O suicídio do fascista e a vingança de Victor Jara

No dia 29/08, o militar reformado Hernán Chacón se suicidou com uma arma de fogo, durante sua detenção em Santiago, Chile. Chacón foi condenado a 25 anos de prisão devido a seu envolvimento no assassinato do cantor e compositor Victor Jara e do advogado Littré Quiroga.
Victor Jara cercado de crianças. Foto: Fundación Victor Jara

O suicídio do fascista e a vingança de Victor Jara

No dia 29/08, o militar reformado Hernán Chacón se suicidou com uma arma de fogo, durante sua detenção em Santiago, Chile. Chacón foi condenado a 25 anos de prisão devido a seu envolvimento no assassinato do cantor e compositor Victor Jara e do advogado Littré Quiroga.

No dia 29 de agosto, o militar reformado Hernán Chacón, de 85 anos, se suicidou com uma arma de fogo, durante sua detenção em Santiago, Chile. Chacón foi condenado a 25 anos de prisão pelo Supremo Tribunal chileno devido a seu envolvimento no assassinato do cantor e compositor Victor Jara e do advogado Littré Quiroga, e seria levado à prisão de Punta Peuco, onde outros atores do regime militar fascista estão presos*.

A condenação atinge também outros militares reformados que atuaram na concentração de presos políticos no Estádio Chile (hoje Estádio Victor Jara): Raúl Jofré González e Nelson Haase Mazze – que estão atualmente foragidos – Edwin Dimter, Ernesto Bethke, Juan Jara e o cúmplice Rolando Melo. Além dos sete, a justiça chilena também busca extraditar da Flórida o ex-tenente Pedro Barrientos, que tem cidadania norte-americana e é tido pelas testemunhas como o responsável imediato do assassinato de Victor Jara.

O processo contra os militares já perdura por anos. A decisão recente pelas detenções aconteceu, não por coincidência, nos marcos dos 50 anos do golpe militar fascista no Chile; um período de grande agitação política no país contra o regime de Pinochet e o atual. A figura de Victor Jara, como um espectro estampado no céu chileno, ainda causa horror a todas as forças que representam o velho Chile.

Em 2006, a Comisión Funa, organização civil que luta contra a impunidade dos artífices do regime militar, realizou uma ação contra Edwin Dimter em seu local de trabalho. Edwin, que especula-se ser o “El Príncipe” que torturou Jara, reagiu pedindo por socorro.

“O silêncio e o grito/São as metas desse canto”

O comunista Victor Jara foi o principal impulsionador da chamada Nova Canção Chilena, que, colocando-se como uma extensão direta da fecunda cena cultural marcada pela intervenção da compositora Violeta Parra e seu “Sarau dos Parras” (Penã de los Parras), produziu um cancioneiro popular e de combate que ressoou em toda a América.

Uma das últimas apresentações de Victor Jara, gravada no Peru em 1973.

Nas horas que seguiram o golpe de Pinochet em 11 de setembro, registra-se que Victor se dirigiu à Universidade Técnica do Estado (UTE), onde era professor, para se reunir com colegas e estudantes no sentido de prepararem a resistência. Às 7h da manhã, os militares invadiram a UTE, disparando uma bala de canhão de 120mm contra o prédio e levando 600 detidos.

Victor foi levado no dia 15 de setembro à concentração no Estádio Chile, onde ficou junto a outros cinco mil presos políticos. Já reconhecido por sua atividade cultural e política, Victor foi tratado como um troféu pelos reacionários, que o submeteram à tortura com crueldade distinta: testemunha-se que o oficial de nome “El Príncipe” – que possivelmente é um dos que compõem a lista de condenados, Edwin Dimter – lhe dizia “vamos ver se agora você vai tocar violão, comunista de merda”, enquanto quebrava sua mão. 

Estádio Chile reorganizado como campo de concentração. Foto: Associated Press

Seu cadáver foi achado junto ao de outros quatro presos políticos num terreno baldio no dia seguinte, com os dedos esmagados, a língua cortada, marcas de espancamento e mais de 44 balas perfurando-lhe a carne. Ao seu lado, o corpo do advogado e companheiro de partido Littré Quiroga, executado com 23 balas. Victor e Quiroga estão entre as dezenas de milhares de torturados, mortos e desaparecidos pelo regime de Pinochet. Somente em 2009 os restos mortais de Victor foram exumados, por ordem judicial, numa cerimônia oficial.

Duas atitudes, duas visões de mundo

Mesmo frente à morte que lhe esperava, Victor conseguiu contrabandear, através de Boris Navia, seu último poema, Estadio Chile/ Somos cinco mil, escrito nas arquibancadas do campo de concentração. O poema foi copiado por vários prisioneiros em pedaços de papel e cartelas de cigarro Hilton para que pudesse em algum momento escapar do Estádio. 

Carregado de choque e revolta contra o terror fascista, Victor, mesmo nas condições mais adversas, afirma que “nosso punho golpeará novamente”. Declarando estar ciente de sua própria morte, conclui com as duas estrofes finais o motivo de tê-las escrito:

“(…) Canto, que mal me sai

quando tenho que cantar o espanto.

Espanto como o que vivo, como o que morro, espanto.

De ver-me entre tantos e tantos momentos do infinito

em que o silêncio e o grito são as metas deste canto.

O que nunca vi, o que senti e o que sinto fará brotar o momento…”

Nesses versos, demonstra sua consciência coletivista em arrancar do peito as palavras para passar o registro adiante, por mais doloroso que o fosse. É uma vitória moral da visão de mundo de Victor, que o fez pensar para além de si e de seu tempo na terra. Quão diferente é a atitude de Victor, frente às 44 balas e à vala comum, da covardia de Hernán, assim como a dos foragidos Raúl e Nelson, do “cidadão americano” Barrientos e do fascista Pinochet!

O último poema de Jara, interpretado a capella por Isabel Parra

A vingança de Victor Jara

50 anos após sua morte, Victor segue sendo um problema para as classes dominantes do Chile. Obviamente, para as viúvas de Pinochet, mas também para o oportunismo que, quando no poder, trafica com a luta pela justiça de Victor e outros caídos em combate com medidas simbólicas; enquanto que, no protesto popular contra esses mesmos governos, as massas confrontam a sua polícia cantando El derecho de vivir en paz.

O suicídio de Hernán não é a vingança de Jara. A condenação dos atores do regime fascista a 25 anos de prisão é algo de pouco demais e de tarde demais: ainda que importante resultado das décadas a fio da pressão das massas chilenas por justiça, não será por estas lidas que virá a vingança derradeira de Jara. Mas sempre que se levanta o povo chileno, é a língua cortada de Jara que lhes escorre da boca. Quando erguem seus punhos, são os metacarpos esmigalhados de sua mão que fecham com pesar. Dessas mãos, e do futuro que elas construirão, que se realizará a vingança de Victor Jara.

Manifestantes chilenos cantam El derecho de vivir en paz durante os grandes protestos de 2019.

Notas:

* O suicídio para escapar da prisão tem sido prática corriqueira dos antigos donos do poder no Chile: foi esse o caso do general aposentado e ex-chefe da Direção de Inteligência do Exército (DINE) Hernán Ramírez Rurange, em 2015 e do ex-chefe da Central Nacional de Informações (CNI) em 2013.

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