O crime de Estado disfarçado de ‘desastre’

O crime de Estado disfarçado de ‘desastre’

Entregues à própria sorte, moradores resgatam corpos de mortos em Petrópolis. Foto: Carl de Souza/AFP

No dia 15 de fevereiro, o Brasil assistiu, mais uma vez, cenas que já se tornaram padrão em toda estação chuvosa: deslizamentos engolindo bairros populares, pessoas arrastadas por violentas correntezas, famílias inteiras sendo dizimadas e outras que, tendo a sorte de não o serem, perdem o pouco que possuem. Acontecimentos como os de Petrópolis desnudam e encobrem, num processo contraditório, a verdadeira tragédia que assola nosso país. Por um lado, deixam às claras o fato de que a organização atual da sociedade facilita o extermínio continuado da população mais humilde, por qualquer motivo que seja possível, não importando se pela ação humana ou devido às intempéries.

Em contrapartida, tais eventos extremos favorecem, por sua própria dinâmica, a mistificação de seus efeitos sob a argumentação de que, supostamente, estamos totalmente vulneráveis aos caprichos da natureza. É o que proclamam alguns “especialistas”, sempre prontos a proceder a tagarelices pseudo-técnicas travestidas de “ambientalismo”, quando convocados pelo monopólio de imprensa. Desastres naturais com o potencial de ceifar vidas humanas sempre existiram e continuarão a existir e isso independe se o nível de agitação atmosférica está aumentando devido a elevação da temperatura terrestre. A questão principal reside, na verdade, no fato de que é inadmissível que nos deparemos com tal morticínio todos os anos num mundo onde o avanço da ciência e da tecnologia permitem a previsão e prevenção de tais acontecimentos. Ainda mais revoltante é o fato de que essas cenas sempre são tristemente protagonizadas pelos mesmos atores: humildes e honestos trabalhadores.

Destruição total em Petrópolis, Rio de Janeiro. Foto: Marcos de Paula/Estadão Conteúdo

Ora, é de conhecimento público que o verão, num país tropical como o nosso, é a estação das tempestades e que muitas das cidades brasileiras encontram-se incrustadas em regiões montanhosas, em vales ou ancoradas em grandes rios. Algumas dessas cidades, inclusive, soterram ou canalizam seus afluentes, com o objetivo de dar mais espaço às vias que permitam o desenvolvimento de sua área urbana. Essa combinação, característica do nosso processo de ocupação territorial, atrelada ao fluxo migratório ininterrupto e ao constante déficit habitacional derivado deste, fazem tais regiões palcos ideais para esse tipo de tragédia. Não é necessário grande capacidade cognitiva para constatar tais fatos ou para, identificado o problema, desenvolver políticas e mecanismos para mitigá-lo.

Decerto que não temos porque acreditar que possa haver qualquer sombra de vontade, por parte do velho Estado, na criação de programas de realocação ou readequação de cidades e vilas. Porém, existe a capacidade, mesmo dentro dos atuais marcos, para organização de uma estrutura e aparato mínimos, como um protocolo efetivo de evacuação das áreas de risco. Infelizmente, o que vemos na realidade é um engodo que consiste unicamente em soar alarmes para avisar o povo de que chegou o momento de se virarem para sobreviver. Mesmo essa enganação, disfarçada de “política de prevenção”, é sistematicamente sabotada quando vemos, por exemplo, que o governo do estado do Rio, gastou no último ano somente metade do irrisório valor reservado para essa “prevenção”. Enquanto isso, o laudêmio, taxa feudal instituída pelos descendentes da família real sobre transações imobiliárias na cidade de Petrópolis, é cobrado em dia e sem nenhuma dificuldade, enchendo ainda mais os já lotados bolsos de tais figuras arcaicas e ociosas.

Isso tudo não acontece por acaso. A realidade tem demonstrado que é muito mais lucrativo para qualquer ente político aparecer como o “herói” que apaga o incêndio, limpa os destroços fumegantes e constrói outra coisa no lugar, do que ser aquele que age preventivamente e evita que o incêndio ocorra, em primeiro lugar – e de fato os reacionários calculam suas campanhas em cima de tragédias como essa. Inclusive, já pululam por aí declarações de “herdeiros do trono” e outros sujeitos inclassificáveis, aproveitando-se da tragédia para dizer obviedades e saírem como bons moços, sempre com pretensões eleitorais em vista. No mesmo sentido, repete-se o modus operandis das ditas “autoridades constituídas” em qualquer acontecimento desse tipo, que, assim que são informadas sobre a matança, dirigem-se ao local do sinistro como um bando de urubus que sobrevoam, de helicóptero, a carniça. Por outro lado, não se vê a mesma rapidez e energia na mobilização de equipes de resgate. São os próprios sobreviventes, amparados pela comunidade, que executam os dolorosos esforços de remexer os escombros de suas casas na busca dos corpos de seus entes queridos. Todo esse ignóbil roteiro faz parte de uma política de extermínio, complementar a executada pelas balas dos carniceiros do aparato repressivo estatal e disfarçada de “desastre”.

Por falta de agentes do governo, moradores realizam resgates por conta própria. Foto: Aline Massuca/Petrópolis

Rubens Bomtempo, atual prefeito de Petrópolis, empurrou a culpa para o governo do Estado, cuja Secretaria de Assistência Social estava presente realizando cadastramento de moradores. Já o Corpo de Bombeiros afirmou que na semana da tragédia sugeriu à prefeitura o fechamento de pelo menos seis pontos. Decisão não acatada por Rubens, que fechou somente duas entradas no domingo, já após a tragédia. Rubens Bomtempo já foi afastado por improbidade administrativa em 2019. Ele já foi prefeito da cidade de Petrópolis por três ocasiões, inclusive quando dos deslizamentos de 2011 que atingiram toda região serrana, deixando mais de 900 mortos e 100 desaparecidos em Petrópolis, Nova Friburgo, Teresópolis e outras cidades.

Já o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) alertou o prefeito dois dias antes das chuvas para o risco de desabamentos. Juntamente ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Cemaden apontam que mais de 8,2 milhões de brasileiros vivem atualmente em áreas de risco. Dados de conhecimento do prefeito de Petrópolis (Rubens Bomtempo, do PSB), do governador Cláudio Castro (PL) e o presidente fascista Jair Bolsonaro. O Cemaden, inclusive, viu um corte de verbas do governo federal de Jair Bolsonaro de R$ 3 milhões neste ano (reduzindo de R$ 20,9 milhões para R$ 17,9 milhões).

Orçamento do Cemaden é reduzido drasticamente ao longo dos últimos anos. Foto: Banco de Dados AND

Se atentando ao quadro geral dos desastres naturais no nosso país, podemos dizer então que trata-se claramente de um crime de Estado continuado em nosso país contra o povo pobre e trabalhador. É praticamente impossível que elementos das classes dominantes sejam vitimados por desabamentos e enchentes (pois não vemos nenhum grande burguês ou latifundiário apertando-se em morros ou equilibrando-se em palafitas). São estes os maiores entusiastas desta organização social (sendo mesmo os representantes da administração pública do velho Estado brasileiro) que é simplesmente incapaz de garantir o mínimo e elementar direito à moradia daqueles que têm uma casa porém construída em área de risco. O governo municipal, estadual e federal unidos que estão aos grande burgueses e latifundiários em torno da manutenção desta estrutura são os culpados por todas as mortes ocorridas nas enchentes de Petrópolis, uma vez que não tomam nenhuma precaução para evitar tais desastres (chegando mesmo ao ponto de os governantes não utilizarem a verba reservada justamente para fazê-lo).

Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
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