Oito de outubro: Amanhece em Gaza

Ainda há muitas armadilhas no mundo e é preciso quebrá-las. Os palestinos seguirão lutando. Uma pedra na mão, liberdade na cabeça. Por eles. Por você. Por mim.
Foto: Mahmud Hams/AFP/Getty Images

Oito de outubro: Amanhece em Gaza

Ainda há muitas armadilhas no mundo e é preciso quebrá-las. Os palestinos seguirão lutando. Uma pedra na mão, liberdade na cabeça. Por eles. Por você. Por mim.

Amo
a vida
que é cheia de crianças, de flores
e mulheres, a vida,
esse direito de estar no mundo,
ter dois pés e mãos, uma cara
e a fome de tudo, a esperança.
Esse direito de todos
que nenhum ato
institucional ou constitucional
pode cassar ou legar

Maio de 1964 – Ferreira Gullar

A noite, a noite, que se passa? Há lua; não há luz. Há terra; não há paisagem. Há fome; não há janta – quer dizer, não há jantar. Não há sala de jantar. Não há salas quaisquer. Não há chamado para a oração. Não há minarete, mesquita, igreja. Não há noite. Outubro, novamente. Ah, como é difícil amanhecer em Gaza. Mas amanhece.

Os americanos estão agora investindo muito em Gaza. Mais uma vez, exportam uma paz patenteada. A paz das bombas, drones e do jornalismo de qualidade, sempre precisando de recursos. Em um ano, temos visto até onde o vibrante complexo empresarial-militar aperfeiçoou a arte da produção da pazTM em escala industrial. A paz dos mísseis guiados; a paz do fósforo branco. A paz dos cemitérios. Como pode, como pode uma cidade resistir?

Uma cidade é um lugar, um território, mas é principalmente seu povo. E o povo palestino, em Gaza, Khan Younes, Rafah, não pode ser demolido. Três a cada quatro palestinos sob cerco em Gaza são refugiados de outros locais da Palestina Histórica, hoje sob a vil ocupação colonial sionista. Suas vilas, há muito ocupadas, demolidas, loteadas, seguem existindo, à medida em que seu povo resiste e insiste em, pelas próprias mãos, reivindicar seu direito ao retorno. A Palestina reside num lugar que bomba nenhuma pacifica: nos corações e mentes de seu povo em luta. 

Com a pazTM dos cemitérios, vem a liberdadeTM dos museus. O colono é livre para, após exterminar e pilhar um povo, armazenar e expor, em triunfo, seus espólios. Sobre pilhas de cadáveres, um museu colonial saúda, condescendentemente, a beleza do modo de vida daquele povo exterminado. Os colonos querem sentir pena, querem sentir uma leve culpa por uma violência passada – como se essa performática penitência redimisse a si e aos seus antepassados genocidas. Ao bom selvagem resta morrer, para que os netos dos genocidas possam, no futuro, lamentar a perda desta bela cultura – enquanto vivem dos espólios do mesmo crime que dizem lamentar.

Se algum nativo sobreviver, a ele será garantida a mistificada e infantilizada posição social de remanescente, de povo tradicional: tratado como parte da paisagem, mais um animal ameaçado de extinção a ser preservado num zoológico para que turistas e crianças apreciem a biodiversidade do apartheid. Os genocidados, vivos e mortos, se tornam entretenimento para seus algozes. Diante do fascismo colonialista, nem mesmo os mortos estão em paz – como bem demonstra a construção do Museu da Tolerância israelense (!) em cima de um milenar cemitério palestino. A isso chamam liberdade: a liberdade do colono de existir no mundo como colono, a liberdade do colonizado de morrer em silêncio.

A liberdade chegou também ao imperial business dos USA. Trata-se de liberdade de outro tipo: a de empreender um colonialismo high-tech, high profit. Este lucrativo empreendimento hoje é, mais do que nunca, administrado tal qual um negócio. O empreendedorismo imperial. Não há monopólio estatal sobre a operação do genocídio: as operações são outsourced, franqueadas, para terceirizados. Mas franquias precisam de certo acompanhamento da matriz para que se mantenha o padrão de qualidade das operações. Para tal ofício, corajosos marines aprimoraram a arte do assassínio sem riscos. O drone pousa sobre uma casa e espera a hora certa de matar

Por todos os meios necessários, seguem na sagrada defesa do lucro. Da liberdade dos acionistas da Lockheed Martin. De uma salinha no Pentágono, pratica-se um tenebroso jogo de morte. Até o último colono sionista, até o último palestino. Já faz tempo que o chefe não dá as caras no escritório. O imperialismo está de home office.

Mas há quem resista. O que os colonialistas não conseguem perdoar nos povos colonizados é a sua insistência em rejeitar os termos de tais liberdades. Afiada como a espada, o vento e a mais pesada das ondas, a Resistência Nacional Palestina escreve a própria história. Ela é a história com a qual devemos aprender. O colonizador, com medo, se cerca de muros. O colonizado, com os meios de que dispõe, constroi túneis e voa por cima dos muros. Por suas próprias mãos, transmuta-se. De colonizado, em voz passiva, se faz descolonizador, voz ativa. Não um descolonizador de ementas, vocabulário, cardápios: um descolonizador de colônias. 

A consciência culpada dos condescendentes colonos esclarecidos não suporta esse tipo de decolonialidade. A descolonização das colônias põe fim ao serviço do bom colono, que vive de mediar o acesso do bom colonizado aos palácios da metrópole. Quem precisa de palácios, além de seus moradores? A criadagem, claro. Sob a bota do mau colono, o bom colono faz seu pé de meia.

O bom colono é um racista autocomiserado, dotado de profunda coragem pretérita e covardia presente. Este, que faz carreira vendendo culpa performática, canta loas à resistência do passado para viver confortavelmente de difamar a resistência do presente – isto é, aquela que ameaça seus privilégios e financiamento presentes. Estes são os perpetradores daquilo que chamo de neocolonialismo progressista. Por todos os lados, horrorizam-se diante da possibilidade de que Os Condenados da Terra, seguindo o exemplo dos palestinos, percebam que a História não acabou. Pelo contrário, temos um longo passado pela frente.

Não completamos um ano de genocídio na Palestina. A história não se resume a uma sequência de pontos numa linha temporal. Se queremos falar em temporalidade, estamos vivendo o dia depois. Convencionou-se considerar que a Nakba começou em 15 de maio de 1948. De certo modo, estamos ainda num longo dia – ou melhor, noite – de 16 de maio. Da mesma forma, estamos também no sétimo dos Seis Dias de junho de 1967. Tais momentos não se anulam, mas se sobrepõem numa noite cada vez mais longa, cada vez mais veloz. Mais bombas, mais pazTM; mais operações de resistência, mais Condenados em busca de alforria. Ou seja: hoje faz um ano que estamos, também, em 8 de outubro.

A noite veloz se fecha sobre o rosto dos mortos. Mas a vida muda o morto em multidão. Não preciso descrever o tamanho do morticínio mais uma vez imposto contra os palestinos pelo Apartheid sionista. Tais violações estão fartamente documentadas neste Jornal. Estou aqui para dizer apenas que o dia seguinte sempre chega. Por mais que estejamos dentro da noite veloz; por mais que esta noite pareça e seja longa, sempre amanhece. E a vertigem do dia iluminará o caminho a seguir. Ainda há muitas armadilhas no mundo e é preciso quebrá-las. Os palestinos seguirão lutando. Uma pedra na mão, liberdade na cabeça. Por eles. Por você. Por mim.

Inspirado na obra do renegado Ferreira Gullar.

Caio Porto é doutorando em sociologia na Universidade de Brasília. Integra o Grupo de Estudos Retóricas do Poder e Resistências (Gerpor-UnB) e o Centro Internacional de Estudos Árabes e Islâmicos (CEAI-UFS).

Este texto expressa a opinião do autor

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