“(…) onde se trata de uma transformação completa da organização social
têm que intervir diretamente as massas, tem que haver compreendido por
si mesmas de que se trata, porque dão seu sangue e sua vida.”
F. Engels
Miguel Littin nos conta a história de um cerco em seu filme Allende em seu labirinto. Está-se ao dia 11 de setembro de 1973 de que já sabemos o trágico desfecho. Ainda assim, Littin esgarça e comprime as horas em seu tensionamento na construção do arco narrativo de sua obra ficcional. Estica para lá e para cá as peças e testemunhos sacados de registros e arquivos na montagem de um roteiro com cenas frenéticas mescladas a distensão temporal de corte contemplativo. Com os dedos de pinça, recolhe fragmentos e os torneia de recursos rítmicos e dramatúrgicos, resguardando, de entre o lépido das ações definitivas nas que circula a personagem protagonista, certo tom, por vezes, evocatório e nostálgico como quando Salvador Allende faz alusão a Don Ramón Allende Padín, o avô paterno, em sua exemplaridade edificante e que lhe fora imprescindível em seu processo de formação; ou quando Allende se dá à intimidade cúmplice de um jogo de xadrez com Augusto Olivares em meio ao desmonte do mundo com o Palácio La Moneda tomado em chamas; ou ainda, quando do acolhimento afetivo para com os companheiros da batalha final dispostos em fila indiana em uma das escadas internas do Palácio: aqui e ali uma fala em sussurro, o toque continente ao ombro; acolá, o aperto de mão na solenidade de uma despedida furtiva; ou o jogo afetivo, fraternal e amoroso, um tanto contido e em reserva, para com as filhas Beatriz e Isabel e também para com Miriam Contreras, sua secretária presidencial e amiga de horas não-professadas; ou ainda, o solilóquio na ‘presença ausente’ do mesmo Augusto, o amigo e companheiro tombado em sacrifício quando a uma bifurcação de caminhos inúteis desprovidos de promessa.
O Allende espelhado no filme de Miguel Littin quase que nunca se deixa flagrar em vacilações e incertezas, é austero e sóbrio, o rosto de expressão constrita, cerrada, e o sorriso restrito ao movimento dos olhos. E mesmo quando absorto ao cristal de um tempo remoto, ele ressurge completo, metálico, soberano, apoteótico. O excessivo, se lhe cabe, se deflagra aos modos da palavra em cascata, e agora, ao filme, neste derradeiro ato litúrgico daquele 11 de setembro de 1973, tal excesso também se apresenta no manejo versátil do rifle AK-47, na redundância do gesto, na plástica corporal.
Miguel Littin repisa/reprisa/reenceta detalhes e facetas gravadas ao bronze lustrado daquelas horas – como quando reproduz, em primeiríssimo plano num close no rosto enérgico de Salvador Allende, o trecho das grandes alamedas que se abrirão ao futuro sacado ao derradeiro discurso do presidente ‘condenado’ ao suicídio como a um último gesto viril e autônomo no tomar a si a decisão de sua própria morte – como que num rechaço para com a morte amesquinhada e servil que lhe seria imposta pelos lacaios das Forças Armadas de ocupação àquele Chile dos 70’. Littin deposita a paleta de cores de prisma moral aos gestos de bravura de um Allende que, parece, não titubeia ainda que em face ao precipício que se lhe vai acercando. Allende não deserda, não larga a corda esticada, não se rende, não se retira à surdina, não se resguarda sequer que quando à balaustrada, metralhadora em punho, sob a mira de soldados a soldo.
Miguel Littin nos dispõe, como a uma proximidade de camaradas, a um Salvador Allende de capacete enfurnado à cabeça, à vanguarda de uma linha de resistência formada pelos agentes da sua guarda particular; os dedos engatados ao gatilho em rajadas disparadas a esmo; um Allende de todo alheio e indiferente ao calor sufocante e enfumaçado das explosões. Com os olhos esbugalhados a saltar da cavidade facial como se carregassem consigo a palavra-seta retilínea, sem curvas, ou atalhos, ausente de silêncios e imprecisões, e segue avante o Allende de Littin a sua destinação timoneira até que as vagas lhe encerrarão, sem voltas, ao seu labirinto. E segue, seguirá o Allende de Miguel Littin arrastando sua corte de imagens mitificadas, inclusive mistificadas, que abriram caminho para a simplificação histórica no grande livro das memórias desgarradas, espécie de Allende sem reverso, sem negativo, sem contraponto, arrancado à condição dialética dos processos históricos de matriz econômico, político, social. É que a máscara colada à superfície do rosto não admite vertigens ou fendas pelas quais um halo de luz se projete. Como se fora um manipanso descolado de toda e qualquer temporalidade. E do mármore em que é depositado, recordatório que encerra e não descortina, o que resta é apenas labirinto.
Labirinto definitivo o de Allende. É que seu labirinto não oferece refúgio subterrâneo através do qual possa escapar incólume a malta de resistentes à Casa do Governo. É que com o passamento das horas, o contingente irá baixando, a disparidade das forças num crescendo, o labirinto ganhando ares de totalidade sem freios e rédeas, um labirinto de corredores que comunicam a outros corredores, de pavimentos que se retorcem, de portas que se multiplicam no que abrem e giram a uma mesma rotatória, a do encerro, a do claustro, a do esgarçar abrupto que faça estancar. Certa feita, Allende interpelará a um de seus homens da Guarda Civil, quantos somos em armamento a esta hora? – Não mais que 30, se lhe responde. E Allende perguntará pela munição que resta, resistimos por quanto tempo? Sabemos todos que não custa muito o tempo do fim, talvez ele também palmilhasse a certeza de que aquele 11 de setembro lhe seria a paragem, ou o ponto de inflexão até a queda, o balaço a fazer saltar à têmpora. Mas Allende resiste, ele está inteiro àquele par de horas. Sabe-se que as tropas de infantaria comandadas pelo General Palácios sitiaram a região. Revista-se a tudo e a todos. Ao arbítrio dos humores, faz-se a seleção dos que serão desaparecidos, ou torturados, ou aprisionados, todos submetidos às humilhações dos gritos e das palavras de ordem em afrontas de baixíssimo calão. Enquanto isso, o avance das linhas em ocupação, os tanques de guerra circulam pelas ruas Morandé e Teatinos. O Palácio La Moneda está cercado. Ao elevado desta hora, já ninguém seria capaz de romper a linha compacta do regimento. A Praça Constituición, em frente ao palácio presidencial, está tomada por cerca de 600 homens. Todas as estações de rádio, com exceção da Rádio Magallanes, foram ocupadas e apenas transmitem as consignas de louvor ao Operativo Militar, os seus avanços progressivos sobre os povoados humildes onde o povo resiste como pode, onde o povo é devastado sem que se perceba, sem que se notifique, sem que o homem comum (que todos somos) se quede em testemunho.
Todavia, nos bairros populares, o povo resiste, com pedras e pregos, mas sem armas às mãos. Afinal não era esta uma das condições da Via Chilena ao Socialismo, a subsunção da dualidade do poder aos limites intransponíveis da legalidade constitucional? Afinal não se fazia imprescindível o não fustigar de forma desmesurada os rigores do instituído na evitação de um levante da reação em sua contrarrevolução permanente? Mas o que se precipitava com isto – o insistente recuo até os limites estreitos da legalidade constitucional de matriz burguesa? O que se deflagrava por estes passos atrás como se fossem avanços; a contradição estampada no movimento das peças ao xadrez de que Allende operou, o avanço da Dama em direção ao recuo, em direção ao cercamento do instituído; os recursos que se voltam aos interiores dos aparelhos do Estado, o seu sitiar-se de entre as manobras ao sabor do inevitável charlatanismo parlamentário, as casas legislativas em seus limites axiomáticos e estruturais, as casas legislativas em defasagem de forças a uma perspectiva conjuntural. Tudo operando junto. Os recursos dispostos aos corredores dos tribunais, sob às baquetas do aparato judiciário. As cartas lançadas à mesa de negociações, e os convivas que se apresentam trazem a batina e o ofertório da Igreja Católica chilena em sua face político-partidária, a Democracia Cristã, e se negocia as garantias da constitucionalidade intacta, e se acorda trazer para mais perto as Forças Armadas chilenas dispondo suas peças em cargos públicos. Como avançar desde aí? Não se estaria a enredar-se a esta ‘nova Moscou’ estratégica – como dispositivo tático da contrarrevolução permanente, qual seja esta senão a institucionalidade – através da qual se irá capturando e desmantelando a resistência da Unidad Popular. Ou noutros termos, o que e a quem, de fato, se acabava por neutralizar sob o pretexto de evitação de uma convulsão social decorrente do acirramento polarizado da luta de classes, ou aqui, e tantas vezes, traduzida no temido fraseado de guerra civil com seus ecos de morticínio, de sangue derramado, dos inocentes imolados? Mas quando e qual este inocente, o terceiro excluído, a vítima entre o fogo de dois demônios? Não seria antes, estes, o que se sacrifica pela debilidade das decisões, pelo não se colocar inteiro às tarefas exigidas pela etapa histórica, e eis o sacrificado – estas gentes, o povoado, os operários e camponeses, a vanguarda revolucionária partidária, a militância de base, as associações de bairro e vizinhos, as mulheres na organização dos comedouros populares?!
Nos embrenhemos pelas vias concretas do recuo de que se padecia, e seria a vacilação titubeante e débil o que se faria ver diversas vezes – como quando na aludida negociação em barganha das garantias constitucionais entre a Unidade Popular e a Democracia Cristã ainda no quando do processo eleitoral, em outubro de 1970; ou o que se revela pelo ato da publicação da Lei N. 17.798, em 21 de outubro de 1972, que estabelecia o controle de armas e elementos similares pelo Ministério de Defesa Nacional para a qual cooperaram os Comandos de Guarnições, os Serviços Policiais e os Serviços Especializados das Forças Armadas. E se instituía a que ficassem submetidos a este severo controle: a) as armas de fogo, de qualquer calibre; b) as munições; c) os explosivos; d) as substâncias químicas inflamáveis e asfixiantes; e) as instalações destinadas a fabricação, armazenamento ou depósito destes elementos. Acrescentando que: ‘- nenhuma pessoa poderá possuir metralhadoras, submetralhadoras, fuzis de qualquer espécie e outras armas automáticas de maior poder de definição, seja por sua potência ou pelo calibre de seus projéteis; que nenhuma pessoa poderá possuir ou ter artefatos fabricados a base de gases asfixiantes, lacrimogêneos, venenosos ou paralisantes, de substâncias corrosivas, incendiárias, explosivas ou de metais que pela expansão de gases produzam faíscas, assim como dos insumos destinados ao seu lançamento; claro está que se excetuam a estas proibições as Forças Armadas, o Corpo de Carabineiros chileno, a Direção Geral de Investigação ao serviço de Vigilância de Pensões, o Departamento de Investigações Aduaneiras da Superintendência de Aduanas e aos demais organismos estatais autorizados por lei, cujos membros poderão usar estas armas e elementos na forma que assinalar o respectivo Regulamento Institucional’; ou ainda, e apenas dez dias passados desta Lei de Controle de Armas, a conformação de um gabinete cívico-militar, no dia 02 de novembro de 1972, para buscar ‘desempatar’ o equilíbrio de forças a que se sentia refém o Governo da Unidade Popular, empate este resultante do avanço da organização popular pelas bases, o que promoverá cenários de ocupação de fábricas na reposição do processo produtivo paralisado e, ao outro lado da polarização, as ações de sabotagem dos grupos ultradireitistas que buscarão a mobilização de setores protofascistas com a promoção de atentados públicos de cunho terrorista. E eis que o gabinete cívico-militar lhe seria a instância de desempate, o garante da paz social, o refazimento de sistemas de segurança que – se combatiam aos atos de vandalismo e sabotagem das bandas fascistas como Patria y Libertad; por outro lado, se punha à dissolução das greves e dos atos de ocupação das fábricas, promovendo a desmobilização das massas articuladas, desde àquele outubro/1972, numa contraofensiva revolucionária. A este gabinete cívico-militar estarão presentes o General Carlos Pratts como Ministro do Interior, o Contra Almirante Ismael Huerta como Ministro de Obras Públicas e Transportes, o Brigadeiro Cláudio Sepúlveda como Ministro das Minas e Energia. Mais além deste corpus militar, outros de seus componentes serão destacados dirigentes da burocracia sindical instalada na CUT oficialista arregimentada, em aparelhagem, pelo reformismo do PC chileno.
Todavia, ao instante subsequente de que descreve o filme de Miguel Littin, neste 11 de setembro/1973, o povo resiste com pedras e pregos, e sem nada de armamento, talvez com miguelitos que se lançam no entre as patas da cavalaria montada, ou na direção das bandas de rodagem dos veículos oficiais dos Carabineros quando de uma perseguição. Diz-se que as bandas militares se deslocam até os Cordões Industriais nos arredores de Santiago afim de esvaziá-los de operários e militantes esquerdistas. Diz-se que o fuzilamento de trabalhadores, estudantes e da população pobre grassa em Santiago e arredores. E tanto o que fora feito para evitar a guerra civil, mas que nome colar a este massacre, a este sacrifício de um povo desarmado? Exceção às regras da oficialidade, diz-se que os militantes do Movimiento de Izquierda Revolucionária (MIR) organizam milícias armadas para o enfrentamento. Partirá deles a oferta de uma escolta que se destinasse à libertação de Salvador Allende, mas agora é tarde, Allende está afincado ao seu labirinto, onde pagará com sua vida a lealdade do povo. Littin coloca na voz de um dos personagens de seu filme, o gesto acenado de Miguel Enríquez, secretário geral do MIR.
Mas sigamos com Miguel Littin – que nos conta este fatídico dia desde dentro dos muros de La Moneda. Dia-síntese no que se conflagra o que de há muito se anunciava. Littin nos convida para dentro do filme – que escapa por todos os lados no atravessamento da história de que ele conta. Está-se às descrições de Allende em seu labirinto. Sabemos que o destacamento de carabineiros que se ocupavam da guarda palaciana bateram em retirada. Deles sempre se elencou a fidelidade na manutenção da Ordem Social para que se pudesse cumprir o programa do Governo Popular. Talvez que Salvador Allende não previsse este deslize operacional no romper de funções, talvez Allende contasse com esta retaguarda, o batalhão a postos, os homens em prontidão, as armas em punho. Mas de que será composta esta aludida fidelidade? Até quando e como que ela se costura? Outra vez, escapamos do filme, ocupamo-nos da superfície porosa e rugosa do relato histórico de que nos descreve Marta Harnecker; a partir da segunda quinzena de abril de 1972, quando diversos setores da burguesia agrupados ao Partido Nacional (PN), às alas mais direitistas da Democracia Cristã (PDC), ao grupo paramilitar fascista Frente Nacionalista Patria y Libertad, apoiados ainda a campanha de terror orquestrada pelo Diário El Mercurio, se lançam em manifestações multitudinárias, repondo na ordem do dia as práticas não legais de sabotagem, além de reinvestir de forma efetiva em medidas de desabastecimento de produtos; as massas populares se organizam, em maio de 1972, em Concepción, uma zona de forte confluência de operários, camponeses, estudantes e de população empobrecida, solicitando a liberação para a realização da Marcha pela Liberdade contra o avanço das hordas fascistas, e eis que explodem os conflitos em nome da ordem pública, num confronto braçal descrito por militantes do MIR com os Carabineiros. Mas sigamos para além do conflito ocasional.
2
Marta Harnecker nos descreve que do tensionamento polarizado das forças políticas em jogo, assim como da necessidade de recolocar em perfeito funcionamento o processo produtivo, se constituirá o Comando dos Trabalhadores do setor Cerrillos-Maipú, onde cerca de quarenta e seis mil operários trabalham em duzentas e cinquenta empresas. Vejamos o que diz Harnecker:
Ali se localiza uma parte considerável da produção de pneus, vidros, linhas, manufaturas de cobre, fibras têxteis, alumínio e o centro de distribuição de combustível para a capital. Neste setor, havia várias empresas com problemas: produções sabotadas, casos de desvio e roubo etc. Entre elas estava Perlack, CIC, Alumínio Las Américas, Polycrón e Avícola Cerrillos. A busca de uma solução a estes conflitos despertou a solidariedade da massa trabalhadora de Cerrillos-Maipú, que expressou seu apoio em aportes em espécie e dinheiro, assim como em presença física a cada vez que se fez necessário. Sobre tal base se conformará o Comando de Trabalhadores Maipú (que logo ganhou o nome de Cordón Cerrillos), ao que acorreram delegados de diversos sindicatos e trabalhadores de base. A organização se expressou por meio de várias manifestações: a ocupação do Ministério do Trabalho (22 de junho/1972); as barricadas no caminho de acesso a Maipú e a marcha do 12 de junho de operários, camponeses em apoio aos camponeses presos em Melipilla, que culminou na Praça Montt-Varas, em pleno centro da cidade. Esta foi a primeira mobilização em que se expressou a aliança operário-camponesa. Entre os conteúdos da plataforma de luta deste comando se defendem não apenas os interesses dos trabalhadores industriais, mas também os interesses dos camponeses, colonos, operários da construção civil, e se pleiteia, entre outras coisas, uma crítica aos burocratas do aparato de Estado e a necessidade de substituir o parlamento burguês por uma Assembleia Popular.
No que tange à crescente unificação das organizações populares, através dos Comandos de Trabalhadores, e atuando por meio de Assembleias pela base, importante destacar a carga de pressão que exercerá sobre Salvador Allende os setores menos direitistas da Democracia Cristã – a qual, no interior das casas parlamentares, a bancada da Unidad Popular procurará estabelecer alianças de sustentação ao governo. Allende se pronunciará, em carta pública, condenando a Assembleia popular e pressionando aos partidos políticos para que se pronunciem nesta direção. Eis um trecho da carta de Salvador Allende:
Na província de Concepción se produziu pela segunda vez em três meses um fenômeno de tendência divisionista que atenta contra a homogeneidade do movimento da Unidad Popular. Não vacilo em qualificá-lo como um processo deformado que serve aos inimigos da causa revolucionária. O inimigo tem buscado e insiste em criar um enfrentamento artificial que divida o país em uma luta cujas proporções eles mesmos não podem prever. Nada melhor para isto que se utilizar de um enfrentamento artificial dentro da Unidad Popular. (…) Para superar em sua raiz as bases desse conflito político, assinalei como objetivo prioritário ganhar as eleições gerais parlamentares de 1973. Uma maioria popular no Congresso permitirá impulsionar os câmbios institucionais e legais indispensáveis para tirar o país do subdesenvolvimento. (…) O poder popular não surgirá da manobra divisionista dos que querem se agarrar a uma miragem lírica surgida do romantismo político ao que chamam, a margem de toda realidade, “Assembleia do Povo”. Pensar em um ‘duplo poder’ no Chile nestes momentos, não somente é absurdo, como é uma grosseira ignorância irresponsável. (…) E com profunda consciência revolucionária, não tolerarei que ninguém nem nada atente contra a plena legitimidade do governo do país. O governo da Unidad Popular é resultado do esforço dos trabalhadores, de sua unidade e organização. Porém, também da fortaleza do regime institucional vigente, que resistiu aos embates da burguesia e do imperialismo para destruí-lo. Por isso, para continuar governando ao serviço dos trabalhadores, é meu dever defender sem fadiga o regime institucional democrático. E não admito que nenhum autêntico revolucionário responsável possa, sensatamente, pretender desconhecer os limites do sistema institucional que nos rege e de que forma parte o governo da Unidad Popular. Se alguém assim o fizer, não podemos senão considerá-lo um contrarrevolucionário
Seguindo ainda às pistas que nos chegam dos arquivos, ou de testemunhos captados em entrevista, como quando da construção de El Pueblo que falta (2015), com Guillermo Rodriguez, militante de base mirista, que havia sido chefe da guarda pessoal de Salvador Allende, e que a esta altura [1972] era o comandante militar das milícias de autodefesa do Cordón Cerrillos. Guillermo contou que o Programa da Unidad Popular silenciava no que dizia respeito à nacionalização de pequenas e médias empresas. Quando da tomada das fábricas àquele instante de 1972, os trabalhadores não o faziam em nome do socialismo, mas porque compreendiam que a patronal, ao sabotar o processo de produção, buscava precipitar a derrocada do governo da UP. E eis que se fará a tomada do Ministério do Trabalho, a ocupação de indústrias porque a indústria é nossa e seremos nós àqueles que colocaremos em curso a história. Guillermo Rodriguez nos interpela: E o que faz Allende? Ele envia o ministro de trabalho que esbofeteia a um dirigente sindical. No curso da entrevista, o que Guillermo nos descreve é o desdobramento dialético da luta de classes: seja no que se aprofundam as contradições de um governo popular a operar nos limites da institucionalidade burguesa – dispondo de ferramentas operacionais que quando acessadas em proveito do processo revolucionário em curso, acabam por revirar ao avesso, como a uma volta de parafuso que ativasse os axiomas profundos da contrarrevolução; seja no que se desenvolve aos saltos a consciência das massas ao concreto cotidiano de suas urgências materiais as mais básicas, por outro lado, tal consciência se perfaz no que se acentua a violência institucional através dos seus operadores diretos – muitos destes a ocupar cargos na burocracia do Estado sob a regência governamental da Unidad Popular. Nos termos de Guillermo:
Os bancos não nos dão crédito. O parlamento nos exige a devolução das fábricas. O Ministério de Justiça determinou que teríamos que devolvê-las. O Diário El Mercurio afirma, em primeira página, que os trabalhadores estão invadindo a propriedade privada. E o trabalhador que, àquela altura, ainda não estava lutando pelo socialismo, mas para pôr na ordem do dia a retomada da produção, aprende: – Ah, isto é o Estado! (…) E vem os Carabineiros… e eis que então se percebe que a única forma de se acumular força é por fora do Estado. Uma tese que o Partido Socialista não comparte!
Dentre as aludidas contradições no seio da própria coalisão que conforma o governo da Unidad Popular, destaquemos a posição diametralmente oposta representada pelo ministro da economia Pedro Vuskovic que afirmará ter se esgotado os mecanismos da institucionalidade burguesa para dar conta da crise vigente, e, portanto, ou apelamos a outra forma para seguir avançando, ou estancamos. Eis a opção afirmada pela saída revolucionária, àquela altura do processo histórico, desde o interior do governo. Salvador Allende, sob pressão política, o substituirá no dia 17 de junho de 1972, suspendendo em seguida seu plano econômico que punha em curso a redistribuição massiva de receitas, com aumento de salários e de despesas públicas. Por outro lado, teremos a posição do Ministro da Fazenda Orlando Millas, empossado por Allende, neste mesmo dia 17 de junho de 1972, e que representando a burocracia reformista do Partido Comunista chileno, afirmará que o processo em curso não é socialista, mas sim um processo democrático-nacional e que, portanto, se chegar ao ponto em que a classe operária se mostrar isolada, o que teremos que fazer é buscar firmar uma aliança da classe trabalhadora com a pequena e média burguesia. Eis a opção pelo recuo reformista e conciliador que irá tanger, uma vez mais, a pragmática das ações do governo da Unidad Popular. E neste ‘duelo de espadas’, é inequívoco o encaminhamento tomado por Salvador Allende. Mais um pouco a frente, no avançar dos meses de 1972, Orlando Millas será nomeado Ministro da Economia interino, no período de 29 de dezembro/72 a 05 de julho/73, chegando a acumular o cargo de Ministro da Economia, Fomento e Reconstrução, a partir do dia 04 de maio/73 até 09 de agosto/73.
Guillermo Rodriguez destaca ainda que serão os Carabineros, leais até então aos procedimentos institucionais do Governo da Unidad Popular, que serão os encarregados da desocupação das fábricas. Claro está que Guillermo, seguindo o curso dialético de sua explanação, descreverá a tomada de consciência popular acerca ao de que se trata quando o que está em jogo é a defesa institucional de um Estado de classes no regime democrático burguês. É que, a um só tempo, tal como já fizemos referência no corpo deste ensaio, a direita avança em suas táticas de ocupação das ruas, na mobilização de suas bases sociais. Neste recorte, é quando saem às ruas as enfermeiras, os professores e bancários, além da aristocracia operária a que atende os mineiros do cobre, assim como os donos de caminhões e de microônibus. Noutra esfera desta frente de direita, mais também avançando em seus postos, a Democracia Cristã procurará desgastar o governo da Unidad Popular no interior da institucionalidade fazendo-o recuar cada vez mais para o seu interior de portas cerradas e de senhas guardadas às sete chaves. E Salvador Allende segue em direção a Moscou, em direção ao seu labirinto institucional – pactuado com junto aos inimigos de classe.
3
É demasiado tarde no calendário dos mil dias do Governo da Unidad Popular. Salvador Allende gira ao torvelinho das horas derradeiras. A cada passo, em todo esforço encetado, o peso de seu corpo se mostra em aliança às forças da gravidade. Allende afunda a um torrão de areia lamacenta. No que mira para os lados, como que se vai evolando os espectros dos companheiros, ou dos supostos aliados sob as linhas pétreas das funções constitucionais. Não há uma só divisão ou brigada de qualquer uma das três forças armadas que se mantenha fiel ao presidente e sob o ordenamento da legalidade. Os partidos políticos estão descabeçados. A CUT (Central Única de Trabajadores), burocratizada e centralizadora, sob a hegemonia do Partido Comunista, apenas há pouco mais de dois meses, involucrou-se à ofensiva política dos trabalhadores em uma sucessão de mobilizações que culminaram com um paro nacional, porém agora é tarde, está-se refém ao Palácio de governo, está-se ao elevado da hora, na chapa quente e irremediável do levante contrarrevolucionário. Está-se dentro do golpe de Estado, aos raios largos e turvos de seu arrasto, como a uma gira excêntrica que se espraia para todos os quadrantes, e nada se lhe escapa. Todavia, se resiste como que a uma prova de obstáculos, as forças de que se dispõe em sendo, a cada instante, e num crescendo, colocadas em jogo. Até quando se manterá a moral altiva e a guarda de punhos em alta? Sabemos o desfecho, o fato pesado e efusivo retomando a força, ressurgindo do recalque, esgarçando as mangas do pavor. Miguel Littin não poupa recursos, ele ativa os pergaminhos esburacados da memória, ele rejunta o que restou fatiado.
A história de que se descreve está irremediavelmente agrilhoada a sua destinação. Já não resta um arremedo de acaso que possa se insurgir ao fatídico a que se está condenado. É a tragédia o que se avizinha como a um crescendo de gravidade e terror. De nada que serve a largura dos corredores do Palácio presidencial se o deslocamento das gentes, aos seus interiores, pressupõe os riscos que acenam a proximidade das janelas com amplas vidraças – a morte parece vir de fora às labaredas, a morte parece vir dos céus em voo rasante, a morte parece vir no pesadume dos blindados, ou aos estilhaços, antecipado pelo zunido ensurdecedor dos aviões que sobrevoam 14 vezes os telhados do edifício em 30 minutos de bombardeio. Contou-se em 28 a munição explosiva. E a cada vez, era a agonia da combustão, o ar irrespirável da cidade sitiada – pela terra, pelo ar e desde a costa, na região portuária de Valparaíso, onde a Armada se levantara, ao raiar do dia, em sublevação. Allende pergunta a um dos companheiros de sua guarda: Que se passa nas periferias, nos cordões industriais, o povo resiste? – Estamos sem comunicação. Não temos qualquer informação.
E Miguel Littin coloca em cena a um Allende aflito, cercado de ‘abandono’, experimentando os fantasmas da solidão última, a que antecipa o horror do desfecho anunciado. Tal como o Zaratustra de Nietzsche, a Allende lhe resta como companheiro o cadáver de Augusto Olivares, e será entre ‘os dois’, a esta translúcida e brevíssima nevoa de existência que se travará a mais bela interlocução de Allende em seu labirinto. Eis uma parte desta conversação:
Augusto Olivares: – Sabe o que me disse Neruda a alguns dias? Ele disse que o único que tem razão é Miguel Enríquez, e os que tal como ele impulsionam a luta armada. É que os poderosos jamais entregarão o poder pacificamente.
Allende: – A via armada teria significado a guerra civil e eu dei a minha palavra de que isto não ocorreria. O afirmei no congresso. Não alentaria a guerra civil, e Allende cumpre a sua palavra.
Augusto Olivares: – E se isto não é uma guerra civil, o que é isto, Salvador? Um sacrifício inútil? Um massacre? Uma mostra de dignidade, o que é então? E se segue a revolução pacífica até que o presidente e seus colaboradores se rendem, e o sonho de justiça e de uma nova sociedade quedam sepultados para sempre sob os escombros da derrota?
Allende: – Cale-se, Augusto, cale-se!
Augusto Olivares: – Estamos imersos em um labirinto, Salvador. Se Allende se rende, o presidente morre. E se o presidente morre sem se render, é possível que o presidente viva. Está esgotado o seu tempo!. O filme de Miguel Littin é uma das peças deste recordatório através do qual a memória de Salvador Allende é reatualizada. Todavia, a este recordatório, em geral, o que se mantém desaparecido é a personagem anônima, ainda que dotada de nome, sobrenome, endereço e inscrição civil. A personagem anônima individual dos que lutaram a um jogo de vida e de morte em suas trincheiras. Personagem anônima eivada de rostos singulares que ganharam contorno e força, imprescindíveis que se fizeram, no que se constituíram em personagens coletivas, dispostas ao campo de batalha nos Cordões Industriais, nos Comandos Comunais, nas Assembleias Populares, nos Conselhos de bairro, nos Comedouros públicos onde o homem comum (que se não se dobra em sua dignidade) esteve presente e continua a estar. Ainda que o labirinto do terror de Estado não o discrimine em sua circunscrição geográfica e o invagine por sua subsunção abusiva. Ainda que o labirinto das políticas de Estado, em seu passar a limpo os seus horrores de ontem (e sempre), não se atarefem de situar a estes tantos sob as luzes do espetáculo de uma memória encenada.
¹ Allende en su labirinto (Miguel Littin, 2014) está disponível no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=Gw-_XzMRJrI&t=3473s
² Trecho do último discurso de Salvador Allende (13 de setembro de 1973): “Trabajadores de mi patria, tengo fe en Chile y su destino. Superarán otros hombres este momento gris y amargo en el que la traición pretende imponerse. Sigan ustedes sabiendo que, mucho más temprano que tarde, de nuevo se abrirán las grandes alamedas por donde pase el hombre libre, para construir una sociedade mejor…”. IN:ROSENMANN, M. (Comp.) Salvador Allende Presente. Buenos Aires: Edicciones Sequitur, 2008 (p.136-37).
³ GAUDICHAUD, F. Poder Popular y Cordones Industriales – testimonios sobre el movimiento popular urbano, 1970-1973. Santiago: LOM Ediciones/Centro de Investigaciones Diego Barros Arana, 2014 (p.14). Vejamos o que afirma Gaudichaud: “Ao revisar a numerosa bibliografia relativa a história da Unidad Popular, é surpreendente constatar que, durante muito tempo, os elementos escolhidos para explicar o fracasso do Governo da Unidad Popular foram sobretudo a intervenção do imperialismo norte-americano, diversas vezes relacionada com um aspecto interno: a traição dos oficiais superiores que se alçaram contra o regime constitucional, apoiados pela direita e pelas classes dominantes chilenas. Tal concepção conduz inevitavelmente a uma visão reducionista e maniqueísta da Unidad Popular. É inequívoca a presença de funcionários da CIA em território chileno, a participação no assassinato do general Schneider, o financiamento da greve dos caminhoneiros e, mais importante ainda, o bloqueio econômico internacional contra o Chile, são fatos comprovados, cujas consequências são inegavelmente essenciais na explicação do golpe de Estado. Todavia, desde o ponto de vista da análise histórica, a intervenção norte-americana e a violência da repressão têm servido para ocultar ou minimizar as importantes falhas do projeto aplicado pela esquerda chilena (…). É necessário que o historiador de hoje saia da lógica que confunde a superestrutura política do Chile deste período, seus debates institucionais e seus conflitos ideológicos, com a realidade da luta de classes, na base. A história dos distintos movimentos revolucionários internacionais nos leva a esta tendência de fundo, que parece se comprovar no caso chileno. Nestes momentos de convulsões sociais, as diferenças existentes nas organizações políticas tradicionais se mostram em desajuste para com a realidade do movimento social, o que por sua vez é atravessado por correntes contrapostas” (p.15-16).
4 Vejamos o que nos conta Marta Harnecker ao evocar o estágio do tensionamento político ainda em julho de 1971: “A frente de coalizão da oposição chilena não implicava necessariamente na unificação das estratégias. Os setores mais conservadores seguem pensando em derrotar o governo, embora agora o triunfo eleitoral os inclina mais à possibilidade de abalá-lo por medidas institucionais. Os setores mais progressistas tendem a confiar mais na estratégia dos ‘marechais russos’, ou seja, em uma prolongada campanha de desgaste progressivo: ‘não apresentar jamais a batalha ao inimigo quando este irrompe pela fronteira, usando em seu proveito a mística de combate, do poder de fogo do inimigo e da organização de suas linhas. Oferecer-lhes batalhas em tais condições é arriscar a sobrevivência do próprio exército e correr o risco da rendição total mais adiante. Por isso, se retrocede até Moscou. Enquanto isto, o inimigo é fustigado para desgastá-lo, para desorganizá-lo, para dificultar seu avance, para desmoralizá-lo; porém sem nunca se lhe apresentar a batalha final. Se retrocede até Moscou, queimando terras e abandonando povos até que se aproxima o inverno e começa a nevar. É esta a hora da grande batalha e da ofensiva final. (…) É o que mais ou menos ocorreu no Chile, conscientemente para uma minoria, sob forma inconsciente para a maioria. No início do governo se encontrava o oficialismo na plenitude de suas forças e a oposição fragilizada, sem orientação, sem capacidade de resposta… Jogar de forma dura nesse momento seria fazer o que o oficialismo esperava. Seria demonstrar ao país que a oposição resistia às mudanças e estava disposta a tudo para defender os seus interesses… A única coisa que valia a pena ser defendida era a constitucionalidade chilena, a ‘nossa Moscou’. Toda batalha que pusesse em perigo o êxito final, mais valia cedê-la ao inimigo. No final das contas, este avançava, porém também se aproximava o inverno dos seus equívocos, cada vez mais alijado de sua mística, de sua coesão interna, de sua capacidade de ação, de seu próprio prestígio diante do povo”. IN: HARNECKER, M. La lucha de un pueblo sin armas: los tres años de Gobierno popular. Mimeo, agosto de 1995 (p.09). Grifo nosso.
5 Cf. FERNÁNDEZ, N.Z. La negociación del Estatuto de Garantías Constitucionales entre la UP y la DC. La elección presidencial septiembre/octubre de 1970. IN: Revista Izquierdas, enero 2021. Link: file:///C:/Users/ANDR%C3%89%20QUEIROZ/Downloads/Dialnet-LaNegociacionDelEstatutoDeGarantiasConstitucionale-7905466.pdf
6 Cf. https://www.bcn.cl/leychile/navegar?idNorma=29291
7 Cf. HARNECKER, M. La lucha de un pueblo sin armas: los tres años de Gobierno popular. Mimeo, agosto de 1995 (p.26-27).
8 Cf. http://www.memoriachilena.gob.cl/602/w3-article-128023.html
9 Vejamos este esclarecedor depoimento de Franck Gaudichaud: “Inegavelmente, esta aliança [UP] se encontrava sob a direção hegemônica dos principais partidos operários do país, o PC e o PS. A UP, ao mesmo tempo que se propõe suplantar os limites dos governos anteriores aplicando uma série de reformas importantes, afirma o seu desejo de impulsionar ‘a via chilena ao socialismo’. (…) Se for além do mito de um modelo de transição ao socialismo especificamente chileno, poderemos ver o estabelecimento de um modelo nitidamente influenciado pelo contexto internacional da Guerra Fria, seguido da ‘distensão’, assim como do peso ideológico e político do PC sobre a coalisão. (…) Por sobre as inegáveis especificidades nacionais do processo chileno, o programa da UP é um exemplo concreto do modelo da ‘via pacífica’ ao socialismo e da ‘doutrina Brejnev-Kossyguine”. (p.17). Grifo nosso. Tal doutrina declara o caminho de uma evolução pacífica para o socialismo e da legítima ação de massas no marco da legalidade burguesa.
10 Importante destacar o longa-metragem documental Compañero Presidente (1971), dirigido por Miguel Littin, no que ele registra grande parte da entrevista de Regis Debray a Salvador Allende, entrevista que seria publicada na Revista Punto Final. Sacamos este curto trecho de uma das interpelações feitas por Debray a Allende: “Você acredita que aqueles que ontem defenderam os opressores, possam hoje defender os oprimidos, sem câmbios profundos, sem que sejam substituídos por outros? Ou seja, o mesmo Tribunal que ontem ditava uma lei em favor dos latifundiários, hoje possa ditá-la em benefício dos camponeses sem mudar o Tribunal? As mesmas forças repressivas que ontem expulsavam os camponeses que ocupavam as terras, possa agora estar ao lado dos oprimidos?” (grifo nosso). Link do filme de Miguel Littin, Compañero presidente: https://www.youtube.com/watch?v=tQXr00WPExo&t=10s
11 Idem, p.19-20.
12 Idem, p.21-22. Grifo nosso.
13 Cf. El Pueblo que Falta (2015): https://www.youtube.com/watch?v=jLIgyF6yblw&t=4268s
14 Cf. Entrevista na íntegra com Guillermo Rodríguez: https://youtu.be/dMnDPhlCoIo
15 Idem
16 Idem
17 Sobre a irredutível contradição a que esteve exposta o Governo da Unidad Popular no que tange à sua reiterada defesa e compromisso para com a legalidade constitucional do Estado de direito burguês (ainda que na alusão a um processo de transformação por vias pacíficas ao socialismo) e a questão da dualidade do poder como condição irrevogável ao processo revolucionário, vejamos este esclarecedor parágrafo de Theotonio dos Santos, publicado em Chile Hoy, 19-26 de agosto de 1972: “Como escapar a esta armadilha? Isto somente é possível se a atual legalidade é usada como um instrumento para a sua própria destruição e a criação de uma nova legalidade socialista. Porém, é necessário concretar ainda mais a fundo este pleito. Uma nova institucionalidade não pode nascer da cabeça dos juristas da Unidad Popular. Ela tem que surgir da livre iniciativa das massas que vem forjando as bases desta nova sociedade. Aos juristas lhes cabe, simplesmente, expressá-la e aos órgãos legislativos, legalizá-la. Porém somente às massas lhes é dado o poder de cria-las através da prática social e da tarefa do governo popular é usar seu poder para estimular e sobretudo legitimar a nova ordem no interior da velha. O Governo Popular é assim o instrumento de resolução dinâmico e concreto da contradição entre a iniciativa revolucionária das massas e a sobrevivência de uma ordem institucional que lhes nega tal iniciativa, e conseguirá cumprir esta tarefa na medida em que atue com este princípio político em todos os setores. Como típico governo de transição, sua tarefa não é impor uma ordem, mas destruí-la. Seus funcionários devem estar submetidos a mais férrea disciplina para não buscar substituir a iniciativa das massas, e resolver os problemas desde cima com a desculpa de uma aparente eficácia, buscando se perpetuar no aparato de Estado em vez de ceder seu lugar progressivamente aos órgãos de poder criados pelas massas. Porém ao mesmo tempo que abre passo a uma nova ordem, o Governo Popular tem que defender a ordem em que se assenta a sua legitimidade e que lhe dá força de lei e poder sobre os setores da população que não lhe apoiam politicamente, assim como lhe confere o direito a utilizar o aparato repressivo do Estado burguês para defender a sua política. Porém aqui há outra terrível armadilha em potencial. Se o governo popular utiliza o aparato repressivo do Estado burguês para defender a legalidade em abstrato, está fazendo o jogo da autoconservação do Estado burguês, pois a única legalidade que existe é a burguesa, até o momento (apesar de todos os elementos contraditórios que a luta do proletariado lhe agregou). Aqui se apresenta um difícil e intrincado problema teórico e prático”. IN: DOS SANTOS, T. Bendita crisis! – socialismo y democracia en el Chile de Allende. Caracas: Fundación Editorial El Perro y la rana, 2009 (p.112-113) Grifo nosso.
18 Idem
19 Cf. Allende en su labirinto (Miguel Littin, 2014).