Aeronave da Embraer. Foto: Reprodução
Nos estertores desta fase de gerenciamento agora não mais civil do velho Estado, inaugurada em 1985, começa seu inventário. E isso denota o início da queda de um pilar dela: a imposição de visões fragmentárias e temas irrelevantes na universidade, articulada à desqualificação social de outras instâncias intelectuais de modo a interditar – pelas mãos dos aparatos acadêmicos do PT e do PSDB e sob ditames do imperialismo – a possibilidade de uma reflexão nacional como a dos anos 50/60.
Nesta conjuntura, surge o trabalho do tecnólogo em Logística e geógrafo Wilson Alves dos Santos Junior. Parte do espólio da Nova República, o desmantelamento da aviação civil – denunciado em AND 9, 44, 167, 173 e 205 como parte do desmanche do país – é detalhadamente descrito e analisado em “O transporte aéreo de cargas e a organização do espaço regional”, sua dissertação de mestrado na Universidade Federal de Uberlândia, e “Análise das implicações do monopólio do transporte aéreo no Brasil”, artigo com foco no de passageiros publicado na revista Observatorium.
Refutando a lenda rósea
Um dos mitos mais arraigados da etapa histórica que finda é a democratização do transporte aéreo – reduzido, em tal visão, a um bem de consumo que as bondades dos governos petistas, para alguns, e/ou do liberalismo mercantilizante, segundo outros, teriam estendido ao povo.
Após decrescer de 38,3 milhões em 2002 (último ano de FHC) para 37,2 milhões em 2003 (primeiro de Lula), a quantidade de passageiros transportados cresceu em todos os anos, exceto 2016 (Rousseff/Temer), quando se reduziu para 109,5 milhões. No último ano de Temer (2018), superava ligeiramente a do último ano completo do PT (2015): 117,7 milhões. Em 2019, já com Bolsonaro, chegou a 119,4 milhões em 2019.
Ao tempo em que desmentem a mitologia de uma das facções do sistema, esses dados da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) pareceriam corroborar que todas elas teriam ampliado o acesso da população aos aviões. Uma das contribuições mais importantes do artigo de Santos Junior é mostrar que ele não se mede apenas pela quantidade de passageiros, mas também de lugares atendidos pela aviação – que cai continuamente desde 1990.
Em 1960, a malha aérea brasileira abrangia 371 localidades. O regime militar-fascista de 1964 começa depredando a aviação nacional em todos os flancos: fechamento da Panair, insígnia do empresariado nacional reformista; sabotagem ao Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e Centro Técnico de Aeronáutica (CTA) e perseguição aos militares democratas e nacionalistas que os conceberam, como o marechal Casimiro Montenegro; enquanto estabelecia forte ênfase no modal rodoviário, tão disfuncional para a integração física do país e o deslocamento de pessoas e bens, quanto lucrativo para empreiteiras e monopólios transnacionais da indústria automobilística. Em 1975, a aviação doméstica só chegava a 93 localidades, e, em seu melhor momento pós-64 (1990), a 218 por conta da promoção de voos ao interior (ditos “regionais”) iniciada por Geisel e até então mantida.
Santos Junior mostra que, desde meados do 2o mandato FHC (2000) ao fim do 1o Lula (2010), a malha se reduz ligeiramente (de 172 para 162 localidades), despencando para 122 na passagem de Rousseff a Temer (2016). Em 2019, chegava a 128 – menos que em 1945 (134), quando a população era 4,6 vezes menor.
Monopólios e atrofia
Esse aumento da quantidade de pessoas que viajam de avião é, pois, simultâneo e vinculado à redução dos locais para onde se pode viajar e empresas pelas quais fazê-lo. A eliminação dos monopólios regionais fomentados a partir de 1975 se deu, como também mostra o artigo, em favor de outros, de escala nacional ou – cabe acrescentar – transnacional (Latam). De quase 30 companhias em operação regular nos anos 40/50 o Brasil passa a ter 14 nos anos 90/2000, chegando hoje a 4, uma das quais (Passaredo) possivelmente em vias de desaparição.
O crescimento do mercado aéreo, da TAM/Latam e da Gol se baseia, assim, na atrofia da malha e na concentração de voos em menos rotas mais lucrativas. E se articula a outros dois elementos que Santos Junior menciona sem detalhar mecanismos nem dar nome aos bois.
Um é o rodoviarismo, identificado como entrave ao desenvolvimento do transporte aéreo e do país, e também como complemento da extração de riqueza por algumas companhias. Essas assertivas, porém, não são claras sem o dado de que Gol e Itapemirim (prestes a estrear na aviação) são monopólios rodoviários aos quais interessa sufocar a concorrência da aviação regional, tanto ou mais que lucrar diretamente com viagens aéreas de longa distância.
O outro é a subordinação do monopólio dos países subdesenvolvidos ao dos desenvolvidos, “que ditam a forma e as regras de acumulação e espoliação nos países semicoloniais”. Faltou dizer que, concretamente, isso se dá mediante a relação da Gol e da Latam com a Boeing e a Airbus, fabricantes de todos os seus aviões. Com os mercados do 1o mundo perto da saturação e a política chinesa de privilegiar sua empresa autóctone (Comac), a ampliação do brasileiro é tão fundamental para esses monopólios industriais quanto a liquidação da Embraer. Dos 559 aviões em operação aqui em 2019, só 65 (da Azul) haviam sido produzidos por ela.
Por fim, ao desmanche da indústria, da malha, das condições de trabalho e de várias companhias, soma-se o da capacidade nacional de gestão aeroportuária, com a dissolução da Infraero. Esse dado também faz falta à análise contida no artigo de Santos Junior.
Estado e oligarquias
Voltando aos méritos do artigo, cabe destacar a colocação de que “o Estado atua fortemente com regulamentações, subsídios e infraestrutura, mas no sentido de favorecer a concentração de empresas e rotas e a estrangeirização”. Santos Junior refuta, assim, um lugar-comum tão falso quanto difundido nos últimos 20 anos não só quanto ao setor aéreo: a suposta dicotomia Mercado x Estado. A ação estatal pode ter os mais distintos conteúdos, a depender de quem a controla.
A identificação do nexo entre a acumulação de capital no setor aéreo, formatada via Estado, e os velhos esquemas de dominação oligárquica (feudal) do interior também é valiosa. O autor destaca que “na maioria dos aeroportos localizados no interior do país praticamente não existe operação de voos regulares. São estruturas construídas com recursos públicos que beneficiam apenas os mais ricos com suas pequenas aeronaves particulares”. Essa constatação permite outra: nem a circulação de pessoas, nem o desenvolvimento econômico dessas regiões são do interesse dessas oligarquias, cujo poder se baseia na estagnação social e na monopolização das fontes de riqueza.