No dia 29 de agosto, o militar reformado Hernán Chacón, de 85 anos, se suicidou com uma arma de fogo, durante sua detenção em Santiago, Chile. Chacón foi condenado a 25 anos de prisão pelo Supremo Tribunal chileno devido a seu envolvimento no assassinato do cantor e compositor Victor Jara e do advogado Littré Quiroga, e seria levado à prisão de Punta Peuco, onde outros atores do regime militar fascista estão presos*.
A condenação atinge também outros militares reformados que atuaram na concentração de presos políticos no Estádio Chile (hoje Estádio Victor Jara): Raúl Jofré González e Nelson Haase Mazze – que estão atualmente foragidos – Edwin Dimter, Ernesto Bethke, Juan Jara e o cúmplice Rolando Melo. Além dos sete, a justiça chilena também busca extraditar da Flórida o ex-tenente Pedro Barrientos, que tem cidadania norte-americana e é tido pelas testemunhas como o responsável imediato do assassinato de Victor Jara.
O processo contra os militares já perdura por anos. A decisão recente pelas detenções aconteceu, não por coincidência, nos marcos dos 50 anos do golpe militar fascista no Chile; um período de grande agitação política no país contra o regime de Pinochet e o atual. A figura de Victor Jara, como um espectro estampado no céu chileno, ainda causa horror a todas as forças que representam o velho Chile.
“O silêncio e o grito/São as metas desse canto”
O comunista Victor Jara foi o principal impulsionador da chamada Nova Canção Chilena, que, colocando-se como uma extensão direta da fecunda cena cultural marcada pela intervenção da compositora Violeta Parra e seu “Sarau dos Parras” (Penã de los Parras), produziu um cancioneiro popular e de combate que ressoou em toda a América.
Nas horas que seguiram o golpe de Pinochet em 11 de setembro, registra-se que Victor se dirigiu à Universidade Técnica do Estado (UTE), onde era professor, para se reunir com colegas e estudantes no sentido de prepararem a resistência. Às 7h da manhã, os militares invadiram a UTE, disparando uma bala de canhão de 120mm contra o prédio e levando 600 detidos.
Victor foi levado no dia 15 de setembro à concentração no Estádio Chile, onde ficou junto a outros cinco mil presos políticos. Já reconhecido por sua atividade cultural e política, Victor foi tratado como um troféu pelos reacionários, que o submeteram à tortura com crueldade distinta: testemunha-se que o oficial de nome “El Príncipe” – que possivelmente é um dos que compõem a lista de condenados, Edwin Dimter – lhe dizia “vamos ver se agora você vai tocar violão, comunista de merda”, enquanto quebrava sua mão.
Seu cadáver foi achado junto ao de outros quatro presos políticos num terreno baldio no dia seguinte, com os dedos esmagados, a língua cortada, marcas de espancamento e mais de 44 balas perfurando-lhe a carne. Ao seu lado, o corpo do advogado e companheiro de partido Littré Quiroga, executado com 23 balas. Victor e Quiroga estão entre as dezenas de milhares de torturados, mortos e desaparecidos pelo regime de Pinochet. Somente em 2009 os restos mortais de Victor foram exumados, por ordem judicial, numa cerimônia oficial.
Duas atitudes, duas visões de mundo
Mesmo frente à morte que lhe esperava, Victor conseguiu contrabandear, através de Boris Navia, seu último poema, Estadio Chile/ Somos cinco mil, escrito nas arquibancadas do campo de concentração. O poema foi copiado por vários prisioneiros em pedaços de papel e cartelas de cigarro Hilton para que pudesse em algum momento escapar do Estádio.
Carregado de choque e revolta contra o terror fascista, Victor, mesmo nas condições mais adversas, afirma que “nosso punho golpeará novamente”. Declarando estar ciente de sua própria morte, conclui com as duas estrofes finais o motivo de tê-las escrito:
“(…) Canto, que mal me sai
quando tenho que cantar o espanto.
Espanto como o que vivo, como o que morro, espanto.
De ver-me entre tantos e tantos momentos do infinito
em que o silêncio e o grito são as metas deste canto.
O que nunca vi, o que senti e o que sinto fará brotar o momento…”
Nesses versos, demonstra sua consciência coletivista em arrancar do peito as palavras para passar o registro adiante, por mais doloroso que o fosse. É uma vitória moral da visão de mundo de Victor, que o fez pensar para além de si e de seu tempo na terra. Quão diferente é a atitude de Victor, frente às 44 balas e à vala comum, da covardia de Hernán, assim como a dos foragidos Raúl e Nelson, do “cidadão americano” Barrientos e do fascista Pinochet!
O último poema de Jara, interpretado a capella por Isabel Parra
A vingança de Victor Jara
50 anos após sua morte, Victor segue sendo um problema para as classes dominantes do Chile. Obviamente, para as viúvas de Pinochet, mas também para o oportunismo que, quando no poder, trafica com a luta pela justiça de Victor e outros caídos em combate com medidas simbólicas; enquanto que, no protesto popular contra esses mesmos governos, as massas confrontam a sua polícia cantando El derecho de vivir en paz.
O suicídio de Hernán não é a vingança de Jara. A condenação dos atores do regime fascista a 25 anos de prisão é algo de pouco demais e de tarde demais: ainda que importante resultado das décadas a fio da pressão das massas chilenas por justiça, não será por estas lidas que virá a vingança derradeira de Jara. Mas sempre que se levanta o povo chileno, é a língua cortada de Jara que lhes escorre da boca. Quando erguem seus punhos, são os metacarpos esmigalhados de sua mão que fecham com pesar. Dessas mãos, e do futuro que elas construirão, que se realizará a vingança de Victor Jara.
Notas:
* O suicídio para escapar da prisão tem sido prática corriqueira dos antigos donos do poder no Chile: foi esse o caso do general aposentado e ex-chefe da Direção de Inteligência do Exército (DINE) Hernán Ramírez Rurange, em 2015 e do ex-chefe da Central Nacional de Informações (CNI) em 2013.