Membros do Clube Náutico Cruz e Sousa, fundado em 1919 em Itajaí/Santa Catarina, erguem a taça. Foto: Reprodução
Tudo começou com a criação de um clube de remo formado só por negros operários e, pior naquela época, presidido por uma diretoria inteira só de mulheres (à exceção do cargo de Orador que, como se fosse ironia, elas, sempre tachadas de faladeiras, entregaram a um representante masculino). A ousadia, que em 1919 uniu na cidade catarinense de Itajaí, um grupo de pessoas excluídas da vida social e esportiva branca e burguesa de Santa Catarina, chamou-se Clube Náutico Cruz e Sousa e fez parte da onda revoltosa que tomaria conta do esporte brasileiro, que culminou com a derrubada do elitismo no futebol.
Trazido ao Brasil provavelmente em 1894/95 por Charles Miller, paulista descendente de ingleses, o futebol foi dominado durante muito tempo por uma aristocracia branca e endinheirada, que excluía os pobres e os negros (afinal a abolição da escravatura só tinha ocorrido em 1888, poucos anos antes). Na década de 1920, porém, os excluídos romperam as proibições e entraram em campo na marra. Foi uma revolução, conforme Mário Filho no livro O negro no futebol brasileiro, de 2003: “Desaparecera a vantagem de ser de boa família, de ser estudante, de ser branco. O rapaz de boa família, o estudante, o branco, tinha de competir, em igualdade de condições, com o pé-rapado, quase analfabeto, o mulato e o preto para ver quem jogava melhor. Era uma verdadeira revolução que se operava no futebol brasileiro”.
DO LIMÃO UMA LIMONADA
“Da mesma maneira que o novo esporte caiu no gosto da elite, ele também chamou a atenção das camadas menos favorecidas (…)Era comum a presença nos barrancos ao redor das primeiras canchas de uma pequena multidão a assistir a exibição de 22 bem nascidos jovens, divididos em 2 teams, disputando a atenção de uma platéia composta por moças e rapazes, elegantemente trajados, das mais distintas famílias locais. Logo o entusiasmo tomou conta das classes populares que começaram a procurar os terrenos baldios, improvisando marcações, balizas e adaptando o jogo às condições do terreno. Surgia dessa maneira uma das mais importantes instituições do futebol: a pelada, mais um reflexo da imensa capacidade de improvisação que caracteriza o povo brasileiro”, contou Fernando da C. Ferreira, no artigo Futebol de Classe:A importância dos times de fábrica nos primeiros anos do século XX publicado pela revista digital EfDeportes em 2003.
“Quando começaram a jogar futebol por aqui, os negros não podiam derrubar, empurrar, ou mesmo esbarrar nos adversários brancos, sob pena de severa punição: os outros jogadores podiam bater no infrator (os policiais também). (…)Esta redução dos espaços dentro das ‘quatro linhas’ obrigou os negros a jogarem com mais ginga, com mais habilidade, evitando o contato físico e reinventando os espaços. Sim, porque o drible não é outra coisa que a criação de espaço, onde o espaço não existe. Indubitavelmente, foi o jogador negro que imprimiu no futebol brasileiro um estilo próprio de magia e arte, diferente das formas arcaicas do jogo de bola, bem como da sua descendência inglesa imediata” – relatou Antonio J.G. Soares em sua tese de doutorado.
SINCERIDADE SÓ EM INGLÊS
Segundo artigo publicado em 2013, a dinâmica que envolveu esse esporte em Itajai foi a mesma que ocorreu no Brasil. “O futebol (na cidade portuária catarinense)vai aos poucos popularizando-se, diferente daquelas partidas realizadas nos clubes grã-finos ou nas melhores avenidas das grandes cidades.”
Conforme livro do intelectual negro, carioca, Joel Rufino dos Santos: “O dribling foi popularizado para drible, e dentro do campo ninguém mais se lembraria de avisar o companheiro do adversário por perto com um man on you, bastava gritar ‘ladrão’. Sumia o field, o full-back, inside-right, referee, linesman do contexto do futebol, (linguagem) que permeara (o esporte) até alguns anos atrás. Até 1930, se um jogador se machucasse, o ofensor só pedia desculpas sinceras se fosse em inglês: I’m sorry.”
CRUELDADE EXPOSTA
Em 1919, a agitação que sacudia grandes cidades brasileiras no âmbito esportivo,causou impacto também em Itajai, naquele ano, com o surgimento de dois clubes de remo, o Náutico Marcilio Dias e o Almirante Barroso. Mas ambos eram formados por famílias ilustres e abastadas da cidade. E os preços cobrados para ser associado restringiam a entrada de trabalhadores naquela hierarquia inatingível. Isso era resultado de um envolvimento das mesmas famílias da cidade em várias atividades, fossem estas clubes sociais, esportes, política (predomínio da família Konder-Bornhausen), comércio, etc, formando um grupelho fechado e esnobe, impedindo a participação ou manifestação de outros segmentos, como as classes populares, claramente indesejáveis.
Mas estas não ficaram de braços cruzados. Principalmente os portuários, ao perceberem “que a escravidão continuava, mas com nova roupagem – a da exploração patronal”, conforme afirmou André L. Rosa.
Bem organizados na Sociedade Beneficente XV de Novembro, criaram em junho de 1919 (semanas após os remadores burgueses) o Clube Náutico Cruz e Sousa, formado só por negros. E com a diretoria entregue a mulheres, as valentes Etelvina Vieira (presidente), Mariazinha Mascarenhas (vice), Maria Ramos, Ernestina, Lucelia e Maria Caetana. Um único homem ficou com o posto de Orador: Firmino Rosa.
Se denominamos essas mulheres de valentes é porque a classes poderosas de Itajaí cometiam intolerâncias até cruéis contra os mais humildes. Isso era tão marcante que virou tema específico de um livro: Nacionalidade e Etnicidade no Atlântico Sul, lançado em 2011 pelo historiador negro José Bento Rosa da Silva, que fez uma espécie de “ajuste de contas com o passado”.
O caso de Firmino Rosa foi típico. Sua escolha como Orador do novo clube teve uma grande conotação simbólica: neto de ex-escravo, em 1906 seu pai foi brutalmente assassinado por Ernesto Schneider, migrante alemão comerciante. O caso, famoso na época, ganhou um forte viés étnico e classista.
“O Cruz e Sousa era a organização operária que se estendia em entidade esportiva. Constituída por portuários e negros, a guarnição náutica proveniente da Sociedade Beneficente XV de Novembro trazia em sua composição (diretoria e atletas) sujeitos sociais que além de lutarem contra as imposições e desmandos patronais, levantavam-se também contra o preconceito racial”, disse André L.Rosa.
Os negros, que ao batizarem sua equipe com o nome do poeta negro catarinense Cruz e Sousa mostraram que tinham leitura e conhecimentos apesar de serem pessoas humildes, foram recebidos com susto. Isso fica nítido na notícia do fato esportivo pela Revista Rubra Azul (do Clube Náutico Marcilio Dias, da burguesia): “Pela primeira vez na história de S.Catarina, a 21 de abril de 1920 aparecia na raia uma guarnição de gente de cor, coisa nunca vista no Estado.”
CONFRONTANDO PATRÕES NA ÁGUA E NO GRAMADO
Animados com sua iniciativa no remo, apesar dos boicotes das classes dominantes (anularam sua conquista da “Taça para Todos”, a maior competição náutica estadual) os membros do Cruz e Sousa decidiram romper barreiras também no futebol. Juntamente com outros negros de Itajaí fundaram em 28 de abril de 1921 o Humaytá Foot-Ball Club. A agremiação surgia 2 anos após o Cruz e Sousa e muitos dos participantes da equipe náutica também atuaram no Humaytá.
“Acredito que a estratégia utilizada pelo operariado era a de conquistar seu espaço no cenário aocial. E o incentivo foi proveniente de uma instituição operária (Sociedade Beneficente XV de Novembro), que talvez percebendo a articulação de comerciantes, políticos e polícia no sentido de inviabilizar qualquer manifestação do trabalhador, o esporte poderia servir de meio eficiente para simbolicamente enfrentar tais adversários. Dessa forma o confronto com os patrões era feito através das disputas esportivas e o sucesso obtido nas raias ou campos de futebol era destacado nos jornais, que outrora não mencionavam as tentativas do operariado, quando este pssava a reivindicar melhores salários.”, afirma André L. Rosa.
E prossegue: “Tratava-se de um confronto de classes, mesmo que ‘apenas’ no espaço esportivo e que revelava situações bem opostas. De um lado estavam os trabalhadores, pois estes estavam atuando em iguais condições com aqueles que eram seus patrões,e obtendo triunfos. De outro a elite de Itajaí, que durante muito tempo praticou atividades esportivas em círculos restritos.”
E complementa: “O Cruz e Sousa finalizou atividades na década de 1930 e o Humaytá no inicio de 1940. Suas participações não foram apenas figurativas. Em que pese a omissão de seus feitos por parte dos ‘relatos oficiais’ (…)ainda é possível destacar a existência dessas equipes e compreender as motivações que levaram seus membros a buscar, nos esportes, um meio de sociabilidade e de enfrentamento.”
Fontes:
_Antonio J.G. Soares, tese de doutorado Futebol, Raça e Nacionalidade no Brasil: Releitura da história oficial. Universidade Gama Filho,RJ, 1998.
_Fernando da C. Ferreira. Artigo Futebol de Classe:A importância dos times de fábrica nos primeiros anos do século XX, revista digital EfDeportes,2003.
_ Mário Filho, livro O negro no futebol brasileiro, Mauad Editora, RJ, 2003.
_ Lana G. Pereira, Vanessa Seibt, George S. Manske e Julio Cesar C. de Souza. Artigo O futebol em Itajaí em 1919: Narrativas jornalísticas e o surgimento de um clube, revista digital EFDeportes,2013.
_J.R. dos Santos, livro História Política do futebol brasileiro, Editora Brasiliense,SP, 1981.
_ André Luiz Rosa, Dissertação de Mestrado em História Cultural Operários da bola: Um estudo sobre a relação dos trabalhadores com o futebol na cidade de Itajaí (SC) entre as décadas de 1920 a 1950, UFSC, 2011.