O compromisso do rap, Don L e o otimismo revolucionário

O compromisso do rap, Don L e o otimismo revolucionário

Em ‘Roteiro para Aïnouz (Volume 2)’, Don L convoca ao otimismo revolucionário. Foto: Reprodução.

Na trilha pra vila rica

a tomar todo o ouro que eu preciso

saquear engenhos no caminho

matar os soldados do rei gringo

e nunca poupar um sertanista

é disso que eu chamo cobrar o quinto

(…)

Nós tivemos baixas incontáveis

na real já foi uma revolução

já fomos uma comunidade

por cima de sangue derramado

já fomos quilombos e cidades

Canudos e Palmares

originais e originários

depois do massacre ergueram catedrais

​uma capela em cada povoado

​como se a questão fosse guerra ou paz

​mas sempre foi guerra ou ser devorado

(…)

E se o sangue da minha guarnição deixar o chão vermelho

​Cidades crescerão em cima de mil cemitérios

​Que renascerão em guerras até que se cobre o preço

(Don L – Vila rica)

Gabriel Linhares da Rocha, o rapper Don L, lançou em fins de novembro de 2021 o segundo álbum de sua trilogia Roteiro para Aïnouz (Vol. 2), álbum que colocou o artista e sua produção musical em cenário de destaque dentre outros lançamentos, sendo considerado um dos melhores trabalhos musicais do período.

De fato, seu amadurecimento enquanto artista desde Roteiro pra Aïnouz (Volume 3), de 2017, são perceptíveis. Sua compreensão e evolução da produção de uma estética musical bastante particular, refletindo o papel do artista em captar as transformações e tendências de luta do seu tempo e sua concepção artística como um todo, se expressa desde os diferenciados videoclipes até nas transições das músicas dentro do álbum, que se complementam no quesito das ideias dispostas, imergindo os ouvintes numa jornada junto ao rapper. 

Estes são apenas alguns dos elementos que o fortalecem no topo do rap nacional como uma referência que se propõe a inovar constantemente e que não se deixa acomodar, mesmo sendo conhecido no meio do rap como “o rapper favorito do seu rapper favorito”.

O álbum, em enorme medida, trata-se de um projeto extremamente político, utilizando-se, desde as diversas referências a músicas latino-americanas e acontecimentos históricos, assim como de figuras da luta popular, de heróis indígenas como Ajuricaba, de guerrilheiros assassinados no regime militar fascista, como Manoel Aleixo, Amaro Luiz de Carvalho e Carlos Marighella, chegando também a afirmar ser “bonde do Mao com ‘O’”. Don L utiliza-se disso para chamar atenção à atualidade e emergência de reascender a esperança na luta de revolucionários, negando as historiografias burguesas, elitistas e falsificadoras da realidade.

As variações técnicas presentes no álbum, principalmente em sua produção, elevam contundentemente o nível da forma através da qual o conteúdo se expressa, tornando o engajamento das canções cativantes. Há referências líricas e estilísticas a outros estilos de música popular, merecendo destaques as constantes mesclas com o funk e com o samba em “Auri Sacra Fames” (onde utiliza-se de um sample de “O ouro e a madeira”, do Originais do Samba). A busca no passado por novos caminhos manifesta-se no contraste entre corais e tambores tradicionais na primeira canção, “Villa Rica”, e a última, a futurista “Trilha pra uma nova trilha”.

O álbum é do tipo conceitual, ou seja, conta um seguimento de histórias, ou elabora temas similares, com o passar das faixas. Pode-se ver no álbum de Don L (que em si só já faz parte de uma sequência de álbuns, sendo essa sua segunda parte) uma lenta transformação de um eu lírico do estilo gângster para um guerrilheiro – é possível notar esse desenvolvimento nos vários sentidos que dá à metáfora do “ouro”. Aqui, não é só uma alusão a um personagem específico, mas um chamado para o rap em si passar por esse movimento, de um estágio a outro, e corresponder ao movimento real das coisas.

Certamente o álbum é um projeto que se disporá como referência do cenário musical brasileiro em geral, e no rap em particular nos próximos tempos.

Um fruto de seu tempo

Após o lançamento de Roteiro pra Aïnouz (Volume 2), muitos levantaram a posição de que Don L estaria “à frente do seu tempo”. Ao contrário, ele é fruto de seu próprio tempo.

Que tempos são esses? Tempos de transformações intestinas que se gestam no seio da sociedade e da luta de classes, tempos nos quais os hinos de Don L à revolta representam a história que virá no amanhecer, contada e guerreada hoje, refletida e inspirada nos acontecimentos do ontem – por isso suas buscas na história do país e na ancestralidade para se reafirmar politicamente no agora. A questão, por consequência, não é apenas o resgate inerme de um passado idílico, fetichizado, ou retirado de sua concretude, mas sim de um passado que mantém viva a nossa esperança no presente.

Ele e sua música são reflexos do período histórico em que vivemos, período de crises nunca antes vistas, de significativas mudanças que se avizinham nos próximos tempos, gestadas no ferro e fogo das lutas de classes e que nos impõem profundas tarefas, inclusive a do comprometimento pessoal, no caso, artístico, com a realidade. 

Essa sua tomada de posição esclarecida sobre qual lado o artista Don L está, já se evidenciava em suas músicas e em posicionamentos dados em entrevistas. Como por exemplo, a que deu ao portal “Rap TV” pouco mais de um mês antes do lançamento do novo álbum, onde ele afirma: “A gente tem que ir mais profundamente na raiz do problema, que é o sistema capitalista. A gente tem que derrubar o capitalismo. Agora é muito ‘bonitinho’ a pessoa falar que é anticapitalista e não ter coragem de propor nada (…) o que tem mais base científica e experiência acumulada é o comunismo.”.

Dando continuidade a essa posição, Don L defende em seu novo álbum que o rapper deve ser um anunciador do amanhã a partir do legado do passado e da luta do presente, e não alguém que se limita aos limites da ordem, ou que se compromete a mantê-la. Justamente, ele entende que essa suposta “ordem” é coordenada por um grupo social específico, dos que “crucificam em nome do crucificado”, dos que vendem as nossas liberdades, e conclui que por isso é uma ordem desordenada.

Don L expressa essa transformação da perspectiva subjetiva e pessoal de sua jornada na transição entre a terceira música do álbum, A todo vapor, para a quarta música, Pânico de nada. Na última frase da terceira música ouvimos a voz de um pastor, que exclama, “mas é também o momento de…”, e a quarta música inicia dando continuidade à frase, concluindo com “luta pra todo lado”. Ou seja, o artista sai da perspectiva de sua vida pessoal e de seu horizonte, centrado em si mesmo, e agora é um sujeito histórico que se propõe a um novo universo. Nele, Don L se incorpora ativamente em um cenário de luta popular, compreendendo como necessária a sua incorporação a esta, entre “viaturas em chamas” e ações da “guerrilha urbana”.

Don L toma e expressa uma posição do rapper enquanto “guerrilheiro” e não mais como “publicitário“. Junto a isso,  outro traço desta mudança é o fato de que as letras das músicas deixam de ser sobre ganância e quilates de ouro no pescoço (pura autoproclamação meritocrática comum ao processo de transformar a arte em mercadoria), e passam a ser hinos em homenagem à luta do próprio povo e à sua história, assumindo a posição de considerar a justeza de revoltar-se e convocando à luta.

O ‘rapper guerrilheiro’

Don L como guerrilheiro urbano no videoclipe de ‘pânico de nada’. Foto: Reprodução.

Para Don L o rapper é um “guerrilheiro” porque convive diariamente com as mazelas sociais, com a pobreza, com os sofrimentos e penúrias que o regime social impõe. É também alguém que deve responder a esta situação usando sua poesia, seu som e sua voz como fuzis, a fim de despertar novas consciências e radicalizar a si mesmo. 

Nisto reside o compromisso do rapper com o seu próprio povo, com a transformação da sociedade, que exige a transformação do sujeito em guerrilheiro. Na luta coletiva o indivíduo se torna sujeito da própria história e não abre espaço para qualquer tipo de conciliação com o inimigo, pois entende que isto só perpetua o status-quo:

hoje acordei com a mente de um vilão

​reuni o meu bonde na missão

​resolvi escutar minha intuição

​hoje nós vai mudar de posição

​de coragem, revolta e munição

​cada um com uma mauser na mão

​de campana ganhando os capitão

​mesma fita vai sair salvo e são

​só não pula na bala do patrão

​isso é justo e essa é que é a questão

​pra vítima nós não tem vocação

​paz no caos de quem não tem opção

(…)

quem colhе e quem planta é você

​mas quem engorda é ele

​nós fica sem nada e divide

​tô cansada de ser refém

​hoje é nós que vai render

(…)

morte em vida é viver debaixo da sua bota

​miséria é o rastro que vocês deixam onde passam

(Don L feat. Tasha e Tracie – Auri sacra fame)

Perspectiva histórica

Por isso o álbum se posiciona sobre a necessidade de apreender e recontar a história de luta sob a perspectiva dos oprimidos. É nesse sentido que temos, na voz da exclamação do pastor, a posição tomada por Don L desde a primeira faixa do álbum, denominada (interlúdio 1):

“Você tem que entender que enquanto você não for capaz de contar sua história, sua história vai virar uma piada na boca do diabo. Sua história vai virar uma peça teatral pro diabo apresentar e fazer você chorar.”

Não somente, mas a historiografia liberal e burguesa nos tenta pôr “goela a baixo” que as modernas jornadas farsescas da “liberdade, igualdade e fraternidade”, utilizada em enorme medida até os dias atuais para justificar domínios coloniais e imperialistas, são justas, enquanto as revoltas das massas, injustas:  

e dizem que somos perigosos

eles que mataram, escravizaram, torturaram na cela

e confinaram na favela (milhões nossos)

depois querem recontar a história

e me negar os fatos

eu prefiro recontar os corpos

pra gente medir o estrago

(Don L – Pela boca)

 Desde os filmes da indústria imperialista aos livros didáticos, a história de luta do povo encontra-se alterada e negada conforme os desígnios das classes dominantes, que tentam domar os anseios deste povo através da farsa, da tentativa de impor as suas perspectivas de classe à despeito das nossas.

Otimismo revolucionário

Por isso, é necessário revigorar-se na certeza que a história são processos complexos, de duras perdas e ganhos para os oprimidos, mas que, mesmo perdendo, são capazes de identificar onde houve o erro e logo tender a corrigi-lo até a última luta. Mesmo quando tomba um ao nosso lado, há esperança:

a gente não enterra a gente planta

a gente não ganha a gente vence

a gente num pede a gente manda

(Don L Favela venceu)

Há similaridade nessa perspectiva de não se limitar somente ao enterro e ver também a possibilidade de vida nova com toda a trajetória histórica dos comunistas, que mesmo após profundas perdas, são capazes de sistematizar os avanços e recrudescer a força na luta contra seus algozes.

sim chapa, descendemos desses sonhos

​e nunca morremos

​nos mantivemos

​em cada assembleia, cada célula

​​cada rincão, viela

​em cada pregação, cada cеla
(…)
​lutar do lado errado é já perder a guerra

​do lado certo a gente vence mesmo quando perde

​e quando vence, vence duas vezes

​triunfamos e eles terão que retroceder

​novo alvorecer e agora terão que reconhecer

​a volta da vitória

(…)

com as armas para o ar

​eu sabia que viria o dia

(Don L – Volta da vitória)

O que nos difere, portanto, dos nossos inimigos de classe? Porque a tendência inevitável do inimigo é o fracasso, e dos oprimidos, o triunfo. Porque onde há opressão, há resistência, até não haver mais opressores e oprimidos, porque o oprimido busca a libertação e não o aprisionamento.

Sobre a guerra

O álbum é um grito contra os que “têm fome pelo ouro” e que para isso constroem guerras injustas. Mas contra isso, é justo que se proponha o pacifismo? Segundo o desenvolvimento da história e da sociedade, não. A guerra é uma realidade, tergiversá-la é negar o real.

A questão, portanto, é anunciar a guerra justa, como fizeram os citados Zumbi, Mao Tsetung e os vietcongues; utilizar-se dos ensinamentos da história e, nos combates, na luta revolucionária, forjar novos homens e mulheres, novos seres humanos em uma nova sociedade.

Estas guerras, nos retirando da condição de oprimidos, rompendo com o ciclo das guerras injustas, podem nos fazer, como diz Don L, nos “reaproximar de nós mesmos”, construir a dignidade verdadeira.

Portanto, o álbum convoca a fazer uma guerra com esse caráter libertador, inspirado na coragem e nas vivências e experiências dos antepassados, com o vigor da luta atual, entendendo a impossibilidade de ser livre de fato no sistema posto. 

Nessa perspectiva, as lutas do passado são de fato presentes, são ensinamentos. A história é acúmulo de vivências interconectadas, de sabedoria e conhecimento; e não uma série de fatos separados e desvinculados uns dos outros. E somente a luta dá a forma da história seu devido valor, sua concatenação e seu devir. Isto posto, quem deve fazer o balanço de nossa história para não errar e ir até a vitória final somos nós, e não nossos inimigos, pois nós que desejamos reviver os sonhos de um passado que, devido à luta, se tornam impossibilitados de perecer.

Logo, dessa forma, através da luta, é possível ter de fato esperança no amanhã:

na luta pra ninguém silenciar nossa voz

voltamos a falar dos sonhos pelas manhãs

a nossa terra fértil foi vencendo o concreto

o nosso reflorestamento erguendo-se em fé

(…)

eu que sou de onde a miséria seca as estações

vi a primavera

florescer entre os canhões

e não recuar

eu que sou de guerra

dei o sangue na missão

de regar a terra

se eu tombar vão ser milhões pra multiplicar

a única luta que se perde é a que se abandona e nós nunca

nunca abandonamos luta

nunca nunca

hay que endurecer sem nunca sem nunca perder a ternura

(Don L – Primavera)

Na última canção do álbum, uma estética moderna, diferente do restante do estilo das demais faixas, com fortes inspirações synthwave anunciam um amanhã diferente. Uma porta se abre desse mundo em chamas, nos deixando claro a necessidade do otimismo revolucionário, da possibilidade de entoarmos uma nova trilha:

a trilha pra uma nova

​novos sonhos

​nova trilha

​novo filme

(Don L – Trilha pra uma nova trilha)

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