação do grande burguês que hoje é Diretor Executivo (CEO) de empresas como a Tesla e a SpaceX, entre diversas outras, no processo de deposição do presidente da Bolívia, Evo Morales, que se autoexilou em novembro de 2019 diante de um iminente golpe desatado pelos altos comandantes militares do país, a fim de garantir certos interesses geopolíticos ligados a linha de investimentos que o empresário, nascido em uma família milionária da África do Sul, mantém hoje.

Recentemente, no mês de julho, as ações da multinacional imperialista Tesla na bolsa de valores superaram todos os seus patamares anteriores ao alcançar o valor de 1,8 mil dólares, antes de recuar novamente para perto de 1,5 mil dólares ao final do dia. Apenas dois dias disso, a empresa havia superado pela primeira vez na sua história a cotação de mil dólares. Com essa alta, o valor de mercado da Tesla ultrapassou em mais de três vezes o das gigantes automobilísticas Ford e General Motors somadas.

A produção da Tesla é voltada para a indústria automotiva e de armazenamento de energia. Apesar de seu carro-chefe (com o perdão do trocadilho) serem os veículos elétricos de alto desempenho, seu principal produto são as baterias de íon-lítio. 

Essas baterias são comercializadas para montadoras como a Toyota e para construtoras que utilizam energia solar ou eólica, além de serem utilizadas nos próprios automóveis da Tesla. A tecnologia envolvida, como o nome das baterias já diz, é centrada em um recurso específico e cuja existência ocorre em quantidades relativamente escassas no planeta: o lítio, o mais leve dos elementos sólidos. 

Oito meses antes de vivenciar essa alta histórica, entretanto, as ações da Tesla estavam abaixo de 250, o que representa um estrondoso crescimento de 600% em pouquíssimo tempo e ainda em meio à crise geral do imperialismo. Essa disparada se inicia a partir de novembro, no mesmo período em que, paralelamente e de forma aparentemente desconexa, a Bolívia se encaminhava para o processo golpista que culminou com o autoexílio de Morales. 

Meses depois, Samuel Doria Medina, que concorre agora como candidato a vice-presidente na chapa de Janine Áñez (fantoche que assumiu o posto de “presidente interina” após o golpe), afirmou em fevereiro que pretendia que Musk, encabeçasse a exploração do lítio boliviano. 

Como que revelando parte dos interesses por detrás das disputas pelo gerenciamento do poder no país andino, o próprio Medina publicou em sua conta oficial sua proposta, após Musk ter anunciado uma discussão sobre construir uma planta da Tesla no Brasil: “Sugiro que acrescentemos a iniciativa de construir uma Giga-fábrica no Salar de Uyuni para fornecer as baterias de lítio”. Apesar do Brasil ser um país exportador de lítio, seus estoques são ínfimos em comparação com os da Bolívia, que há anos é prometida como a “Arábia Saudita da era do carro elétrico”. 

O TRIÂNGULO DO LÍTIO E AS DISPUTAS PELO RECURSO 

O lítio vinha sendo utilizado sobretudo na indústria do vidro e da cerâmica, bem como base para graxa de automóveis e em remédios estabilizadores de humor, até a proliferação de dispositivos eletrônicos (celulares, computadores portáteis) e carros elétricos crescer, o que acarretou em um aumento exponencial na demanda mundial por lítio, uma vez que utilizam baterias feitas com o mineral, ideal para pilhas leves.

Cerca de 68% das reservas mundiais de lítio estão localizadas no chamado Triângulo do Lítio, uma região fronteiriça na América do Sul entre a Bolívia, Argentina e Chile, convertida em uma região de interesse estratégico global. Estudos mais recentes estimam que a Bolívia possua 21 milhões de toneladas do minério, concentradas no Salar de Uyuni citado por Medina, na cordilheira dos Andes, mais especificamente no distrito de Potosí. 

No entanto, enquanto o Chile e a Argentina apareciam (e seguem) liderando o mercado global de exportação do lítio, as reservas bolivianas praticamente não eram exploradas. Em 2018, a empresa local de lítio, a Yacimientos de Litio Bolivianos (YLB), firmou um contrato de joint venture  (empreendimento conjunto) com a multinacional imperialista alemã ACI Systems Alemania, subsidiária do Grupo ACI, para extrair lítio no Salar de Uyuni. Além disso, empresas chinesas como a TBEA Group e a China Machinery Engineering também fecharam acordos com a YLB. 

O discurso de Morales à época era de que a Bolívia manteria sua soberania nacional sobre os estoques do recurso, apesar dos investimentos bilionários por parte das multinacionais que lhes garantiam 49% das ações no empreendimento. 

Na prática, a exploração industrial ou comercial sobre o lítio boliviano era tratada diretamente com a empresa local de mineração, a Corporación Minera de Bolivia, e com a YLB. Contrariadas por essa política, as empresas Eramet (francesa), FMC (ianque) e Posco (sul-coreana) migraram todo o seu capital para a Argentina, ao passo que outras empresas interessadas não chegaram sequer a começar a explorar o recurso no país, entre elas, a mineradora canadense Pure Energy Minerals e a própria Tesla.

Apesar do seu discurso de “socialismo comunitário”, o projeto de Morales de forma alguma punha em xeque a condição semicolonial e semifeudal da nação boliviana, que manteria seu papel subordinado enquanto exportadora de commodities, com o diferencial de que o lítio seria entregue à indústria monopolista imperialista com um valor agregado um pouco superior do que se fosse completamente bruto, para então ser processado e transformado em produtos de alto valor agregado. À época, o diretor administrativo do Instituto de Economia Alemã afirmou que com o acordo a Bolívia poderia finalmente “desempenhar um papel importante nesse sentido”, contribuindo para seu “sucesso como exportador” no mercado internacional. 

No fim de 2018, após protestos de moradores em Potosí que exigiam a revogação do acordo firmado com os alemães e os chineses, e que os royalties destinados ao distrito fossem ampliados, denunciando que o governo estava entregando seus recursos, Morales foi obrigado a voltar atrás e revogar o acordo com a empresa alemã. Tais protestos foram insuflados por grupos de extrema-direita, ligados ao golpista Luis Fernando Camacho, vinculados à fração compradora da grande burguesia e a grupos do imperialismo ianque.

Em uma conversa entre Morales e o ex-presidente do Equador, Rafael Correa, o boliviano assegurou essa relação entre o golpe e a exploração do lítio, representada na participação dos representantes da indústria mineradora da região de Potosí no processo golpista. “Tenho certeza, porque um grupo de líderes civis de Potosí rejeitou nosso plano de lítio, planejado para 2025: 41 plantas, 14 delas claramente indústria de lítio”, disse ele na ocasião.

Fica evidente: embora nenhum dos projetos mudasse a essência semicolonial do país, a pugna se deu e segue existindo para definir qual fração da burguesia monopolista (a burocrática ou compradora) será a intermediária hegemônica no processo de exportação do lítio. Desde o início dos seus governos, Morales beneficiou a fração burocrática, setor mais atrelado ao aparelho do velho Estado. À exceção da mineração, quase todos os ramos da indústria nacional eram controlados por monopólios, locais ou estrangeiros, e ainda assim tratava-se de uma indústria primária, que praticamente não sofria processamento industrial algum. 

Agora, posteriormente à bancarrota do reformismo na Bolívia, o que se vê são as garras dos imperialistas cravando-se sobre a América do Sul, continuamente reconquistada e repartilhada, consumando suas buscas incessantes por recursos, mercado, território e hegemonia.

Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
Agora, mais do que nunca, AND precisa do seu apoio. Assine o nosso Catarse, de acordo com sua possibilidade, e receba em troca recompensas e vantagens exclusivas.

Quero apoiar mensalmente!

Temas relacionados:

Matérias recentes: