1
Petra Costa está empenhada em contar a história de uma fratura. Petra nos parece temerosa ao aceno do que se avizinha. Por seu testemunho, o que se anuncia é o grau zero da desordem, a povoação do caos por matéria obscura e degradada. Petra denuncia o ‘ressurgimento’ de fantasmas insepultos de um passado recente. Personagens tangidas aos humores dos porões da ditadura civil militar brasileira, a reproduzir as mesmíssimas palavras de ordem, os mesmos cantos de uma guerra suja; deslocando (quando muito) de objeto-alvo as suas projeções persecutórias – o anticomunismo visceral tergiversado aos riscos dos avanços do nacionalismo bolivariano em Venezuela e afins; a associação simplória de toda e qualquer política pública (ainda que a de efeitos pediátricos e no cumprimento de um pragmatismo político-funcional escuso) às tarefas do Estado operário a que se há de combater até ao extermínio do inimigo (de matiz diverso ao sabor das turbulências de baixo ventre)[1]; o ódio tresloucado a toda e qualquer forma de organização popular em suas demandas, mesmo as mais elementares e reivindicativas; a defesa intestina do ‘livre cambismo’ e da aproximação submissa e associada aos interesses estratégicos da política externa estadunidense à região[2]. E tal mixórdia de velhos chavões para uso dos desavisados reacionários de plantão sob a parafernália dos altos brados em defesa da tradição, da propriedade, da família, da pátria, de chulo fanatismo neopentecostal expresso no varejo de milagres e doutrina despejados do ecrã catódico aos diversos rincões do campo social brasileiro [3].
Este o caldeirão escatológico a que Petra se dispõe a esmiuçar. Com seus olhos de pinça vai desfiando, peça sobre peça, tal figurino lúgubre como quem os apresenta ao assombro da hora. Petra quer montar casamata e desde esta, em arranjos de autodefesa, oferecer um aporte que neutralize àquele avanço que vai se plasmando por meio de procedimentos táticos de aproximações sucessivas – todavia é tarde [4]. Ela o sabe. Ninguém mais o pressentia? Nenhum dos sujeitos políticos, empenhados às tarefas da administração da máquina burocrática do Estado e à frente do Poder Executivo, há mais de uma década, o prefigurava? Nenhum dos agentes formuladores das políticas econômicas – para transformação e dinamização do setor de investimentos internos, por meio das benesses de transferência de capital público e incentivos fiscais, desconfiava?[5]. Estiveram embargados e imersos a cálculos e certezas primaveris alimentadas pelos bons ventos da estação – os preços elevados das commodities no mercado internacional e as altas taxas de juros no enorme afluxo de capitais voláteis em busca de uma rapidíssima remuneração?[6]. Não seria de gerar desconfianças aos não-incautos? Todavia sigamos com a fé de Jó – que parece semear a força da crença de entre os cactos do deserto…
Será que Petra Costa nos acompanharia a esta tarefa de aquietar as desconfianças sob o manto cálido da crença que acalenta os despossuídos? Deixemos de lado as conjecturas irresolvidas – resta-nos continuar ao veio plácido das inquirições. Tarefa número um: a de avisar aos navegantes e leitores de certo arranjo metodológico. Ao corpo deste ensaio crítico, buscamos a rítmica das imagens temperadas por um jogo de sombras e de luzes em p/b. Às notas de fim de texto, elencamos os argumentos da crítica aguda e mordaz a nos emprestar tipos de lentes distintas das que se utilizou Petra Costa e seus fotógrafos – ela/eles obcecados em sacar das provas elencadas, o sal da hora que tornasse a terra improvável obsoleta infértil e febril.
Petra está à espiral da vertigem, agonizando em corpo heroico, as agruras da queda. Como se estivesse com um Fresnel à mão, opera um disparo de rajada de luz focal em direção ao objeto que atravessa e desnuda. É seu efeito mágico, sua lanterna de uso particular. Acende e apaga, atordoando o representado pelo forno quente de uma luz branquíssima. Esta é Petra Costa em seu Democracia em vertigem, isto o que ela parece promover no que constrói a teia narrativa de seu argumento. De nossa parte, com as lentes e luzes de um parco orçamento, nos distanciamos, humildes e silentes, dos riscos do contágio virulento de uma aproximação arremetida ao cenáculo do crime; e recuamos, pé ante pé, três passos atrás, três léguas atrás, buscando não perder de vista o objeto que se busca deslindar – mas evitando sofrer dos efeitos do excesso de luz que acaba por embaçar as vistas, turvando o olhar, flechando-o de uma brancura estourada que apaga os vestígios deixados à parede dos fatos, e que atropela as digitais dos suspeitos, e que compromete a força dos documentos somada à peça de interpretação criminal. Da distância que nos exigimos, não sentimos o perfume embriagante dos mordomos. Todavia, quem sabe, consigamos aspirar sem desfalecer os olores de um tempo mais largo.
Isto posto e acordado, sigamos à tarefa de perguntar. No boletim de análise técnica do DIEESE, apontou-se certa direção possível a um resgate de produção mais além dos primados exportadores das commodities; falava-se de uma recuperação possível ao parque industrial de transformação a um país como o Brasil, e tal recuperação estaria assentada na melhoria da qualidade dos produtos fabricados e na redução dos custos de produção. Apropriemo-nos deste último ponto. Deixemos de lá os aspectos políticos que implicam a necessidade da aposta em uma carteira voraz de investimentos no setor. Fiquemos com um dos termos para ensaio de interpretação. Nele e por ele, algo se nos afronta. Importante que repisemos a fala técnica, que a repitamos a ver se a lisura asséptica do diagnóstico se enche de carne e sangue. O termo é: redução dos custos de produção como um dos elementos imprescindíveis à recuperação da capacidade produtiva em larga escala e em condições de competição no mercado internacional. Estanquemos o fluxo da narrativa. Cortemos este frame.
Recuemos um tanto. Até antes de nossa digressão metodológica. Estivemos nos perguntando se a guinada do golpe de Estado com sua antessala de escatológica povoação não se fizera prenunciar aos gestores de turno – aqueles que tocavam as rédeas estratégicas da política econômica dos governos de antão. Petra Costa esteve debruçada sobre isto – queria noticiar a gênese do que lhe é vertiginoso. Nós, com a ajuda de um punhado de peças analíticas, fomos capazes de revelar as nossas sinceras dúvidas quanto à inocência inadvertida daqueles que traziam consigo as baquetas e a partitura recoberta pelas mangas longas do fraque. Será que chegaram tarde ao concerto e foram barrados peremptoriamente ‘pelo guardinha da esquina’ em sua vontade de mostrar serviços ao patronato? Ou será terão chegado cedo em demasia a ponto de se fazer confundir com os funcionários de serviços gerais da casa de espetáculos, e de pronto, foram tocados aos ofícios pesados dos encarregados de transporte da maquinária de som até o palco, e depois, estafados e consumidos, dormiram o sono dos justos sem se ater sequer aos apupos da plateia de ingressos na mão? Os caminhos bifurcados costumam acender as chamas das dúvidas. Mas optamos pela profissão de fé de Jó. Petra Costa estará conosco irmanados em Jó? Acreditar desconfiando seria profanar tal personagem? Suspendamos as dúvidas. Seremos os pregadores da palavra, seus mensageiros pios. E eis que já nos coçam as urticárias decaídas dos pecadores…
Lancemo-nos à maldição indexadora dos fatos – trazendo conosco um leque renovado de questões: Quantos os que foram pegos à surdina em meio ao remanso sem direito à contraprova dos fatos? Não se sabia dos preparos ao golpe de Estado, as suas condições plasmadas cotidianamente? Não perceberam a onda que estava se anunciando para além da tarde dos trópicos? Não estiveram atentos os atores protagonistas da hegemonia lulista – aqueles que operavam os acordes de regulação dos conflitos classistas por intermédio de uma espécie de consentimento passivo das classes subalternas, uma certa burocracia sindical?[7]. Infesto o juízo tardio e a posteriori a exigir das camadas populares a potência convulsa de uma resistência ativa. De dentro das horas amargas da vertigem de Petra, alguns são os que se perguntam pelo ponto de viragem da classe trabalhadora, o seu milagre de redenção altiva na retomada ‘ressignificadora’ dos fatos à história; instá-los à condição de sujeitos coletivos às rédeas dos acontecimentos políticos, mas como que isto? Não é como situá-los à circularidade irresgatável da dívida originária e seu sistema de espoliação infinito? Trabalho de Hércules o de ter as costas lanhadas, a pele salgada e a incumbência moral de despregar-se dos grilhões em ato de rechaço e insurgência. Não será apenas que de um cinismo sem eira nem beira que poderá se manter de pé essa demanda por uma messiânica tomada de consciência de los de abajo no estágio atual da luta de classes?! [8].
Petra Costa fotografa hordas de protofascismo se alastrando pelas ruas das grandes capitais brasileiras, ela se pergunta pelo como foram ganhando corpo tais manifestações de rua; ela parece ver uma fratura do tecido social, uma rachadura, uma fenda pela qual se instala um tempo de queda adâmica. Diferentemente de Petra Costa, nos perguntamos pelos elos processuais, pelas variações cíclicas, pelo diapasão no qual modulações distintas em grave e agudo entornam, por vezes, a viscosidade do caldo; noutras reacomodam personagens lugares dispositivos instituições e agenda programática. Petra Costa descreve a revoada de bárbaros tomando de assalto a cidade sitiada da democracia. Nos perguntamos pelos limites do conceito, pela concretude material na que tal conceito se faz encarnado. Nos perguntamos pelo que o preenche e o mantém de pé. Seus conteúdos de terra, fuligem, poeira, barro vermelho, nos perguntamos pelos caminhos de Fabiano e Sinhá Vitória[9], suas andanças secas sem sequer ter um pedaço de carne de ceará para fazer frente às febres da fome, será que em seus sonos a democracia toca o fole?
Nos perguntamos se o Moleque Ricardo [10] depois de deixar sua cama de prego, e se depois de deixar o eito enfastiado de garapa e bagaço de cana; se o moleque Ricardo depois de sair de pés descalços na calada da noite sem testemunho e redenção; se depois de seguir em vagão de terceira e chegar aos longes da cidade de Recife; e se ele depois de perceber que Recife não eram só os quarteirões magistrados da Faculdade Nacional de Direito onde se edulcorava os mandonismos latifundiários, mas que Recife lhe seria a xepa azucrinada da feira, que Recife lhe seria o canteiro de obras talhado pela necessidade de redução dos custos de produção como um dos elementos imprescindíveis à recuperação da capacidade produtiva em larga escala – de que nos fala a análise técnica do Boletim do DIEESE…
Nos perguntamos o que presta este palavrório aos olhos de Ricardo; é que o Moleque Ricardo sabe pouco ou quase nada destes cálculos e abstrações, ele sabe apenas e somente que quanto mais horas carvoeiras, que quanto mais tempo ao suor dos tornos sob o feroz apito dos que tocam o açoite das metas e o relógio do ponto; e que tudo isso somado, ele vai ficando menor, ele vai asfixiando, ele vai ficando com os pulmões enxarcados de fuligem, ele vai ficando com um chiado longo e agudo no peito, e eis que o Moleque Ricardo vai descobrindo que o tempo é como um ponteiro de navalha, a lâmina fina que corta sentido e produção; que Recife lhe seria as favelas de Casa Amarela, Alto do Rosário, Dois Irmãos, Alto da Bondade, Cohab, Ibura, Imbiribeira, Joana Bezerra, Brasília Teimosa; e que Recife lhe seria a greve e lhe seria o esculacho sofrido às mãos firmes dos soldados amarelos, e seus calibres de repetição; e que Recife lhe seria a viatura de sirena tocando alta como no espocar do medo que lhe encolhe; e que Recife lhe seria a temporada de retiro insular na penitenciária de segurança máxima de Fernando de Noronha – porque é para lá que lhe desliza em despenhadeiro a cidade e suas tralhas e suas tramas institucionais; é para Fernando de Noronha que a cidade lhe faz escorregar, a algema nos braços, a nuca ferida da coronhada do sicário de farda, a corporação policial a servir de trata aos seus irmãos Ricardos e Severinos.
Será que entre estes caminhos de ida e de vinda de Ricardo, ele se esbarrou com o vórtice viramundo da vertigem democrática dos candangos aos arredores de uma outra Brasília, não a Brasília Teimosa da miséria recifense, mas a Brasília soberba de emancipatório plano arquitetônico, do acúmulo de capitais empreiteiros sobre a hiper espoliação da força do trabalho dos operários da construção civil, retirados estes da fome do eito, da fome da periferia de Recife, e lançados na fome de Ceilândia, Brasília esta da que Ricardo padece os seus efeitos reflexos e retardados, e na que Joaquim Pedro de Andrade soube, atento, escutar e captar imagens definitivas?[11].
2
Petra Costa parece situar-se demasiado perto do seu objeto a ponto de se ver à condição reflexa, sujeita e sujeitada, cabeça falante e fratura de perspectiva. Todavia, Petra tem um nome colado, cerzido no bolso interno da calça, tatuado à segunda pele, a democracia. Democracia esta que ela vê surgir de entre as entranhas da ditadura – de que diz não ter vivido mas que sentiu profundo nas palavras de testemunho dos seus pais. Ousaríamos dizer que Petra Costa encarna esse marco ideológico que se sustenta na crença dos valores da democracia liberal burguesa e seu republicanismo. E, por vezes, ela como que se deixa embaralhar, desmarcar contornos, obstaculizar diferenças, escamotear cisões entre tal marco ideológico e os postulados da militância política de esquerda na que atuaram seus pais, e que ela parece aproximar, de forma quase que mecânica, como se entre um e outro o de que se tratasse fosse apenas, e tão somente, uma alteração de símbolos e de possibilidades. E ambos os tempos e as experiências, lado a lado, como que numa paralela de sonhos e de utopias, sem que se fizesse vista a incongruência de tais projetos. Como se fosse por meio de sua lanterna mágica, como se por meio do jato de luz fria do fresnel, Petra povoasse o palco com sua personagem imaginária – a democracia em abstrato, de inquestionado valor universal , hiper dimensionada pelos meios multimídia e comerciais do star system ao que Petra Costa parece dispor.
E é isto mesmo, toda essa carga topológica e legitimadora, todo este estatuto de conformidade política, o que Petra sente que está por um fio. Está-se em meio às urgências da queda, é o que Petra Costa não se cansará de afirmar. E os inimigos em sendo uma pletora de obscurantistas numa Cruzada protofascista – prontos para tomar de assalto a integridade republicana das instituições.
Outra vez, nos chega o bumerangue das questões: Nenhuma das bandas dirigentes empenhadas na boa digestão do capitalismo dependente periférico subalternizado subimperialista percebera uma escalada de tal ordem? [12]. O que será que se tramou em evitação da aludida derrocada? Ou doutro modo, quais os elos causais que se pode estabelecer entre o presente que se esfacela e a morbidez do futuro de que se agoniza? [13]. Petra parece empenhada em investigar tal processo. Petra não traz ao embornal respostas definitivas. Pelo contrário, ela diz sentir no seu corpo os sintomas da fratura, a úlcera aberta, indisposta/convulsa/saturada pela proximidade dos acontecimentos que registra. Talvez por isso Democracia em vertigem use da mescla dos modos expositivo, participativo e reflexivo à composição da estratégia narrativa documental. Petra quer contar algo do mundo para os outros. E Petra conta um tanto de si no que conta um tanto do mundo. Mas Petra se pergunta pela integridade de seus juízos acerca deste objeto movente que é o mundo de que está a contar, se pergunta pela solidez convicta de seus argumentos tirados do forno de ainda agora, a exatidão de suas certezas que cambiam no que cambia a conjuntura política que lhe fornecia a argamassa a um sistema de crenças [14]. Petra incorpora a mudança à sua perspectiva. Talvez que preserve a si uma certa reserva moral na que deposita, incólume, outra vez e sempre, a ideia abstrata de democracia. Mas sigamos o percurso de nossa cineasta. Recoloquemos Petra dentro de seu trabalho de investigar. Afinal, estava ela em meio aos fantasmas ressurgidos.
Petra Costa se pergunta como fazer para parar o torvelinho que expele e serpenteia desastres a um plano de voo? Petra traz consigo um relógio de bolso e dele o que escuta é o espocar do tic-tac de horas encadeadas. Será se está ao cozimento fatalista dos ponteiros que seguem indiferentes e resolutos a uma obstinada destinação? Petra cerze – incansável – as redes de pesca, molda recifes de isolamento, ergue plantas técnicas como programas de registro e captura. Talvez ela busque parar o tempo, voltar atrás as horas, re-diagramar sob o telão do juízo crítico os acordos costurados à coxia, fazer gritar em altos brados o mea culpa da máquina atabalhoada em meio a coalizações de que diz sofrer (mas que, tão logo, ela, a máquina, reenceta o mesmo gesto sacado à mesma cartilha drogadita e viciosa) [15]. Petra quer amarrar tamancas que suturem instantâneos silogismos, que faça quebrar seu gradeamento lógico-operacional pelo que a máquina, impávido e sôfrego colosso, retoma a volta completa da gira circular, em cento e oitenta graus, numa espécie de automatismo sem qualquer expiação de erros e equívocos.
Petra Costa fabula aprumos às falhanças que condenara a máquina – tornada infértil, ramerrona, autoindulgente, todavia é tarde [16]. A máquina se faz cega e surda. No que fala, tagarela, loquaz, é de reclamos projetivos pelos quais se vitimiza. A máquina permanece emperrada à condição errática de suas roldanas e catracas [17]. Tanto o tempo a se locupletar do engenho que a máquina fora se adequando aos protocolos e compromissos, como se equilibrasse demandas e servilismo. No que engata seus traquejos, a máquina retroalimenta os ritos da sabotagem de que, cabotina, diz padecer – a máquina oblitera o avanço de rechaços ao ordenamento que a engolfa e a regurgita [18]. Será Petra Costa percebe essa nuance, a filigrana perversa e estruturante?
De outro vértice à rosa dos ventos, Petra escrutina manjedouras nas que fora embalada a ova de víbora, investiga o antro no que, rasteira, a praga viera a se espalhar na lavoura. Desde quando isto? – a investigadora se alimenta de quefazeres dispostos em ordens do dia, ela busca saber as origens, as filiações. A documentarista se utiliza de uma sonda na checagem dos primeiros acordes, dos primeiros sinais do que lhe desconcerta os ânimos. Vacilante a estudar o território, Petra alimenta o intento de fazer parar a espiral de assalto, já o dissemos, quem sabe se esmerilhando o seu código-matriz, desvendar-lhe a célula-tronco, separar do trigo o capim-navalha, evitando o uso desmesurado de insumos tóxicos para não saturar a composição orgânica de seu objeto. Será ela consegue o intento de descortinar a caudalosa cadeia causal na gesta dos fatos corrompidos a este agora a que se vê engatada?
Petra Costa anuncia a avalancha dos fantasmas, o paiol em chamas, o rastilho de pólvora a um corre de manada. Petra talvez se pergunte pela valia dos esforços de notação, dos arranjos de cartografia se o que lhe rebate é a certeza de ser demasiado tarde para estancar o que insiste em não parar. É dos fantasmas o de que Petra trata. Por vezes, os imobiliza, noutras, voláteis, eles se lhe evolam de entre os dedos da mão, ela tonteia, as pernas acusam o trauma, Petra procura elaborá-lo. São suas as palavras:
Desde março de 2016 quando do julgamento de impeachment da presidenta Dilma, se está preso na espiral da vertigem. Desde março de 2016, a vertigem não para. É a crônica de uma tragédia anunciada [19].
Vez mais, os fantasmas, Petra os alimenta com seu interesse de escrutínio, como quem enfia o mais dentro que pode as mãos a um cesto de roupa suja – como para buscar os humores, o vestígio das regras em contraprova; é nos baixios que os espectros deixam marcas, todavia Petra Costa os percebe descarnados tais como as sombras que rondam as noites velozes do agora há pouco. Em profundo respeito aos esforços da realizadora, trouxemos estas notações que possam aportar algum subsídio crítico. Não temos a pretensão de ocupar os destaques comumente conferidos em protocolar cortesia aos que fornecem linha e agulha ao dissenso dos bordados. Petra deve saber da polifonia dos pontos de que se compõe uma mandala em patchwork. Por vezes, e é tanto o que já se disse, se virarmos o espelho noutra direção, que o feitiço se esvazia. Faremos os nossos esforços até que Petra Costa nos lances seus sinais de fogo. Quem sabe se do reverso do espelho se consiga furar os balões de gás que sobrelevam aos céus da conspiração sob a forma de monstros soturnos e sorrateiros?! Seria o caso dizer baixinho, como num sussurro de cumplicidade, eles, estes ‘monstros que te assaltam o susto, sempre estiveram aí. Bastava que se lhes desse linha e rabiola. Que se lhes deixasse preparar o cerol para enfrentamentos suburbanos.
Uma das pistas seria o escrutínio minucioso dos fatos históricos, de sua dinâmica forjada na luta de classes. É que ‘da’ atenção minuciosa ao processo histórico se teria elementos para recolocar no tempo e no espaço os espectros descarnados – a sala de espelhos há de revelar os segredos de alcova. Ainda que venha à superfície os esqueletos deixados ao armário. Sabemos que, a um primeiro olhar, a pele macerada causa espanto e pouca sinergia. Já à segunda hora da aparição, as gentes começam a tecer do barro as formas de acomodação. Ainda que eles sejam capazes de colocar a nu, e no centro do palco, o obsceno que todos desejam encerrar de sob as vestes da realeza [20]. Deixemos de lado os sussurros. Revelada as nossas intenções, sigamos.
Por ora, ao tempo prolongado da escrita, o que importa é pontuar o estado de artes em que havíamos deixado, há pouco, nossa realizadora. Ela estava às margens de uma caldeira na que a alta voltagem dos fornos e sua temperatura sobrelevada fazem comprimir o tempo. Signo sintoma das temporadas de urgências de quando se aprofunda o ciclo das crises do Capital. Em linguagem chula é quando se anuncia o pega pra capar. Petra busca retardar o descarrilo, porém se mostra vacilante e mareada. Onde que os espectros – talvez que prontos para repovoar o tempo com personagens e humores de que (nos) supúnhamos libertos. Mas como e quando? O que fora feito para que este expurgo se fizesse? Atormentada, Petra insiste na história de uma fratura. Fratura sistêmica – terminal e irreversível? Não ousaríamos a confirmação. Todavia nos perguntamos pelas resistências organizadas. Haveria de acrescentar ao tabuleiro das peças um repertório tático diverso, uma plataforma coordenada de movimentos e de enfrentamentos que tivessem claros os objetivos estratégicos e as disposições táticas. Algo que custa tempo a que se os prepare, que exige que se os construa como quando numa edificação que surge – a escolha do terreno, o rascunho em desenvolvimento do projeto, as inúmeras ações complementares ao exame dos impactos no perímetro, o cálculo de custos, o planejamento estratégico regular contínuo, e a engenharia dos eixos das fundações. Evitar-se-ia a retomada de territórios sem a mínima contraofensiva dos opostos. Haveria de se atuar avançando desde as bases. E ainda que a um refluxo, haveria de se desenvolver uma política de formação contínua de quadros para compreender as urgências do agora. Quede que isto e o porquê deste deserto abrumado? Será que podemos juntar ao baralho o minucioso trabalho de desmobilização popular, de cooptação de quadros, de aparelhamento de lideranças a que aludimos em diversas das notas a este ensaio? Sempre haverá a conveniência dos silêncios que trava e sabota a tarefa de aprofundar a autocrítica. Mesmo que à contramão disto, o que reste for a dispersão dos que não tomaram a si as lições acumuladas à história. Sem que se perceba, se estará a contribuir ao seu apagamento – ou seja, o esquecimento dos fatos, dos mártires, das místicas, o que, outro modo não é, do que se pôr a colaborar com os que preferem tomá-la a si, à fatualidade, desde a oficialidade dos relatos hegemônicos, ou desde o puro fatalismo catastrófico. Por vezes, é do cinismo o de que se trata, como quando se está aos sítios da ‘pragmática dos possíveis’ de estreito horizonte. Todavia, insistimos.
Petra Costa aponta a vertigem, a espiral na qual se estaria, e não parece que esteja povoada esta torrente espiralada, será que a vertigem de Petra tem fortes ressonâncias sociais, tem graves rebatimentos, ou será de um clube de afiliados os que se alinham para que ninguém tropece nos pés dos que não ensaiaram a quadra de São João? Quantos serão os que trafegam à indiferença dos autômatos? Desorganização e dispersão que, certamente, expressa o elevado padrão de informalidade que caracteriza o mercado de trabalho no Brasil. Isto um ponto. Entretanto, há aqueles que se prendem ao interior de falsas disjuntivas – democracia em abstrato ou ditadura; civilização ou barbárie; o Estado democrático de direito ou totalitarismo. Tudo como que tomado aos sobrevoos, numa viragem panorâmica da objetiva.
Por que não tomar a certos destes termos e decantá-los? Claro está que escolheríamos ao ‘objeto fetiche’ de Petra Costa, a democracia. Fosse o caso buscarmos situá-la aos debates do quando da chamada ‘reabertura política’ lenta, tolhida e comportada, poderíamos, contrapondo ao silogismo ‘militarismo + estatismo = autoritarismo’, buscar ver as razões do porquê se procurou sugerir ser o seu anverso radical, um outro silogismo: ‘civilismo + livre empresa = democracia’ [21]. É que vai se batendo tanto com o martelo na brita que os farelos acabam por fazer dos olhos morada. E vai se repetindo e repetindo que para além do estatismo há de haver o parnaso da livre iniciativa, da livre empresa, do tomar as rédeas de sua vida por cabrestos curtos e tocá-lo ao descampado sem os limites férreos da máquina estatal. Como contrapostos fica perfeito. Já se tem até mesmo uma consigna pela qual encampar um pleito. Todavia este que toma as rédeas a si deve, ao empunhar as flâmulas da liberdade, saber de seus limites e orientações. Evitar a libertinagem dos maus encontros e das organizações malfazejas. Do bom cidadão, a boa terra da democracia. Afinal virou-se a curva de uma estrada esburacada e cheia de percalços. Façamos um corte.
Nos propomos decantar os termos da falsa disjuntiva. Aqui e agora, se nos apresentou estes opostos. Ouçamos com atenção o que nos ensina estas palavras de Theotônio dos Santos:
A real democratização não pode ser confundida com uma ofensiva do grande capital contra a presença do Estado na economia. Sobretudo porque sabemos que os grandes monopólios patrocinam e intensificam essa presença sempre que ela é necessária para aumentar os seus lucros, dando origem a uma fase histórica que chamamos de capitalismo monopolista de Estado. Na realidade, eles só se voltam contra a intervenção estatal quando esta beneficia os assalariados e as camadas populares em geral [22].
Repovoar os conceitos abstratos é encarná-los da matéria viscosa que se arranca ao solo turbulento da luta de classes. Apurar os ouvidos da atenção é escutar os timbres distintos do que estava posto aos combates. O teórico nos indicou um caminho. O de que o Estado e o capital não caminham por percursos inteiramente outros. Tampouco que a liberdade possa ser associada a liberdade de mercado e a livre iniciativa sob o primado da propriedade privada. Em certo momento, o teórico acrescentará outra pista, a de que o autoritarismo a ser combatido é aquele que se empareda no grande capital monopólico, no modelo de desenvolvimento econômico concentrado nos oligopólios locais e/ou internacionais, e fundado sob os critérios da dependência periférica que é, intrinsicamente, subalternizada, marginalizada, e não democrática. Dirá ainda que a propriedade deve ser convertida em propriedade social e que o desenvolvimento deve ser voltado para atender as necessidades estratégicas do povo. Ao final desta equação, Theotônio cunha um nome: democracia popular. Não nos parece que estávamos a este ponto. Não nos parece que, ainda há pouco, estivéssemos aos trabalhos de sua realização. Teria sido preciso avanços que foram soterrados para que não houvesse avanços, mudanças de rumo, recomposições mais além de um cenário de pactos no interior da ordem. De forma inadvertida, imaginamos que Petra Costa não se proponha esta pergunta, a do porquê que não avançamos, seria preciso tomar do inventário de longa duração o esmerilho de filigranas e nuances de não pouca monta [23]. Talvez Petra saiba de algo. Talvez que não. Talvez tenha preferido evitar os burburinhos. Talvez que não lhe tenha havido ocasião para tal. Todavia falte que ela disponibilize, entre os cálculos de seu pente fino de intérprete devotada, os segredos de coxia que sugerem que não é de agora que se avançava insolvente na direção a que Petra alude ser a da vertigem, sua expressão nua e crua. Derradeira derrapagem que precipita e encurta o horizonte da política e seus personagens de costume? Suspendemos o juízo certeiro.
Petra Costa faz o anúncio da fratura. Preferimos não condenar de pronto o organismo ao laudo que prefigura o óbito para daqui a pouco, a condição moribunda. Os convivas dividem o salão de festas e os jogos de azar dão a graça do ambiente. Diz-se desta condição de jogo que os dados correm ao carpete das mesas por um gesto de mão. Mister que se tome as digitais ao olhar abalizado do legista. Talvez que ele diga outra palavra acerca da fratura. Talvez que ele divise às turbulências o desenlace de conjuntura e a correlações de força. Firmaríamos um acordo com ele. Talvez que ele ateste o esgarçamento tensionado de contrastes ao largo arco no que vergam as ‘segmentaridades’ de um regime de dominação – outra vez afirmamos a equivalência de nossa mirada, porém que este exame rigoroso na certa que continuará em aberto. Vá se saber se do tensionamento do arco se lhe esticará até a ruptura das extremidades, o que seria como o anúncio do desfazimento, o corte e a queda e o abismo sem fundo, e sem volta. Paulo Arantes nos apontou o fim de uma era. Não apostamos que seja a hora de prospectivar. Todavia uma fratura, a nossa cineasta insiste haver, temos acordo – Petra Costa se dedica a representá-la, seguimos atentos os passos de sua câmera e letra. Interessa-nos a dimensão do corte, esticar o pergaminho, percorrer o roteiro dos escribas, evitar o uso abusivo da lanterna mágica – que acende e apaga quando das conveniências ao que se evoca.
3
Petra Costa se faz enfática, sobrecarrega nas tintas, não poupa os aflitos pela carga do que busca descrever. Petra é peremptória no que anuncia a fenda na qual é o fim o que principia. Ocaso de um mundo, encerro de um tempo, ou talvez que seja, tão somente – e que não é pouco, o futuro suspenso da ilusão inconclusa. Por vezes, parece que é isto o que Petra quase afirma no que se nos apresenta aturdida. Aqui é dela as palavras:
Como lidar com a vertigem de ser lançado em um futuro que parece tão sombrio quanto nosso passado mais obscuro? O que fazer quando a máscara da civilidade cai e o que se revela é uma imagem ainda mais assustadora de nós mesmos? De onde tirar forças para caminhar de entre as ruínas e começar de novo? [24].
Espécie de tela urdida pela evocação do trágico – o futuro descarrilado a povoar-se dos fantasmas recalcados. Mas o que queria a nossa diretora – que o presente se fizesse ubíquo sob o painel de classes conciliadas até que da promessa espargisse vasta cria em larga estirpe; que o presente do casório forjado à performance do marketing e das campanhas publicitárias esticasse ao infinito a ilusão do ouropel; que ele se alargasse até que se esgotasse o fôlego dos placebos pelo prazo vencido das iniciativas? Seria desta mágica de prestidigitação o de que é feito o desejo de Petra? Será que não era de há muito que se estava às urgências do agora? Será que seu anúncio não se fazia às esquinas do tempo presente? Até quando a ilusão semeada a destacar da temporalidade histórica, em letras garrafais, o recorte epocal de um presente cindido, vitimado e inscrito entre dois fogos inimigos, o passado fantasmal e o futuro vertiginoso? Como se fora de fatias estanques de tempo, carregados de suas lógicas endêmicas cada qual, a tomar de assalto o conforto de Pasárgada. Petra é indulgente no que descreve suas benfeitorias futuras e ansiadas, a prefigurada celebração da novidade que se inscreve no tempo [25]. Este o tempo matizado, o presente de que se gora o desmonte. Espécie de presente-insular como pedaço de terra despregada do continente no que habita a fúria dos bastardos inglórios da incivilidade. Presente frágil, sob o abuso de intempéries inauditas.
Petra Costa não assina de todo a este diagnóstico alegórico, mas parece discreta na juntura das partes a ser lida desde as contradições, os equívocos de primeira hora, as guinadas de rumo [26]. Para quando o retomar dos programas deixados à míngua? Para quando o tomar de outros senderos portando consigo demasiada atenção aos acúmulos do que se tocou experimentar? Para quando o religar de princípios de ação e conduta? Para quando o reinscrever-se lá onde pululam as demandas das bases deixadas ao abandono e ao trabalho dos chacais e mascates de hora? Todavia, agora é tarde.
Petra Costa se forja à condição do arauto no que experimenta ver, e de pronto, ao contar o de que vê, ela testemunha. Não o relato distante, isento, incólume, descarnado. É do desequilíbrio o de que trata a matéria móvel de seu testemunho. Porque Petra não mira de revés aquilo de que toma a seu exame. Ela se põe ao centro, de entre os sacolejos da tormenta, em simulação de repouso. Petra não se enche de cuidados pré cirúrgicos até que a tenda de seu set lhe ajeite o azul metafísico tecido em paleta de cores. Não nos dispõe a sua voz de narradora de um lugar despregado da história descrita pelo documentário que realiza. Petra não arremessa juízos definitivos para conforto de terceiros. Na representação de fragmentos da história política recente do Brasil, Petra Costa não ousa a onisciência de se sobrepor à gravitação dos fatos a que submete à tecitura expositiva e analítica. Petra se confunde e se imiscui à meada do cenário político no que costura sua estratégia narrativa. São pedaços de sua vida que ela reconhece indistintos e pavimentados por este vir a ser coletivo e social. Claro está que por este dispositivo escolhido pela documentarista, Petra configura certo pacto de confiança e intimidade para com os elos de sentido que ela irá aferindo no que constrói sua leitura da trama parlamentar, a cascata de cartas despencando no que avançam as etapas do processo, e é deste lugar revolto que ela conta a destituição da presidenta, a prisão do ex-presidente, a espiral da vertigem e se descreve, imersa emersa, sob os riscos de afundar aos efeitos do eixo gravitacional do que escolheu contar por meio de seu testemunho [27]. Ela distribui desassossego em gestos pouco litúrgicos e cerimoniosos. Petra Costa não se esconde à sombra de imperativos categóricos que sedimentem a profundidade de campo, que alimentem a sede por zonas de conforto. Petra não se agarra à superfície sólida de um tempo encerrado como quem investiga a substância primeira da que se desprega resina viscosa – e que se elimina claro está, for o caso a garantia de rigor do intérprete. Estaria a desativar os protocolos? Usar de luva, usar de máscara, usar de pinça, preencher de cabo a rabo os prontuários de evolução à beira do leito do paciente e esperar que o tempo assossegue o vozerio da turba, e então e só então, distanciar-se um palmo, palmo e meio, quilômetros de um espaço transfigurado em tempo, um lustro, dois, três, uma dezena deles, a poeira baixada num horizonte de fatos – não é a esta zona isenta de intempérie que Petra Costa depositará os seus pés de barro. É desde a instabilidade e em direção a esta, a matéria móvel que se burila.
Petra Costa se lambuza da história que busca contar. Resgata as imagens da infância em Super 8, elenca um conjunto de datas, efemérides como alfinetes destacados à parede nas quadras do calendário; ela sugere ritos de passagem, mitos de formação, recorta enunciados, se utiliza de chamadas de telejornais, Petra promove a gira dos fatos, acelera-desacelera processos, retarda-refuga sínteses, corta cola edita, avança for o caso o enfático, vez por outra ‘tintoreia’ a manipulação das trilhas ao melodrama, e para e corta e avança e recua casas atrás, uma vez mais para frente e volta, e de novo até que surgem as imagens da intimidade, a festa em família – o princípio de tudo: Petra é criança, ensaia os primeiros passos como se desafiasse a queda, e corta; agora o rosto tem a tinta da hora, ela está crescendo sob um verde de mata e bandeira, o amarelo judicante dos que reivindicam e rechaçam, Petra Costa esticou uns anos, Petra parece ter olhos ávidos de ver, e corta; pela janela do ecrã os anos saltam obstáculos partituras e contradições, Petra agora dança metade ciranda, outra metade uma valsa vienense como se na certeza última de que as duas pontas do cadarço solto, quando juntadas, eis que nos seria o salto qualitativo da terra prometida, e ela está à farra da eleição vencida, indistinta e imiscuída à manifestação de rua – como se a festa fosse a assinatura do mundo.
Petra Costa se escala compartícipe do regime histórico, ela negocia os fatos à primeira pessoa, sua idade parece contada no que descreve a história de um processo político. Ou mais do que isso, ela se diz atravessada – catapulta ou cadafalso, pelos fenômenos de que se compõe o tempo que lhe toca viver. Petra Costa embaralha as cartas do tabuleiro político materializando-o ao modo de uma teleobjetiva que aproxima, e aproxima, e aproxima até que o faz descambar do vértice à vertigem por uma espécie de hiper-realismo no que a matéria do real se desfoca, se desfigura e embaça, e no que ressurge ao quadro o bloco de imagens; eis que a trucagem como que age aproximando os distantes à incongruência – superpondo, por vezes, tantas vezes, fatos contextos personagens, repertório de gestos arrancados da hora e dispostos em figurino e textura diversa sob o corpo envelhecido do intérprete – autor artífice realizador, sacando de ali desenvolturas e enredos, estreitando caminhos bifurcados, talvez que a ponto de se deixar atropelada na zona turva de seu objeto de pesquisa, todavia ela documenta.
São palavras de Petra:
Eu e a democracia brasileira temos quase que a mesma idade. Eu achava que nos nossos trinta e poucos anos estaríamos pisando em terra firme. (…) Hoje enquanto sinto o chão se abrir embaixo dos meus pés, temo que a nossa democracia tenha sido apenas um sonho efêmero [28].
4
Petra Costa conta que a gênese de seu documentário Democracia em Vertigem remonta aos inícios do ano de 2016 com a condução coercitiva do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva pelos agentes da Polícia Federal e com as primeiras manifestações ‘pró-impeachment’ da presidenta Dilma Rousseff. Petra Costa começa por captar imagens e depoimentos destes eventos para buscar compreender o que estava ocorrendo, como se organizavam e quais os atores políticos que iam despontando em um cenário que se polarizava a toque de caixa. Em uma entrevista realizada em 31 de agosto de 2020, a documentarista afirma que pode perceber a forte presença de elementos militares, da polícia e das forças armadas, ao carro de som, tomando da palavra em incitação à violência física contra toda e qualquer oposição, buscando fazer coro com palavras de ordem contra o regime político e seus representantes parlamentares. Ela registra a tentativa de linchamento de um jovem vestido com a camisa vermelha do Partido dos Trabalhadores. Ao entrevistar uma das manifestantes bastante exaltada, Petra quer saber o que justificava aquele gesto multitudinário, ao que escutará, em resposta, que era preciso se livrar da oposição, se livrar dos vermelhos, se livrar do comunismo. Petra se pergunta o que estava por detrás de enunciados como este, agindo subliminarmente, tecendo os pontos soltos que num crescendo avançavam no que ela compreende ser a fratura do tecido social brasileiro. Esta uma das hélices-vetores que inauguraria os trabalhos de Democracia em Vertigem.
Mas não apenas a estes indicativos de tensionamento coletivo e social se pode descrever a gênese de seu filme, Petra aponta o comezinho particular como um dos gatilhos disparadores, como quando, em um perfil de rede social, uma prima publica uma postagem de apoio a Jair Bolsonaro à corrida presidencial para dois anos depois – num ainda distante 2018, algo que se lhe tocou à vontade de destrinchar os ‘pontos cegos’ que lhe aturdiam e Petra Costa dirá ter começado a enxergar algo bastante mais profundo e enraizado. Como se não fora desde agora, e de forma espontânea e casual que emergisse tais humores que se lançavam, em choque frontal, contra o cenáculo político institucional, e ainda, que tal mover de peças não se voltassem, gratuito e intempestivo, na direção de uma personagem caricata que iria sendo catapultada à condição de protagonista.
Nos termos de Petra:
Lembro que quando eu vi isto, eu sabia superficialmente sobre Bolsonaro, eu comecei a pesquisar mais, e vi vários vídeos dele, e fiquei com desejo de ‘entrar nesse câncer’, de entender de onde essa doença psíquica estava vindo, e aí em seguida, filmei a manifestação e vi que o buraco era mais embaixo, que essa doença estava já bastante alastrada [29].
Algo que ia se plasmando e consolidando por meio de manifestações como aquelas que tinham ampla repercussão e celebração nos principais veículos de comunicação do país, um substrato social que lhe permitisse avançar. Espécie de guerra de baixa intensidade permeada por um turbilhão de reportagens que deslegitimavam os meandros do jogo político parlamentar através de um contínuo e regular ataque mediático numa rede de investidas que traziam consigo outros sujeitos políticos-institucionais, desde a Corte Suprema de Justiça, Tribunais Regionais, Juizados de Primeira Instância, aos agentes do Ministério Público e da Polícia Federal, e cada uma das Casas Parlamentares. No espetáculo das cartas marcadas e jogadas sobre a mesa, ao pretexto de palavras-chave como a da corrupção, se multiplicavam os rebatimentos na conformação da chamada opinião pública regulada em direção a um quase-consenso, efeito-reflexo das ações do dispositivo de propaganda full time – seja na forma de prévios juízos sacados às tribunas do ‘conglomerado oligopólico’ da comunicação em performáticas atuações de seus âncoras e celebridades; seja por meio da pressurização das agendas e dos tempos de tramitações específicas das instituições envolvidas.
Evocando este contexto, Petra Costa afirma que, sob as palavras de ordem a favor do impedimento do mandato da presidenta petista, os principais pontos de pauta das referidas manifestações de uma direita que voltava às ruas, eram a ruptura institucional por meio de um golpe militar, a judicialização da política e o fechamento do Congresso Nacional. Eis a espiral vertiginosa na que se aprumava o ovo da serpente bolsonarista em direção a um Estado policial em que a política é rechaçada [30]. Petra Costa resolveu seguir, com diminuta equipe, para Brasília e debruçar-se sobre os meandros do impeachment. No que, a princípio seria uma estadia de semana, converteu-se na permanência obstinada durante ano e meio filmando todo o processo, todas as comissões, ao Congresso, ao Senado, sem deixar perder as cenas de rua no avanço das programáticas manifestações da extrema direita que ia ocupando as ruas. Sem que o afirme à esta entrevista, ela parece ter visto àquele processo um duplo do que ocorrera ao governo da Unidade Popular no Chile de Salvador Allende, entre 1970 e 1973. O filme de Patrício Guzmán, A Batalha do Chile, assistido pouco tempo antes de se lançar aos trabalhos de desenvolvimento de projeto e captura das primeiras imagens, a tocara a fundo.
Petra Costa conta que ao final do clássico de Guzmán chegou a pensar que gostaria de ter realizado aquele filme, que o teria assinado com gosto. Nas entrevistas que tivemos acesso, Petra não conta em minúcias o porquê. Parece suficientemente vaga e talvez mesmo aleatória a sua declaração. Como quando afirma que no filme de Guzmán o personagem era o país retratado, o Chile de Allende. Democracia em Vertigem seria o mapa afetivo do Brasil de Petra? Seria forçado afirmar tal coisa? Preferimos arriscar motes e sentidos diversos, como quem fabula outras razões do forte impacto causado pelo filme de Patrício Guzmán sobre Petra Costa. Talvez que pela forma de estruturar a narrativa, elencando os fatos em detido transcurso cronológico semi-linear [31] – ainda que na construção em montagem das partes, Guzmán tenha optado por dispor os registros acerca do Poder Popular após ter se dobrado sobre os eventos que seguem desde as diversas operações de sabotagem insurrecional da burguesia chilena até a culminação à etapa do Golpe de Estado [32]. Petra não diz. Ou talvez por Guzmán se colocar suficientemente próximo do objeto histórico relatado, captando em direto imagem e som, acercando-se dos personagens, destilando às contradições esgarçadas ao processo dos três anos do governo da Unidade Popular, sua vulnerabilidade aos ataques inimigos. Petra Costa não precisa o ponto de juntura afetiva. Mas Petra não deixará de destacar o quão Guzmán se pôs perto, temporalmente perto, dentro da carrada de tempo a que se voltava sua objetiva, ainda que não sob os mesmos modos narrativos com que Petra buscou operar em seu Democracia em Vertigem [33]. Ao menos aí, temos uma pista avançada em depoimento de Petra Costa.
Todavia, optamos por conjecturar motes não revelados, e arriscamos um palpite: quem sabe se a documentarista brasileira estivesse mirando a espiral vertiginosa em que se encontrava e, como que por um traço em paralelo, se lhe tenha tocado espécie de signo comum entre instantes históricos distintos e distantes no tempo. Mas que a despeito da incongruência conjuntural, Petra tenha escolhido perceber semelhanças no grau de polarização em que se encontravam dispostos os atores e cenários políticos. Talvez Petra Costa tenha visto aqui e lá os confrontos de classe com seus interesses distintos e irreconciliáveis. Todavia desconfiamos se Petra tenha de fato percebido esta equivalência. Talvez tenha percebido pelo filme de Patrício Guzmán o árduo trabalho de avançar um projeto revolucionário no interior da ordem democrática burguesa, com todas as ferramentas institucionais contra insurgentes de que tal ordem (e seus paramentos institucionais ou infra-institucionais) dispõe. Com seu estado de guerra preventivo permanente. Nos amargos meses do ano de 1973, em meio ao avanço das diversas formas de sabotagem – parlamentária, jurídica, empresarial, sob intenso boicote de desabastecimento de produtos básicos da canastra alimentar, assim como com a paralisação de um das principais minas de cobre – principal produto de exportação chileno afim de afetar diretamente na capacidade de alavancar as suas estratégias de reerguimento econômico, Salvador Allende convocava, em um comício, a união de todos os setores de esquerda a que participassem massivamente da defesa do governo revolucionário da Unidade Popular em seu programa de transição ao socialismo. Estava-se sob um crescente número de atentados terroristas de organismos de extrema direita como Patria y Libertad, além de levantes de setores militares que buscaram bombardear o palácio do governo ainda ao dia 29 de junho. Allende convocava a que os trabalhadores se unissem nos Cordões Industriais, nas Juntas de Abastecimento Popular, no Movimento Patriótico de Recuperação que agrupava aos trabalhadores de transporte afinados com o governo nacional, em torno de um programa democrático-popular. Allende denunciava o uso das leis pela oposição para impedir as medidas tomadas pelo governo afim de garantir o interesse do povo. Guzmán registra tudo. Petra Costa talvez tenha visto semelhanças. Aqui, a certa hora do seu filme, Petra Costa se enfurnará de entre a multidão que ocupa a sede dos Sindicatos dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo [34].
Era um montão de gente como se fora um mar revolto e atormentado. A torrente dos fatos sobrelevara o espírito da turba a ponto de que nada parecia que a deteria fosse o caso um comando, fosse o caso uma direção. Daqui a pouco, àquele dia, a qualquer momento, os cabras amarelos da Polícia Federal chegariam com o seu mandado de busca. Sabemos, a massa das gentes sabe, como que à flor da pele, que quando chegam os soldados amarelos com os seus papéis timbrados de alguma repartição judiciária, eles vêm com jatos de sangue nos olhos. E tantos são os instantes redivivos e multiplicados dessa fúria assassina nos agentes da ordem pública que Moleques Ricardo, Fabianos, Donas Vitórias sabem o de que significa aquilo, o ‘para onde de aquilo tudo’; eles chegarão com suas bombas de efeito dispersivo, eles chegarão com os seus pés na porta, eles chegarão com suas balas de goma, eles chegarão com seus cães farejadores, eles chegarão com seus ‘caveirões’, com seus hinos de açoite e encerro, eles chegarão como sempre chegaram os homens do pelotão com sua sede de matar, com seu sexo de zinco, com seus gestos pequenos. E era tanto saber acumulado àquela hora, que à iminência da chegada dos soldados amarelos da Polícia Federal, a multidão entoava em coro: aqui tá o povo sem medo de lutar. Não se entrega, não se entrega! No centro do palco armado, à redoma do púlpito, Luís Inácio faz o seu discurso para esta massa que lhe grita, cúmplice, o seu ódio, a sua vontade de confrontar com os agentes do aparelho repressivo do Estado democrático burguês. Suado, os cabelos desgrenhados, o operador das ilusões conciliatórias faz o seu discurso:
Nós agora estamos num trabalho delicado, eles decretaram a minha prisão. E deixa eu contar uma coisa para vocês: vou atender o mandado deles. E vou atender porque eu quero fazer a transferência de responsabilidade. Eles acham que tudo o que acontece nesse país acontece por minha causa. Se eu não acreditasse na Justiça, eu não tinha feito um partido político, eu tinha proposto uma revolução nesse país. Mas eu acredito na Justiça, numa Justiça justa, numa Justiça que vota um processo baseado nos autos do processo.
Se pode ouvir da banda sonora do filme de Petra Costa, o eco do desconsolo, uma quase vaia misturada a um não coletivo que nos parece cortar a carne. Todavia, agora é tarde [37].
Desconfiamos que esta tardança é de há muito. Desconfiamos que este elevado da hora, que essa desilusão encarnada àquele coro dos que insistiam a Luís Inácio que ele não se entregasse, traz no seu bojo um cansaço de décadas. Faz lembrar as questões sinceras que gostaríamos que Florestan Fernandes estivesse ainda aqui, de entre nós, para auxiliar-nos a respondê-las. Todavia, agora é tarde. E sempre nos será tarde quando seguimos por caminhos incongruentes. Quando se se agarra aos profetas convertidos. Quando se se acostuma ao depositar da fé em todo e qualquer manipanso.
Nos perguntamos se Petra continuaria a tecer comparações entre o caso chileno e este nosso vermelho amargo amarelo manga [38]. Talvez que sim. Petra Costa é dada a mergulhar o corpo, a misturar os relatos pessoais com os relatos da história política coletiva e nacional. Para isto, já o dissemos, ela usa e abusa das lentes específicas que impõe a aproximação como regime de imagens e recurso narrativo. Desde uma teleobjetiva, a diminuta profundidade de campo tende a fazer perder os detalhes do pontilhado, a desfazer nuances das cores policromáticas, a fazer desmarcar as diferenças dos processos, dos pedaços de história e dos sujeitos políticos, por efeito da aproximação de foco.
Notas:
1 – Tal como afirma Francisco de Oliveira: “As políticas assistencialistas, que são em verdade políticas de funcionalização da pobreza, são a contraparte desse movimento de verdadeira liquidação da classe em curso no desenvolvimento brasileiro”. IN: A Era da Indeterminação (2007: p.279). E destaque-se que tais políticas ‘compensatórias’ se inscrevem numa conjuntura de profunda transformação no processo de produção capitalista no sistema-mundo com rebatimento direto nas tensionadas relações entre capital e trabalho a este estágio do regime de acumulação. Outro ponto a evocar, mas absolutamente à esteira deste avanço na axiomática das relações capitalistas de produção com sua financeirização crescente, é destacar a condição periférica de nossa economia cuja desindustrialização data de largo prazo. Das razões estruturais desta condição, Cf. Boletim Nota Técnica: Desindustrialização: conceito e a situação do Brasil. DIEESE: Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Número 100 – Junho de 2011 Link: https://www.dieese.org.br/notatecnica/2011/notaTec100Desindustrializacao.pdf. Uma vez posta esta questão, sigamos com a crítica encetada por Francisco de Oliveira: “As classes sociais retrocedem: sobretudo, a classe trabalhadora se redesenha em razão das transformações dos processos de trabalho, das relações laborais e, de um modo mais geral, das relações sociais de produção capitalistas (…). Assim, o novo populismo, ou o real populismo, é a exclusão das classes da política” (Idem, p.281).
2 – Como afirma Tales Ab’Sáber em seu artigo Crise e alucinose: anticomunismo do nada, publicado no dossiê Estruturas da Crise Política. Revista Cult. N.206, Outubro de 2015, vejamos este trecho: “Este discurso particular, muito acentuado nas manifestações das ruas, de que o governo petista é comunista, estalinista, de que os petistas, além de ladrões consumados – ‘petralhas’ diz o mau jornalista animador desse público – e um câncer no Brasil, transformaram o Brasil na Venezuela, é a consumação algo delirante, a realização simbólica plena atual, da tradicional posição autoritária à direita brasileira” (p.52)
Um registro documental desta alucinose foi gerado pela produtora independente 202 Filmes ainda no quando das manifestações da extrema direita do Rio de Janeiro nos dias 15 de março e 12 de abril de 2015. Nelas se percebe a defesa de uma intervenção militar em defesa da ‘democracia’, da ‘liberdade’, de um país ‘livre da iminência da invasão comunista’, a vontade expressa de higienizar o corpo social brasileiro. Estava-se ao epicentro da furibunda revolta dos privilegiados sob o movimento intitulado Vem Pra Rua: https://www.youtube.com/watch?v=ys_3NiLdpwk&ab_channel=202Filmes
3 – Destaquemos os argumentos de Celso Rocha de Barros em seu artigo intitulado Bolsonaro representa facção das Forças Armadas que ganhou poder com a tortura, na Folha de São Paulo, no dia 22 de outubro de 2018: “Jair Bolsonaro não representa o regime de 64. Representa sua dissidência extremista que se revoltou contra a abertura de Geisel. O ídolo de Bolsonaro não é o moderado Castelo Branco, que provavelmente gostaria mesmo de ter restaurado a democracia. Não é o Geisel, que matou gente, mas deu início à restauração. Não é nem, vejam só, o Médici. O ídolo de Bolsonaro, o autor de seu livro de cabeceira (segundo ele mesmo disse no Programa Roda Viva), a entidade a quem Bolsonaro consagrou o impeachment é o torturador Brilhante Ustra. O culto a Ustra é lepra moral, mas não é só isso: é uma reivindicação de linhagem”. Link: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/celso-rocha-de-barros/2018/10/bolsonaro-representa-faccao-das-forcas-armadas-que-ganhou-poder-com-a-tortura.shtml
4 – Cf. Aproximações Sucessivas: o avanço do golpe militar. 1 de março de 2018. Link: https://www.causaoperaria.org.br/acervo/blog/2018/03/01/aproximacoes-sucessivas-o-avanco-do-golpe-militar/#.X2-mtmhKjIU
5 – O economista argentino Cláudio Katz, fazendo uso da ferramenta analítica da Teoria Marxista da Dependência, tece vigorosa crítica acerca das fragilidades e contradições das chamadas políticas neodesenvolvimentistas durante os anos dos governos progressistas em América Latina, afirma:“Os capitalistas recebem com prazer os subsídios do Estado, mas contestam a propriedade pública. Consideram-se mais poderosos e menos necessitados dos auxílios proporcionados pelas empresas estatais. Usufruem do gasto público, mas desconfiam do Estado empresário. Esta mudança ilustra a passagem da velha burguesia nacional à nova burguesia local. Os grupos que priorizavam o mercado interno, as barreiras alfandegárias e o investimento público foram substituídos por setores mais voltados para a exportação. Forjam empresas ‘multilatinas’ com sócios internacionais e promovem condutas políticas mais conservadoras. Techint e Odebrecht retratam esta nova modalidade de intervenção, enlaçada com empresas transnacionais e, também, guiada por uma gestão globalizada dos negócios” IN: Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo. São Paulo: Expressão Popular, 2016 (pp.214-215) Grifo nosso.
6 – Segundo o Boletim de Análise Técnica do DIEESE de junho de 2011, a diminuição do peso da indústria no processo de produção e geração de empregos se faz particularmente danoso em países de economia capitalista periférica que, diferentemente dos países centrais nos que se encontram as sedes de grandes empresas industriais multinacionais, com um parque industrial diversificado, uma população altamente escolarizada, e forte produção tecnológica, aqui, encontramos uma economia centrada no setor de serviços sendo que a maior parte dos empregos gerados por este setor é mal remunerado. Outro mais, a dependência da exportação de commodities agrícolas e minerais, cujo preço é definido fora do mercado nacional, é suficientemente precária e instável. Sobretudo se acompanhada de uma política cambial fundada em altas taxas de juros, que se por um lado, valoriza artificialmente a moeda nacional em relação a outras moedas num fenômeno econômico conhecido como ‘doença holandesa’, acaba por encarecer as exportações e baratear as importações. Nos termos do Boletim: “Juros e commodities seriam, então, os primeiros responsáveis pela perda de competitividade da indústria de transformação. Um caminho provável para superar este problema seria por meio de ganhos de produtividade, em outras palavras, o que se perde no câmbio deve ser compensado pelo aumento de eficiência a partir da redução dos custos de produção e melhoria de qualidade dos produtos fabricados” (p.7). Grifo nosso.
7 – Vejamos com atenção este parágrafo do artigo Contornos do pós-lulismo escrito pelo professor do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo, Ruy Braga: “Ademais, o projeto de governo petista soube combinar concretamente os interesses da burocracia sindical, das lideranças dos movimentos sociais e dos setores médios intelectualizados, criando as bases para um consentimento ativo ao lulismo cujo locus é o aparelho de Estado. Além da absorção de milhares de sindicalistas às funções de assessoria parlamentar, cargos em ministérios e chefias de empresas estatais, parte da burocracia sindical ascendeu a posições estratégicas nos conselhos dos grandes fundos de pensão das estatais administrados como fundos de investimentos, assumindo, em acréscimo, posições nos conselhos gestores do BNDES, do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal. Assim, o sindicalismo lulista transformou-se não apenas em um ativo administrador do Estado burguês, mas em um ator-chave da arbitragem do próprio investimento capitalista no país. Por meio da ocupação de postos nos conselhos dos fundos de pensão e dos bancos públicos, a alta burocracia sindical ‘financeirizou-se’, isto é, fundiu seus interesses de camada social privilegiada ao ciclo de acumulação do capital financeiro. Desta forma, o petismo militante nas greves e nos movimentos sociais dos anos 1980 e parte dos anos 1990, afastou-se de suas origens, tornando-se um sócio menor do bloco do poder capitalista no Brasil” (pp.47-48).IN: Revista Cult. Dossiê Estruturas da Crise Política. N.206, outubro de 2015 (Grifo nosso).
8- Retomemos aos argumentos de Claudio Katz acerca da neutralização desmobilizadora das massas trabalhadoras através das ações de governo do petismo. Nas palavras de Katz: “Durante a última década no Brasil, o PT decepcionou aqueles que esperavam um governo com afinidades com os assalariados. O peso desta organização expressou a influência alcançada por um proletariado forte e concentrado, mas com pouca experiência e capacidade para se contrapor à assimilação ao sistema burguês, imposto pelo lulismo. O PT ficou integrado à estrutura das classes dominantes e garantiu a continuidade sem imprevistos, o que caracteriza o regime político desse país. Esse aval conservador multiplicou a despolitização, generalizou o consenso passivo e modificou a base social do governo. Os setores populares das regiões empobrecidas substituem a classe trabalhadora, a classe média e a intelectualidade na sustentação da atual administração. Essa política gera incontáveis contradições, mas não é neutra. É uma orientação a serviço do capital com alguns traços de tímido reformismo. (…). No entanto em 2013, foi surpreendida com a eclosão nas ruas de jovens indignados que impuseram suas demandas (…). A nova onda de manifestações que sacudiu o Brasil é um fato corriqueiro na Argentina” (p.55-56).
9 – Livre referência aos personagens protagonistas do romance de Graciliano Ramos, Vidas Secas (1938). Fotografia de João Roberto Ripper: Imagens Humanas.
10 – Livre referência ao personagem central do romance homônimo de José Lins do Rego publicado no ano de 1935. Fotografia de João Roberto Ripper: Imagens Humanas.
11 – Cf. o documentário Brasília – contradições de uma cidade nova (Joaquim Pedro de Andrade, 1967). Extraímos do documental um trecho do depoimento de uma das trabalhadoras cuja família se deslocou do Nordeste brasileiro para trabalhar na construção da Capital Federal e que com a finalização das obras, e a diminuição das vagas de emprego na construção civil, assim como com o encarecimento do perímetro urbano, teve que se deslocar para as zonas periféricas da cidade que sua família e seus companheiros levantaram do chão: “Porque teve pessoas que, das poucas coisas que elas tinham como pobres, eles chegarem aqui e meterem naqueles caminhões que se chamam de basculante, e quando eles chegavam aqui eles viravam o basculante, eu acho que até criança que tivesse dentro seria despejada, despejava tudo, era madeira com os móveis, era tudo, teve pessoas que ficaram com as suas coisas todas escangalhadas. Os nossos braços foi o que teve que derrubar esta mata, fizemos fogo, faziam fogueira aqui para conseguir armar os barracos, com pessoas aqui no relento em uma época fria, e morreram crianças aqui de frio e morreram adultos também”. Link: https://www.youtube.com/watch?v=zbSPytnX1ao&ab_channel=MarceloRodrigues
12 – Vejamos este parágrafo de Severo Salles em seu livro Lucha de Clases en Brasil (1960-2010): “Lula deu continuidade ao programa neoliberal de FHC, de forma matizada. Todavia, enquanto o seu programa social carro-chefe, o ‘bolsa família’, consumia 12 bilhões de reais, o serviço da dívida pública interna brasileira (que favorece tão somente aos maiores acionistas de tais títulos, o que se limita a uns 15 mil rentistas) empregou 250 bilhões de reais. Antes da crise de 2008, os dividendos em juros, juntamente com os rendimentos de múltiplas formas de capital fictício, sustentadas pela contínua supervalorização de nossa moeda, fizeram do país o paraíso de lucro dos rentistas. (…) Em 2011 e 2012, apesar das alterações nos vetores que mencionamos, persistiu tal situação. Os imensos lucros de que se apropriava o capital fictício, assim como sua supremacia e política o levam a insistir na manutenção de tal política. O país se desindustrializava e se ‘re-primarizam’ suas exportações há 20 anos. O Brasil se tornou o maior exportador mundial de carnes e o segundo maior exportador de cereais. Desta forma, a parte da indústria de transformação no produto interno bruto brasileiro retrocedeu 33% em 1980, a 14,6% em 2011. Os investimentos internos gravitavam no setor de serviços, construção civil, agropecuária e mineração” (p.124). Setores estes nos que estão concentrados a maioria absoluta das vagas de emprego criadas durante o período em que a propaganda petista apelidou como sendo a era do pleno emprego. Questão a saber é: qual a condição na que se operavam as relações entre capital e trabalho a estes empregos? Será se reproduzia em largas escalas, escalas essas as adequadas à recuperação da capacidade produtiva de que aconselhava o boletim técnico do DIEESE, e destaquemos a condição basilar da compressão dos custos gastos à produção?! Atentemos ao arguto parágrafo de Fábio Luís Barbosa dos Santos em seu livro Além do PT: a crise da esquerda brasileira em perspectiva latino-americana: “Ao contrário da mitologia em torno de uma ‘nova classe média’, estudos mostram que o que houve nos últimos anos foi uma ampliação da base da pirâmide social brasileira. De cada dez novos empregos gerados durante os anos 2000, nove pagavam menos de 1,5 salário-mínimo. Em 2014, quando se acentuavam os efeitos da desaceleração econômica, cerca de 97,5% do emprego criado situava-se nesta faixa de remuneração” (p.88).
13 – Outra vez, nos utilizaremos de um esclarecedor parágrafo de Fábio Luís Barbosa dos Santos: “A interpretação do campo filopetista é a de que o golpe [de Estado de 2016] foi necessário para implementar o projeto ‘da direita’ ora em curso. Segundo este enfoque, a derrota de Aécio Neves nas eleições presidenciais de 2014 deixou as elites sem alternativas para impor seu programa, além do golpe. (…) A principal função ideológica desta narrativa é relativizar – quando não ocultar – as continuidades em relação aos governos anteriores. Sua consequência programática é clara: ao sublinhar a ruptura e ‘absolutizar’ o governo Temer, a restauração da ordem petista desponta como horizonte político”. Um pouco mais a frente, Fábio arremata: “O PT é corresponsável pela situação que o tragou. Não é o único responsável, mas tampouco é uma vítima. E é corresponsável em todos os seus aspectos, inclusive por catapultar Michel Temer à vice-presidência, com Eduardo Cunha à tiracolo” (pp.19-20).
14 – Bill Nichols procurou catalogar uma tipologia de vozes e/ou estratégias e/ou dispositivos narrativos característicos da linguagem cinematográfica documental. Para um maior esclarecimento, sugerimos Cf. o livro Introdução ao documentário.Cap.VI.
15 – São palavras da diretora de Democracia em vertigem (2019): “Era triste ver o partido que elegemos na promessa de transformar o sistema, se embrenhando numa estrutura promíscua de financiamento de campanha, desenhado para tornar qualquer mudança impossível”. Sobre a nostalgia das origens do Partido dos Trabalhadores, o historiador Lincoln Secco empresta a ironia de seu depoimento: “O fato é que aquele partido de militantes sem eira nem beira simplesmente não existe mais. Há uma discussão sobre quando se deu o tournant, a viragem. Foi com a Carta ao Povo Brasileiro em 2002? Foi um processo. Hoje, quando ouço petistas falarem de volta às origens, lembro que essa nostalgia de um PT de lutas sempre existiu!”. IN: “Entrevista a Caros Amigos”. Edição especial: PT 35 anos para o bem e para o mal. Nº75, julho de 2015 (p.12).
16 – Vejamos mais este parágrafo de Fábio Luís Barbosa dos Santos: “O golpe não significa uma mudança de sentido na história brasileira, mas é uma aceleração no ritmo e no tempo das políticas prevalentes. Não há dúvidas de que o governo Temer é mais destrutivo do que o anterior. Mas suas propostas não traduzem uma inflexão em relação às políticas até então praticadas pelo Planalto: o congelamento dos gastos públicos por vinte anos radicaliza o ajuste fiscal cultivado pelas gestões petistas, assim como a perseguição popular se escora na lei antiterrorista aprovada por Dilma. Ninguém deu um ‘cavalo de pau’ na história” (p.21). Seguindo esta mesma inflexão analítica, tomemos este parágrafo esclarecedor de Ruy Braga em seu artigo intitulado Contornos do Pós-lulismo – todavia é importante destacar que o mencionado artigo é anterior ao golpe de Estado de 2016: “Na verdade, a atual crise brasileira apenas condensa as contradições classistas que se acumularam na última década. Diante do esgotamento do modelo de desenvolvimento lulista apoiado, sobretudo, na exploração do trabalho assalariado barato, o governo Dilma Rousseff decidiu atualizar o regime de acumulação priorizando a estratégia de espoliação social. O país está vivendo uma transição na qual o velho ainda não morreu, mas o novo não tem força para nascer”. Destacando que o artigo de Ruy Braga foi publicado em outubro de 2015, na Revista Cult, nº206, fazemos questão de sobressaltar em negrito esta parte final do parágrafo anterior: “Os contornos da era pós-lulista ainda não estão totalmente definidos. No entanto, algo parece claro: o momento atual anuncia o fim da relativa pacificação social que marcou a última década na história brasileira. Em síntese, entramos em uma nova era de luta de classes na qual o centro da vida social deslocou-se para os extremos do espectro político. Tempos interessantes nos aguardam” (p.49). (Grifo nosso)
17 – Eis outro ponto da crítica mordaz e atenta de Fabio Barbosa dos Santos: “Consumado o impeachment, quem esperava alguma autocrítica se frustrou. O hiato entre o discurso do golpe necessário e a prática partidária foi abissal: o PT se coligou com partidos da base golpista em cerca de 1.500 candidaturas à prefeito Brasil afora, inclusive com tucanos e com o DEM. Enquanto isso, seus candidatos evitavam falar no assunto, receando uma contaminação desfavorável ao interesse eleitoral. Foi este o caso do então prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, candidato à reeleição, que considerou a palavra ‘golpe’ um ‘pouco dura’” (p.22).
18 – Vejamos mais este parágrafo de Severo Salles: “Em 2006, foi reeleito por haver conquistado, em sua base de eleitores, aos mais pobres e um setor dos mais ricos, graças a sua imagem e a sua história de vida, ambas transfiguradas em mito; ou seja, um equívoco. Com o fenômeno do ‘lulismo’ – a confiança em um messias, uma expressão do imaginário social -, penso que grande parte dos votos neste candidato teve como aspecto a alienação da soberania. O próprio fato de haver aludido a um messias era sintoma da incipiente consciência política da maioria do povo brasileiro. Alguns analistas situam os votos de Lula, em 2006, como sendo um voto de classe. De fato, no segundo turno, foram as classes sociais menos privilegiadas os que votaram massivamente em Lula. Talvez se possa admitir tal interpretação de numa perspectiva elementar. Tal voto estaria mais próximo a um voto dos pobres. Foi um voto passivo como em 2002: não se reverberou no contexto de uma luta extraparlamentar e institucional ampla, disposta a pressionar fortemente o governo para que atendesse aos seus interesses” (pp.131-132). Exatamente a este ponto é que se coloca o traço argumentativo-analítico empreendido por Claudio Katz quando avalia os distintos avanços das demandas e pressões populares classistas nos governos do petismo e do Kirchnerismo no Brasil e na Argentina. Vejamos o que diz Katz: “Enquanto o lulismo acentuou a desmobilização durante sua gestão, a continuação da rebelião de 2001 obrigou o Kirchnerismo a governar com a atenção à reação dos oprimidos. Tal peculiar variante do peronismo se propôs inicialmente a restaurar o sistema político tradicional ameaçado pela sublevação popular. Porém recompôs o poder dos privilegiados, outorgando importantes concessões democráticas e sociais à maioria da população. Ao contrário de Lula – que operou num cenário de poucas reformas e sem nenhuma pressão da base – os Kirchner atuaram em uma tempestade. Reconstruíram um Estado colapsado, em contraste com um PT que manteve quase intacta a estrutura transferida por Cardoso. Esta diferença determinou também a aplicação de políticas econômicas distintas. Na Argentina, se ensaiou um esquema neodesenvolvimentista com crescente regulação estatal, para recompor um mercado interno devastado. No Brasil, a inicial continuação social-liberal foi gradualmente substituída por limitadas medidas de intervenção tendentes a se contrapor à erosão provocada pela ortodoxia monetarista. O kirchnerismo liderou um regime baseado na liderança presidencial, na arbitragem do Poder Executivo e na influência de organismos para-institucionais. Este modelo político informal retomou certas modalidades neopopulistas do peronismo clássico, em contraposição ao institucionalismo negociado que continuou imperando no Brasil. Por dois caminhos diferentes, o kirchnerismo e o lulismo têm buscado neutralizar o protagonismo dos sindicatos e da classe operária. Os dois governos pertencem à mesma espécie de centro-esquerda e têm recorrido à mesma retórica progressista. Os Kirchner retomaram o projeto de misturar o peronismo com a variante social-democrata antecipada pelo alfonsinismo, e Lula-Dilma transformaram o PT em um típico partido da ordem vigente” (pp.56-57).
19 – Tutaméia entrevista Petra Costa (31 de agosto de 2020): https://www.youtube.com/watch?v=Gzmj_VZOBYQ&t=2205s&ab_channel=TUTAM%C3%89IATV
20 – Como afirma o filósofo Paulo Arantes em uma conferência intitulada De 1964 a 2018: a que ponto chegamos?: “No Dezoito Brumário, Marx se empenhou em mostrar como é que uma Revolução Social produziu, teve um desfecho – por uma incapacidade de uma burguesia que não sabia se autogovernar porque ela era contra a Constituição de origem monarquista, termina entregando, deixando que um usurpador, um aventureiro “bonapartista” porque tinha uma base popular, o campesinato, que no fim da Revolução Francesa ocupa a base dos exércitos napoleônicos, é a sua base eleitoral. O que há pouco, em um livro célebre do André Singer, ele mostrou que a meta eleitoral do lulismo tinha alguma coisa a ver com esta intervenção bonapartista, um bonapartismo lulista. Ora, nós nos encontramos agora com o avesso deste bonapartismo lulista que se chama bolsonarismo. E nós não estamos sabendo lidar com isso, e isto foi previsto em um clássico. O que é antecipado pelo lado B do argumento do André Singer, que é um argumento muito interessante, que ele escreve sobre o que é o lulismo, o lado B é isto que se chama bolsonarismo. O realinhamento é este. Ora, começamos numa operação de envergadura e terminamos nesse homem bonapartista, nesse arrivista, nesse aventureiro, esse rebento dos porões da ditadura que vem e empalma tudo com cinquenta, sessenta milhões de votos. Esse é o nosso Dezoito Brumário sobre o qual nós temos que começar a pensar. E então, qual é a outra anomalia, a outra singularidade que nós estamos vivendo neste nosso Dezoito Brumário peculiar? Chegamos ao nosso Luís Napoleão. Temos de fato uma era histórica, uma era geológica de 1964 até agora, o que que tem de realmente espantoso? É que o candidato, chamemos de candidato, na eleição do próximo domingo, qual é o programa do candidato? Nenhum! Tem um programa essencial que ele diz em alto e bom som, é claro que nem todos os eleitores dele entendem, e isso é o que depois nós temos que começar a pesquisar, ele diz, em alto e bom som, que o programa é um só: ‘nós temos que completar a obra deixada inacabada da ditadura de 1964”. Veja: não somos nós que estamos fazendo esta comparação entre 1964 e 2018, é o candidato vencedor que irá ter ‘uma porrada’ de votos no domingo. Quando ele diz essas coisas horrorosas que não se deve nunca torturar sem matar, que nós matamos poucos e que nós deveríamos ter matado muito mais, 30 mil, seguir o modelo do que aconteceu na Argentina e no Chile, ele está dizendo isto: que a ditadura é um projeto inacabado. Ele está dizendo isto: Nós não fizemos o serviço bem-feito”.
Link: https://www.youtube.com/watch?v=9jFywZtqFEA&t=2742s&ab_channel=TVBoitempo
21 – Trazemos para o corpo de nossas imagens as análises de Theotônio dos Santos em seu livro O Caminho brasileiro para o socialismo (1985). Theotônio está escrevendo no calor das horas da chamada ‘redemocratização’ buscando esgarçar os sentidos comuns agarrados aos significantes. Theotônio busca afastar a trava que se vai emprestando ao povo pelas classes dominantes. Nos termos de Theotônio dos Santos: “O governo Médici, ao lado de repressivo, era também estatizante, abriu caminho para o acordo nuclear com a Alemanha, firmado por Geisel a contragosto, criou as bases de uma estrutura militar com aspirações de grandeza, lançou as redes de um relacionamento com o Terceiro Mundo que poderia ‘degenerar’ numa política de tipo ‘peruano’ e terceiro-mundista. Geisel foi obrigado a continuar muitos aspectos dessa política que encontra seu suporte em amplos setores militares. (…) Tudo isso mostra que a abertura tinha dois lados: atenuar as contradições internas geradas pelo modelo de desenvolvimento, ‘corrigindo’ seus excessos antissociais e afastar do poder os militares nacionalistas de direita que começavam a acreditar no ‘Brasil grande potência”. Não foi sem razão que se buscou identificar repentinamente ‘abertura liberal’ com ‘desestatização’. ‘Não pode haver liberdade política sem livre empresa’, foi assim que reagiu a imprensa conservadora liberal à candidatura do general Euler Bentes, acusando-o de estatizante e nacionalista sectário. É nesse diapasão que vem se pautando o processo de modernização política patrocinado pelo regime. Ele propõe a ‘liberalização’ controlada, segundo a qual o nosso povo deve converter-se em cidadãos bem-comportados que não aspirem mais do que a um certo grau de liberdade e onde as massas populares não devem aparecer com suas manifestações ‘brutais’ e ‘degradantes’ (p.31). (Grifo nosso).
22 – Theotônio dos Santos dirá neste mesmo texto: “Não será nunca um liberalismo baseado na ideia de cidadãos votantes bem-comportados que voltam para as suas casas depois das eleições, com o sentimento do dever cumprido, que atenderá aos anseios desse povo. Ele quer mais, quer uma efetiva democracia, um poder do povo e para o povo que seja sensível aos seus movimentos sociais, às suas greves, aos seus movimentos de rua, aos mecanismos de pressão que o povo dispõe, não só para eleger representantes, mas sobretudo para pressioná-los e obrigá-los a atender suas reivindicações. A democracia política, entendida como uma força participativa de governo e um Estado aberto e interventor a favor do trabalhador, é a condição necessária para chegar a uma efetiva democracia econômica à qual aspiram as grandes massas” (p.32).
23 – No seu texto de apresentação do livro de ensaios de Florestan Fernandes chamado Pensamento e ação: O PT e os rumos do socialismo, Paulo Henrique Martinez, professor do Departamento de História da UNESP, aponta a desilusão política de Florestan Fernandes com os rumos da inserção brasileira na economia globalizada aos anos 90. Nas suas palavras: “Na década de 1990, a incorporação do país aos novos ritmos da economia mundial e as trepidações sociais que a acompanharam abriram a arena política aos ‘advogados da moderação’. Sobretudo aos procedentes da esquerda que, como o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, versado na teoria política e na negociação entre cúpulas partidárias, e o sindicalista Lula, experimentado na prática dos enfrentamentos trabalhistas e ideológicos, terminaram por ocupar lugar de proa na República”. Paulo Martinez destaca a preocupação de Florestan Fernandes com esta capitulação “dos partidos de origem popular e operária nas rotinas políticas e institucionais da democracia. O quanto essa participação é responsável por efeitos inibidores na sua contestação radical da ordem social. (…) Nos termos de Florestan Fernandes, a ‘revolução contra a ordem’ vai perdendo impulso, ao passo que a ‘revolução dentro da ordem’ vai sendo modelada, em nome da manutenção dessa mesma ordem. A radicalização contestatória é tragada e as insatisfações populares são canalizadas para desfechos que em nada, ou muito pouco, atenderiam aos anseios propulsores da rejeição da exploração econômica e da subordinação política que provém dos mais baixos extratos sociais” (pp.17-18).
24 – Depoimento da diretora sob a forma de voz over. IN: Democracia em Vertigem (Direção e roteiro: Petra Costa, Brasil, 2019).
25 – No que se refere a eleição de Luís Inácio Lula da Silva, em 2002, Petra Costa afirma: “Eu tinha 19 anos quando Lula foi eleito e me lembro da alegria que não estava só em mim, ela tinha tomado conta das ruas”. Petra se utiliza de imagens de arquivo, a multidão nos parques próximos ao Palácio da Alvorada, e a voz over de Lula tendo ao fundo o atravessamento acústico da banda sonora: “Estamos começando hoje um novo capítulo da história. O dia do reencontro do Brasil consigo mesmo”. Mais à frente, no filme, está-se ao dia 31 de outubro de 2010, em meio aos fogos de artifício da vitória eleitoral de Dilma Rousseff, a valsa dançada na avenida, Petra e sua mãe encarnam em seus corpos os gestos ao baile da vitória. São palavras de Petra sob os modos da voz over: “Eu nasci num mundo que meus pais queriam transformar e estava me tornando adulta num mundo mais próximo do que nós sonhávamos. (…) Parecia uma mudança de símbolos, de possibilidades”. Sob a voz, na banda de imagem, está-se a praia deserta, o marulhar de ondas rasteiras, seu ir e vir, em alegoria à aludida renovação. Na blusa estampada da mãe de Petra a consigna: Give me democracy or give me death.
26 – Já destacamos tal parte, mas o faremos uma outra vez, para que se pontue com ênfase o constrangimento de nossa diretora: “Era triste ver o partido que elegemos na promessa de transformar o sistema, se embrenhando numa estrutura promíscua de financiamento de campanha, desenhado para tornar qualquer mudança impossível”. Mas voltemos mais atrás, sem pressa de conclusão, voltemos mais atrás com relação ao agora agorinha da decepção de Petra, voltemos aos princípios dos anos 1990, e tomemos o testemunho não de algum detrator, mas de um intelectual orgânico do partido, alguém que se decepcionara com os rumos da ‘Nova República’ e com os seus esforços constituintes à arena parlamentar (Florestan esteve a dois mandatos parlamentares). Florestan avista no horizonte curto curtíssimo daquele agora dos fins dos anos 80 e princípios dos anos 90, a guinada social-democrata do Partido dos Trabalhadores, e mais do que esta guinada, a sua destinação enfastiante aos rumos limitados e limitadores do tracejo eleitoreiro. Sigamos os termos de Florestan Fernandes – o que não é pouca coisa: “O risco dessa evolução provém da social-democratização capitalista das aspirações operárias. Ele encarnaria um avanço real no quadro histórico do Brasil de hoje. Não se poderia dizer o mesmo quanto ao futuro, próximo ou remoto, em uma época na qual a social-democracia teme ser socialista e reduz-se a um ardil para ‘salvar’ a democracia contra o totalitarismo! Cabe, pois, a pergunta: o que seria um regime social-democrático em nosso país, concretizadas as tarefas imediatas do PT? Haveria alguma probabilidade de irmos além das concessões de um walfare state caboclizado? O reformismo dentro da ordem dá todos os frutos de uma vez e em seguida salga a terra. Além disso, convém não esquecer que a social-democracia também para e faz crescer uma burocracia que regula o alcance da revolução democrática à elasticidade que ela comporta sob o capitalismo. Os ganhos obtidos a curto prazo, enormes em confronto com a nossa rusticidade, não compensam as perdas inevitáveis a longo prazo, e o florescimento de um capitalismo formado significa o fim de qualquer sonho socialista. Portanto, eles não asseguram a autorrealização plena do ser humano e a instauração da liberdade maior, que combinam igualdade com liberdade e tornam a felicidade possível”. IN: “Reflexões finais”, último dos textos de Florestan Fernandes publicados ao seu livro Pensamento e ação – O PT e os rumos do socialismo (p.246) (Grifo nosso).
27 – Em seu livro Introdução ao documentário, Bill Nichols avalia os efeitos de uma narrativa documental que mescle relatos pessoais com ramificações sociais e históricas. Nos termos do autor: “Muitas vezes, essa união serve para estabelecer credibilidade e convicção, já que o cineasta começa com o que conhece melhor – a experiência familiar – e, dela, estende-se para o mundo exterior. Essas obras também adquirem uma característica comovente, graças à intensidade com que o cineasta aborda aspectos da própria vida. A franqueza e intimidade da abordagem contrastam dramaticamente com a aura de objetividade imparcial que marca documentários mais tradicionais. A própria subjetividade compele à credibilidade: em vez de uma aura de veracidade absoluta, temos a aceitação sincera de uma visão parcial, mas muito significativa; situada, mas apaixonada” (p.82).
Em uma entrevista, quando perguntada por esta sua escolha, Petra Costa dirá: “Eu me sentia muito desconfortável de falar do outro sem falar de mim, sem mostrar a rachadura subjetiva pela qual eu estava enxergando a situação. Então quando eu comecei a fazer documentários, eu tentei à princípio fazer documentários mais objetivos, mas eu me sentia nessa encruzilhada de sem querer ser a tal antropóloga que pode ser vista como colonialista falando de um outro. (…) A forma como eu encontrei é me colocar para ser bem claro de onde eu estou vindo, de onde eu estou enxergando a situação e quais são as minhas próprias contradições dentro desta situação”. Programa Entre Vistas: com Petra Costa (2019).
28 – Voz over de Petra Costa em seu filme Democracia em Vertigem. Vez mais, e em homenagem sincera ao pesadelo de Petra, resgatamos este filo de memória política que nos descai do testemunho analítico de Florestan Fernandes naqueles anos iniciais dos 90 quando depois do largo período regido pelo capitalismo monopólico de Estado, se ensejavam os ventos do liberalismo burguês em sua modulação de dominação parlamentária. É deste lugar que Florestan está tocando esta reflexão, estes apontamentos. Ouçamos com atenção os seus argumentos: “Participar do Parlamento e do governo é importante para desencadear reformas sociais bloqueadas pelas classes proprietárias. A ordem social competitiva absorve reformas e revoluções – como a reforma agrária, a reforma urbana, a reforma educacional, a descolonização, a revolução nacional, a revolução democrática etc. – que reduzem ou modificam os conteúdos e a forma da dominação de classe e da hegemonia ideológica da burguesia. Essa estratégia prolonga a duração e a profundidade da revolução burguesa, mas não elimina a ordem social competitiva. (…) O desafio consiste em avançar e em aprofundar a consciência de classe dos trabalhadores do campo e das cidades e as lutas políticas que se impõem por causa do comportamento retrógrado da burguesia e do esquema repressivo de defesa da ordem, que preserva toda a sua força (e brutalidade). (…) A campanha do PT deve possuir um teor de desmascaramento da ordem existente, a capacidade de elevar o potencial de luta ofensiva dos trabalhadores e o poder de difundir o socialismo como uma aspiração forte entre os de baixo. Não pode ser uma campanha meramente reivindicativa e uma réplica honesta às promessas demagógicas e fisiológicas – lançadas para não serem cumpridas – dos donos do poder, nacionais e estrangeiros”. (idem, p.248 e pp.251-252). Dos riscos acenados à primeira hora do processo, o que dizer trinta e poucos anos depois? Foram cumpridas as promessas de campanha? O PT, alguma vez, esteve à altura da tarefa histórica a que lhe tocava o seu lugar na história da luta de classes no Brasil e em América Latina? Se deixar a estas perguntas, a estas inquirições, ou à formulação de um bloco de respostas é quase como se atuássemos a um espetáculo de ilusionismo. Nos perguntamos o que diria Florestan Fernandes se o hiato da morte não lhe tivesse arrancado a função de esquadrinhar criticamente a realidade política brasileira e latino-americana, e dentro desta, à demarche do Partido dos Trabalhadores. O que diria ao vê-lo tornado um partido da ordem burguesa, ao vê-lo retroalimentar o seu engenho de cálculos, ao vê-lo operar à sordidez estruturante dos conluios nos fóruns intestinais da burguesia, ao vê-lo sabotar continuamente os espaços de luta e de organização da classe trabalhadora, ao vê-lo conchavar-se no avanço de legislações trabalhistas que garantam as condições ótimas para o avanço da produção em níveis de competitividade regional e internacional, ao vê-lo empenhado no rebaixamento dos custos operacionais do regime de produção, ao vê-lo atuar como dique de contenção (e conversão funcional) a todo e qualquer passo à frente das camadas populares nos caminhos tortuosos da luta de classes. São questões que, infelizmente, ou talvez que felizmente, não chegaram a ocupar de desassossegos e desilusões o tempo de vida de Florestan Fernandes. Todavia são questões que lançamos ao colo de nossa realizadora – não como quem pretenda desgovernar o seu plano de curso para novas ações e empreitadas documentárias, mas como aqueles que buscam auxiliar no percurso desde a qualificação dos debates que só se torna possível se nos lançarmos a destruir impiedosamente o culto aos ídolos de toda espécie.
29 – Tutaméia entrevista Petra Costa (31 de agosto de 2020): https://www.youtube.com/watch?v=Gzmj_VZOBYQ&t=2205s&ab_channel=TUTAM%C3%89IATV
30 – Cf. Democracia em vertigem.
31 – Jorge Ruffinelli, em seu livro Patrício Guzmán: En busca de las imágenes verdaderas, afirma: “Ao comparar A Insurreição da burguesia com O Golpe de Estado é fácil perceber que o segundo (dos filmes) é mais compacto, sem os visíveis problemas de narração. Além de não estar dividido em capítulos, se dedica inteiramente a contar o curso histórico cujo desenlace foi o golpe militar de 11 de setembro de 1973 e a tomada do poder por uma junta militar. (…) Enquanto A Insurreição da burguesia e O Golpe de Estado eram dramáticos como cinema de denúncia contra a ditadura, O Poder popular faltava força política, era reiterativo e limitado em seu tema e dependia, cinematograficamente, do estilo reportagem, sem a riqueza de variação estilística das duas partes iniciais. (…) O Poder popular tem uma grande importância do ponto de vista histórico e é em si mesmo um belo filme sobre a alma de um povo” (pp.107 e 111).
32 – O documentário A Batalha do Chile: a luta de um povo sem armas está dividido em três partes: 1) A Insurreição da burguesia (1975); 2) O Golpe de Estado (1976); 3) O Poder popular (1979).
33 – Petra é mais explícita a esta entrevista quando se refere a Batalha do Chile: “É impressionante como não há nenhum documentário, filme em longa-metragem, sobre o Impeachment de Collor. Nenhum documentário feito durante a Ditadura, só em retrospecto. Não temos um Batalha do Chile, filmado no calor dos acontecimentos. É impressionante esta falta. Os documentários investigativos vão ser agora uma das ferramentas principais para se desvendar e exigir das instituições que elas sejam realmente democráticas” (Grifo nosso). IN: https://www.cartacapital.com.br/politica/petra-costa-se-soubesse-do-vazamento-do-intercept-nao-teria-parado/
34 – Está-se ao mês de julho do ano de 2017, Luís Inácio é condenado à prisão. Em Democracia em vertigem, Petra evoca fragmentos de lembrança, em voz over, da tragédia Julio César, de William Shakespeare. São palavras de Petra Costa: “Por trás da cortina do teatro político, vazamentos de áudio me faziam pensar no assassinato de Julio César, na tragédia de Shakespeare. Se o primeiro vazamento ecoava a conspiração dos senadores romanos para apunhalar César por ele ter se tornado poderoso demais, este [segundo vazamento: da conversa telefônica entre a presidenta Dilma Rousseff e o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva] me lembrou o ato final da peça quando Brutus não consegue dormir assombrado pelo fantasma de César”. Petra Costa irá se lançar, a esta hora, ela mesma de forma vertiginosa, para dentro do tufão das horas, a gira acelerada e concatenada dos fatos em direção a sua conclusiva de turno, o golpe de Estado para o remanejamento dos fracionamentos burgueses e das táticas necessárias ao estágio atual da acumulação de capitais. Claro está que Petra não irá ler desta forma aquele turbilhão acelerado do tempo político. Petra se vê introspectiva, reflexiva. Aqui, vez mais, a sua voz over dá o acento dramático ao cenário descrito pela banda de imagens: “Democracias frágeis tem uma vantagem sobre as sólidas. Elas sabem quando acabam. Generais fecham o Congresso, ocupam as emissoras de TV e todo mundo percebe o que aconteceu. Mas democracias também podem acabar lentamente. Dizem que esta votação custou quatro bilhões em emendas pros deputados protegerem o presidente. O fato de 80% da população achar que Temer deveria ser investigado não incomodou nem os políticos nem a bolsa de valores que celebraram o resultado. Temer tava entregando quase tudo o que eles pediam, levando as reservas de petróleo para as empresas estrangeiras, enfraquecendo as leis que proíbem o trabalho escravo e aprovando medidas de austeridades que prejudicariam os mais pobres. É natural discordar sobre as questões legais que determinaram todo este processo político; o que me parece inaceitável é que um lado da disputa tem o poder de ligar e de desligar as instituições de acordo com seus próprios interesses. Um ostensivo exercício de poder que me dava a sensação de que nossa democracia tava muito doente”.
37 – À alusão de Petra Costa à tragédia shakespeareana, se nos rebate outra alusão. Lembramo-nos da Apologia de Sócrates, na qual Platão conta o processo de condenação de Sócrates à prisão e morte. Fora condenado por uma carrada de motivos arrancados aos interesses de hora. Sócrates corrompera a juventude. Sócrates impunha falsas crenças, novos ídolos. Sócrates profanara as regras de funcionamento interno da cidade ao misturar-se nos seus desígnios políticos em sendo ele um estrangeiro. Nada que prestará a sua defesa, o bronze de seus argumentos. Será preso e aguardará, no cárcere, que se cumpra a peregrinação das festas de celebração do nascimento de Apolo. É que as leis de Atenas não permitiam que nesse período de cortejo a cidade fosse maculada por uma execução. Claro está que, durante este tempo de espera, os discípulos de Sócrates tramam de todas as formas para conseguir um artifício que poupe a Sócrates dos arbítrios daquele julgamento. Conseguiram de um guarda que ele se comprometesse com a facilitação da fuga do ilustre prisioneiro, mas qual? Sócrates preferirá morrer a desobedecer a Justiça. Como Luís Inácio, ele acreditava na Justiça, ou a justificava aos olhos de todos por meio de sua crença declarada.
38 – Vejamos, em contraste com o discurso de Luís Inácio, as últimas palavras de Salvador Allende às 09:10 da manhã do fatídico 11 de setembro de 1973: “Meus amigos, seguramente esta será a última oportunidade em que posso vos dirigir a palavra. A Força Aérea bombardeou as torres da Rádio Portales e da Rádio Corporación. Minhas palavras não têm amargura, mas decepção. E serão o castigo moral para os que traíram o juramento que fizeram: soldados do Chile, comandantes em chefe titulares, Almirante Merino, que se auto-designou Comandante da Marinha, mais o senhor Mendoza, general rastejante que ainda ontem manifestara sua fidelidade e lealdade ao Governo, e que também se autodenominou Diretor Geral dos Carabineros [a polícia nacional]. Frente a estes fatos, só me cabe dizer aos trabalhadores: eu não renunciarei! Colocado numa encruzilhada histórica, pagarei com minha vida pela lealdade ao povo. E vos digo que tenho certeza de que a semente que entregamos à consciência digna de milhares e milhares de chilenos não poderá ser negada definitivamente. Eles detêm a força, poderão nos avassalar; mas não se pode deter os processos sociais. Nem com o crime, nem com a força. A história é nossa, e os povos a fazem. Trabalhadores da minha pátria. Quero vos agradecer a lealdade que sempre tiveram, a confiança que sempre depositaram em um homem que foi somente intérprete de grandes anseios por justiça; que deu sua palavra de que respeitaria a constituição e a lei e assim o fez. Nesse momento definitivo, o último em que eu poderei dirigir-me a vocês, quero que aproveitem a lição: o capital estrangeiro e o imperialismo, unidos à reação, criaram o clima para que as Forças Armadas rompessem sua tradição, que lhes ensinara o general Schneider e reafirmara o comandante Araya, vítimas do mesmo setor social que hoje estará esperando com as mãos livres, reconquistar o poder para seguir defendendo seus lucros e seus privilégios. Eu me dirijo, acima de tudo, à modesta mulher de nossa terra, à campesina que acreditou em nós, à avó que trabalhou mais, à mãe que soube de nossa preocupação pelas crianças. Eu me dirijo aos profissionais da Pátria, aos profissionais patriotas que há dias estiveram trabalhando contra a sedição patrocinada pelas associações profissionais; associações classistas que também defenderam os lucros de poucos de uma sociedade capitalista. Me dirijo à juventude, àqueles que cantaram e entregaram sua alegria e seu espírito de luta. Me dirijo ao homem do Chile, ao trabalhador, ao camponês, ao intelectual, àqueles que serão perseguidos, porque em nosso país o fascismo já está há tempos presente: nos atentados terroristas, explodindo pontes, cortando as linhas férreas, destruindo oleodutos e gasodutos perante o silêncio daqueles cuja obrigação era protegê-los. Estavam comprometidos. A História os julgará. Seguramente a Rádio Magallanes será silenciada e o metal tranquilo da minha voz já não vos alcançará. Não importa. Continuarão a ouvi-la. Sempre estarei junto a vós. Pelo menos minha memória será a de um homem digno, que foi leal à Pátria. O povo deve se defender, mas não deve se sacrificar. O povo não deve se deixar arrasar nem tranquilizar, mas tampouco pode humilhar-se. Trabalhadores de minha pátria, tenho fé no Chile e em seu destino. Outros homens superarão este momento cinza e amargo sobre o qual a traição pretende se impor. Sigais sabendo que muito mais cedo do que se espera, se abrirão novamente as grandes alamedas pelas quais passarão homens livres para construir uma sociedade melhor. Viva o Chile! Viva o povo! Viva os trabalhadores! (…)”. IN: Salvador Allende Presente (2008, pp.135-137).