Nota da redação: Reproduzimos abaixo a tradução de uma nota publicada de autoria de Issa Boulos e Louis Brehony no site Palestine Chronicles acerca do grande expoente da música de protesto palestina George Kirmiz.
“Anā ismī shaʿb filisṭīn” – meu nome é o povo Palestino. Letras de música que tocavam nos campos de refugiados e nos campuses da universidade, por cassetes rapidamente duplicadas e vendidas aos milhares. Seu cantor, George Kirmiz, deu voz ao sofrimento e às aspirações revolucionárias de uma geração que crescia na década de 1980.
De músicas baseadas na poesia rebelde de Tawfiq Zayyad e Mahmoud Darwish, até letras originais atacando o imperialismo e o colonialismo, a voz de Kirmiz flutuava sob sons que eram novos ao contexto palestino, como violão, piano e o eventual oud (um alaúde de pescoço pequeno tocado na região). Suas gravações se tornaram hinos dos despossuídos nos anos antes da Intifada de 1987 mas, depois de uma embasbacante quantidade de fitas, a música parou. Uma carreira tão nova, que já acabava.
Mas quem era George Kirmiz? Um guerrilheiro nas linhas de frente? Um preso político? Um não-palestino cantando em solidariedade à Palestina em seu próprio país? Descobrir a identidade e localização de Kirmiz foi preocupação de muitos ouvintes. Em junho de 2022, relatos na TV palestina e no site do Estado da Palestina marcaram “40 anos” desde o “desaparecimento” do músico, sem muitas evidências para apoiar a afirmação. Outros investigaram longa e arduamente, para concluir que ninguém iria saber quem era Kirmiz. Ele era o povo palestino, sua música proclamava uma identificação coletiva, de Turmus Aya, Tiberias, da Jerusalém árabe. Ou, nas palavras de Rashid Hussain, cantadas por Kirmiz sob o oud no cassete:
Eu, nuvem de minha vida, sou os montes da Galileia,
Eu sou o seio de Haifa
E a testa de Jaffa.
Acabando com certos mitos anteriores, esse artigo precede nossas pesquisas respectivas, que serão publicadas futuramente. Procuramos deixar claro pela primeira vez a vida, o canto e a carreira musical de George Kirmiz.
Nascido março de 1953, de uma comunidade palestina-síria cristã na parte armênia da antiga cidade de Jerusalém, Kirmiz estudou na escola Saint George, uma escola para crianças inglesas em Jerusalém Oriental, administrada pela Diocese Anglicana de Jerusalém. Crescendo pobre, aprendeu a tocar violão na adolescência e se juntou ao grupo Al-Baraem em 1971, onde tocava violão e cantava. Mesmo não sendo claro o momento em que começou a compor, o violinista da Al-Baraem William Voskergian relata que Kirmiz escreveu a música “Iʿtidhār ʿAn Khalal Fannī Ṭāri” (“Desculpe por uma dificuldade técnica urgente”) com a poesia de Haydar Muhammad. Uma performance da música ao vivo na Universidade de Belém em 1976 foi gravada por um gravador de cassete. O co-líder da banda, Emile Ashrawi, lembra que Kirmiz apresentou parte da música para o grupo durante um ensaio, e que Ashrawi ajudou a termina-la. A música mostra várias características musicais e de estilo que Kirmiz tinha em comum com a Al-Baraem e outras sonoridades e texturas que ele explorou mais tarde em sua carreira.
Sustentado por Mark, seu irmão mais velho e estudante de bioquímica na Universidade de Michigan em Ann Arbor, Kirmiz mudou-se para os Estados Unidos em 1976. Mark, porém, não gostava de trabalhar em sua área, abrindo uma loja de conserto de sapatos na cidade-vizinha Ypsilanti. De longas horas de trabalho até estratégias exóticas de investimento, Mark se deu bem financeiramente. George trabalhou por inúmeras horas na loja de seu irmão.
Nesse tempo, Kirmiz se tornou muito ativo na área de Ann Arbor, no Michigan, e colaborou com vários músicos, incluindo os pianistas M. Abdein (do álbum Anā ismī shaʿb filisṭīn) e Randal Faber, que tocou com ele entre 1980 e 1984, o baixista Glenn Bering, que apareceu em várias de suas gravações e em alguns concertos, e o percussionista Bob Cranmer. Permanecendo nos USA, gravou quatro álbuns e fez tours frequentes até o meio da década de 1980.
Kirmiz ganhou popularidade entre as audiências palestinas nos Estados Unidos, na Europa e no mundo árabe. Ele apareceu em eventos estudantis palestinos e era associado à esquerda. De acordo com o apoiador Waem Garbieh, a Frente Democrática para a Libertação da Palestina (FDLP) “o considerava parte de nós”, e comprou o primeiro Oud de Kirmiz numa tentativa de recrutá-lo para a organização. Um dos vários eventos políticos no qual performou foi a conferência nacional de estudantes palestinos em Chicago de junho de 1983. O ativista estudantil Rami Rasheed lembra de Kirmiz cantando sua ode à Jerusalém:
Ó Jerusalém, minha cidade
Por meu caderno, minha caneta,
E pelo fogo de meu rifle,
Levantaremos a bandeira.
O álbum de 1985 “Min Anṣār Ila-ʿAsqalān” (“De Ansar a Ascalão”) foi dedicado diretamente à causa dos presos políticos, em resposta à escolha do dia 17 de abril como o dia anual de solidariedade pelos palestinos presos em celas sionistas. O encarte do álbum diz:
“Considero esse humilde trabalho artístico como um meio de comemorar essa ocasião e de dedicar essas músicas a todos os guerrilheiros palestinos nas prisões israelenses, e a todos os presos políticos árabe nas garras dos regimes reacionários árabes que ficam de cabeça erguida e esperançosos por um melhor futuro de nossa pátria”
Na maioria de suas músicas, Kirmiz fazia uso de instrumentos, composições, harmonias e formas ocidentais. Kirmiz compunha a maioria de suas poesias no árabe padrão, baseado nos poemas de palestinos como Mahmoud Darwish, Rashid Husain e Tawfiq Zayyad. A maioria desses poemas eram já conhecidos, uma tendência que muitos compositores utilizavam para popularizar suas músicas. Alternativamente, ele escreveu e transformou em música no árabe coloquial palestino diversos poemas e letras escritos em árabe padrão. Kirmiz refinava suas músicas no grupo [Al-Baraem] e apresentava-as já finalizadas. De acordo com Faber,
“Ele (Kirmiz) escreveu todas as letras e melodias e usou violão ou piano para encontrar a melodia. Ele era muito decidido quanto ao som que desejava, tipicamente demonstrando-o em vários instrumentos. Ele usava a tabla para mostrar ritmos e muitas vezes demonstrava no piano o som e estilo que queria”
Kirmiz também tocou o Oud humildemente, adicionando “quartos de tom” em suas cantorias e melodias, algo inexistente nas músicas de Al-Baraem e nas músicas iniciais de Kirmiz. Faber lembra que Kirmiz era um líder firme que sabia exatamente o que queria e que imaginava detalhadamente a forma de suas músicas. Ele fez todos os seus álbuns no Brookwood studios em Ann Arbor com o engenheiro de áudio David Lau.
Existiu especulação intensa quanto a razão na qual Kirmiz parou de performar e gravar músicas entre comentaristas palestinos. Mesmo continuando a cantar em concertos no começo da Intifada de 1987-1993, ele disse aos membros da banda que estava interessado em se aposentar. O seu último álbum, de 1985, tinha dado dicas quanto à isso:
Quando as palavras acabarem
E minhas músicas se esgotarem
A pátria continua como a última palavra
E todas as músicas.
Kirmiz era um superstar durante seus tours e um lojista durante o dia. Um agente criador que manteve a humildade de suas origens. Quando seu irmão se aposentou precocemente, George tomou conta da loja e focou em trabalhar com sapatos customizados. Eventualmente, ele vendeu a loja e aposentou-se sorrateiramente enquanto jovem. Faber viu Kirmiz pela última vez em 1990 quando ele se aposentou e decidiu mudar-se para Michigan. Ele iria morar em Paradise, na Califórnia, onde abriu uma loja de conserto de sapatos em Chico, há 20 km de sua casa. Infelizmente, a loja foi fechada permanentemente durante a pandemia.
– Issa Boulos nasceu em Jerusalém e é um compositor internacional premiado, liricista, escritor e pesquisador. Issa performou e liderou conjuntos musicais na Palestina e ao redor do mundo. Ele recebeu seu doutorado pela Universidade Leiden e atualmente serve como Coordenador do Centro Musical Comunitário no Harper College, Chicago. Toca oud e Buzuq
– Louis Brehony vive em Manchester e é um músico, ativista, pesquisador e educador. Ele é o diretor do filme premiado Kofia: A Revolution Through Music (2021) e é autor do livro Palestinian Music in Exile: Voices of Resistance. Escreve regularmente sobre a Palestina e cultura política e performa internacionalmente como tocador de violão e buzuq. Ele contribui com esse artigo da Palestine Chronicles.