Essa matéria foi atualizada às 19h30 do dia 24/10 com a informação da morte do motorista de caminhão Geneilson Eustáquio Ribeiro.
Dois trabalhadores morreram e quatro ficaram feridos como resultado de uma operação da Polícia Militar (PM) contra o Complexo de Israel, na zona norte do Rio de Janeiro. A ação da polícia comandada pelo governador bolsonarista Cláudio Castro, responsável por três das cinco maiores chacinas do Rio de Janeiro, também paralisou o tráfego de ônibus e trens, levou trabalhadores a se jogarem na pista da Avenida Brasil em busca de proteção e impediu o funcionamento de escolas e clínicas médicas.
Paulo Roberto de Souza já estava trabalhando quando a operação começou. Motorista de aplicativo, conduzia o carro pela Avenida Brasil com um passageiro ao lado quando a bala estilhaçou o vidro e atingiu sua cabeça. “O passageiro socorreu, ajudou, mas ele veio a óbito”, contou o amigo Júlio Santos da Costa, ao jornal monopolista O Globo. Paulo deixou filhos, neto e a esposa.
Em um ônibus próximo, o trabalhador de uma empresa terceirizada que presta serviços à Marinha, Renato Oliveira Alves Reis, cochilava no banco do ônibus 493 (Central x Ponto Chic). Na mochila, uma coca-cola e mortadela, para fazer um café da manhã com os companheiros de trabalho. O som do tiro no ônibus chamou atenção do amigo, que fazia o trajeto com Renato. “Eu olhei para trás e vi o sangue saindo da cabeça dele. Como vai ser agora? Nós éramos vizinhos, nos víamos todo dia”, relatou Adonias, ao mesmo jornal.
Ainda em consequência da operação da PM – feita, segundo o porta-voz da corporação, sem dados de inteligência suficientes –, o motorista de caminhão Geneilson Eustáquio Ribeiro foi atingido na cabeça, chegou a ser entubado, mas morreu. “Ele é muito trabalhador e uma pessoa muito alegre”, contou a esposa, Rejane, antes do marido falecer. Naquele dia, eles se despediram às 5h45 da manhã. Outro homem, Pedro Henrique Machado Moreno de Sousa, foi levado ao Hospital Bonsucesso depois de ser atingido na nádega por um tiro que atravessou a bacia e saiu abaixo da cintura. Já uma mulher, Alayde dos Santos Mendes, sofreu uma perfuração na coxa direita, mas já recebeu alta.
Centenas de outros trabalhadores não foram baleados por sorte. A operação da Polícia Militar paralisou o serviço do BRT da Avenida Brasil, e passageiros de ônibus do trecho mais afetado tiveram que buscar refúgio atrás das muretas da via.
As crianças de vários bairros também foram afetadas, uma vez que uma escola da rede estadual, três unidades municipais nas comunidades de Cinco Bocas e Pica-Pau, cinco escolas municipais em Vigário Geral e Parada de Lucas e oito na Cidade Alta também deixaram de funcionar.
Esquema
A PM afirmou que a operação foi feita para “coibir o roubo de veículos e carga”, uma das justificativas padrão que a polícia usa para levar terror aos moradores de favela. O governo e a cúpula dos militares insistem em agir nas favelas, mesmo com os dados robustos sobre prejuízos que as operações causam aos moradores, e sequer cogitam aprofundar as investigações nos próprios policiais envolvidos nos roubos de carga.
O Rio é um dos estados que mais concentra roubos de carga no país, junto de São Paulo e Minas Gerais. É difícil que números tão elevados e concentrados existam sem a participação das forças de segurança. Em 2018, um ano que chegou a registrar 30 roubos de carga por dia, 12 policiais militares do 7° Batalhão da PM, em São Gonçalo, foram presos por suspeita de desvio de carga. No ano seguinte, dois agentes da Polícia Rodoviária Federal, Edmar Alves Moura e Marcelo Vieira Zimerer, também foram presos, em Minas Gerais, por desvio de carga e combustíveis.
Até as Forças Armadas participam do esquema. Em 2023, um soldado do Exército, Fabio Barbosa Silva, foi preso por participação em roubos de carga. Anos antes, em 2018, militares da mesma força vazaram, um dia antes, dados sobre uma operação de roubos de carga e veículos no Complexo do Lins.
O negócio é tão antigo que, em 1999, o policial militar de São Paulo, Luiz Antônio Ferraz, envolvido em roubo de cargas, já denunciava, em depoimento, dois comandantes e um sargento da PM de participarem do esquema, junto do grande empresário William Walder Sozza. Também na década de 1990, mas no Rio, o Capitão Guimarães, hoje chefe de um bando paramilitar do jogo do bicho que envolve policiais militares e civis, começava a roubar carga, quando ainda era capitão do Exército na ativa.
Exigências
Nada disso parece ser levado em conta pelos governadores e chefes de polícia do Rio de Janeiro, que optam por manter à guerra aos pobres na forma de operações policiais. O resultado é o prejuízo sanitário, financeiro, educacional e cultural aos milhões de moradores nas favelas. No Complexo da Penha e Manguinhos, zona norte do Rio, os prejuízos econômicos aos moradores causados por operações entre 2022 e 2023 chegaram a R$ 14 milhões. Os pequenos comerciantes perderam mais da metade do faturamento por conta das incursões.
No âmbito da saúde, as operações policiais aumentam as chances de depressão, ansiedade, insônia prolongada e hipertensão arterial nos moradores das favelas, de acordo com uma pesquisa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) de 2023 feita com base no levantamento de moradores de seis favelas cariocas.
Esses impactos têm sido crescentemente rechaçados pelos moradores em união com outros setores. “Educador não tem peito de aço! Basta de operação policial nas comunidades! Pela segurança de crianças, moradores e profissionais da Educação”, foram algumas das frases escritas esse ano em milhares de cartazes levantados por moradores e professores de escolas do Complexo da Maré, contra as operações nas comunidades