Munduruku protestam contra Ferrogrão durante realização de uma audiência em Itaituba (PA), em dezembro de 2017. Foto: Bárbara Dias
No dia 15 de março deste ano, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, suspendeu todos os processos em tramitação no Ministério da Infraestrutura, na Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e no Tribunal de Contas da União (TCU) referentes ao projeto da Estrada de Ferro-170, conhecida como Ferrogrão.
Essa notícia não foi bem recebida no governo federal e entre seus aliados. No entanto, para compreender a decisão do Ministro do STF e o que está em jogo com a aprovação da Ferrogrão, é necessário recuar alguns passos nesse processo.
Nove anos de Ferrogrão, como chegamos aqui?
Em 2012, quatro monopólios transnacionais – ADM, Bunge, Cargil e LDC (Louis Dreyfus) – e a nacional Amaggi encomendaram à Estação da Luz Participações (EDLP) um estudo de logística de grãos no Brasil. O estudo resultou na proposta de construção de uma Estrada de Ferro de quase um mil quilômetros (km) de extensão entre a cidade de Sinop, no Mato Grosso (MT), e o Porto de Miritituba, na cidade de Itaituba, no Pará, cortando o estado do Pará entre as bacias do rio Tapajós e Xingu. O objetivo seria criar um corredor de exportação de commodities para escoar a produção, principalmente de soja e milho, do Mato Grosso pelos portos do Arco Norte, ao invés dos portos de Santos/SP e Paranaguá/PR, principal via de escoamento das exportações do MT hoje.
Esses monopólios formaram o consórcio Pirarara que já somam mais de dois bilhões de dólares (mais de 10 bilhões de reais) em investimentos de infraestrutura de logística na região conhecida como Arco Norte (seis estruturas portuárias na região Norte e uma na região Nordeste). Em entrevista ao portal Canal Agro, o CEO da EDLP, Guilherme Quintella, afirmou que já em 2012 o consórcio Pirarara apresentou ao governo federal a proposta de construção da ferrovia: “Fomos até o governo, na época da presidente Dilma, sugerir a substituição da duplicação da BR-163 [Cuiabá-Santarém] pela Ferrogrão. Ela gostou do projeto, mas, com os problemas fiscais do país, o governo sinalizou que não bancaria mais a infraestrutura”. Ainda em 2012, foi realizado um Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI), no qual o governo fez um chamamento público para empresas apresentarem um estudo de implantação da ferrovia, para o qual 16 consórcios se apresentaram, as chamadas parcerias público-privado.
Em 12 de maio de 2016, o ex-governador e ex-senador do Mato Grosso, Blairo Maggi – convenientemente também o fundador e um dos principais acionistas do grupo Amaggi – assumiu o cargo de Ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento durante o governo de Michel Temer. Poucos meses depois, em dezembro daquele ano, por meio da Medida Provisória (MP) 758/2016, Temer aprovou a exclusão de 862 hectares do Parque Nacional do Jamanxim, unidade de conservação ambiental federal que estava “no caminho” do trajeto previsto para a Ferrogrão. Nesse período, o projeto contava já com o irrestrito apoio do então chefe da área de Parcerias de Investimentos do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), Tarcísio Gomes de Freitas.
Logo depois da aprovação da MP, transformada em lei em maio de 2017, grupos indígenas da região que seria diretamente afetada pela Estrada de Ferro passaram a exigir o cumprimento da Convenção nº169 da Organização Internacional do Trabalho, incorporada pela legislação brasileira no início dos anos 2000. Essa convenção indica que o território ocupado por comunidades tradicionais é parte integrante de sua cultura e seus modos de vida e que, portanto, qualquer uso desse território deve passar pela consulta e aprovação prévia de seus habitantes.
Na época, o então presidente da ANTT, Alexandre Porto, garantiu que só enviaria o projeto ao TCU após a realização da consulta, porém, poucos meses depois, em abril de 2018, Tarcísio Gomes de Freitas declarou em um seminário no Congresso a esse respeito: “A oitava [consulta] como vocês estão falando, tem que ser pós leilão. Não adianta gastar energia agora. (…) Isso não vai acontecer, assim não. Não vai ter projeto assim. Nós não temos tempo”. Em janeiro do ano seguinte, Freitas, capitão da reserva, formado pela Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) e pelo Instituto Militar de Engenharia (IME), passou a integrar a equipe do governo Jair Bolsonaro, no cargo de Ministro da Infraestrutura.
Com a nova configuração do Ministério, o projeto da Ferrogrão ganhou fôlego, e o leilão da concessão da ferrovia foi programado para o primeiro trimestre de 2021. Ainda no início de 2019, foram validadas duas audiências públicas promovidas pela ANTT em 2017 – uma em Cuiabá e outra em Brasília – negando a promessa de realizar a consulta antes de encaminhar o processo ao TCU. Por esse motivo, o Instituto Socioambiental Floranativa (ISA Floranativa) moveu ação civil pública no município de Itaituba, conquistando liminar concedida pela juíza federal Sandra Maria Correia da Silva. O governo federal recorreu da decisão, que foi encaminhada ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) do Distrito Federal e suspensa pelo então juiz Kássio Nunes Marques – hoje ministro do STF, indicado por Bolsonaro e apoiado pelo agronegócio.
No ano seguinte, o ISA Floranativa promoveu outra ação civil pública na qual a juíza Sandra da Silva apontou a inconstitucionalidade da MP 758/2016, com base na decisão dada pelo STF em 2018 a respeito de ação movida contra a viabilização do processo de construção da Usina de Belo Monte, em 2012. Decidiu-se à época que obras como essa, de alto impacto ambiental e socioeconômico não poderiam ser viabilizadas por meio de MP. Novamente, a pedido da ANTT, a nova liminar foi cassada pelo juiz Jirair Aram Megueriam, do TRF1. O processo seguiu para o TCU até a suspensão, no último 15 de março, pelo ministro Alexandre de Moraes. A decisão foi alvo, no dia seguinte, de críticas por parte do filho do presidente, Eduardo Bolsonaro – junto ao latifundiário e secretário em Assuntos Fundiários, Nabhan Garcia –, em seu canal no YouTube. Ainda, no dia 30 de março, o ministro da Infraestrutura declarou que: “O importante é que vamos fazer. Por um caminho ou por outro caminho, vamos fazer”.
Povos tradicionais e preservação ambiental
Existe um nítido esforço por parte do governo federal em caracterizar este projeto como “sustentável” – inclusive no encontro dos interesses e pressões exercidos, principalmente por EUA e União Europeia, para que o agrobusiness brasileiro seja compatível com o “desenvolvimento sustentável”, sob risco de sofrer sanções econômicas e políticas no mercado internacional. Isso se dá sob o argumento de que a infraestrutura sob o modal férreo emite menos carbono do que o rodoviário, além de evitar o padrão de desmatamento “espinha de peixe” que se forma nos entornos das rodovias, como já é identificado nas margens da BR-163 [Cuiabá-Santarém].
No entanto, uma série de estudos da Climate Policy Initiative, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro (RJ), identificou que: “A Ferrogrão tem sido apresentada com a vantagem ambiental de não permitir a ocupação desordenada, como acontece com as estradas na Amazônia, e o efeito desmatamento em ‘espinha de peixe’. Contudo, a análise dos pesquisadores do CPI/PUC-RJ revelou outro padrão de desmatamento diretamente associado ao projeto. Os pesquisadores encontraram que a construção da ferrovia incentivará agricultores e pecuaristas localizados no estado do Mato Grosso a ampliarem a produção, aumentando a demanda por terras. Caso nenhuma medida de mitigação seja implementada, as projeções indicam que isso pode induzir o desmatamento de 2.043 km² de vegetação nativa em quase quarenta municípios desse Estado”. A EF-170 passará no centro do Parque Nacional do Jamanxim, o que, além do desmatamento necessário à sua construção, provocará impactos não mensuráveis para habitantes locais, tais como aumento considerável da poluição sonora e risco de acidentes. As aldeias indígenas localizadas a um raio de 10 km do traçado da ferrovia, próximas ao Porto de Miritituba, além de comunidades ribeirinhas e outras aldeias às margens do Rio Tapajós, serão gravemente impactadas pelo aumento considerável do fluxo de embarcações transitando pelo rio, em direção ao rio Amazonas e ao Atlântico.
À quem serve a Ferrogrão?
É importante destacar que a idealização desse projeto é precedida de uma sistemática expansão da soja do norte do Mato Grosso para o estado do Pará – da qual é sintomática o aumento expressivo das queimadas na região entre o rio Xingu e o rio Tapajós – e hoje já instalada na região do Baixo Amazonas. A construção da ferrovia impulsiona ainda mais a expansão dessa fronteira agrícola. Assim, chegamos ao “x” da questão: à quem serve a Ferrogrão?
Na resposta a essa pergunta podemos esboçar duas conclusões iniciais. A primeira é de que – considerando que os principais produtores de grãos, principalmente soja, no Brasil são grandes proprietários de terra monocultores, em sua maioria monopólios transnacionais com mínima ou nenhuma participação de capital nacional – serão empresas monopolistas, essencialmente estrangeiras, que lucrarão diretamente com o custo reduzido do frete de suas mercadorias para o mercado internacional. Além do benefício gerado aos principais compradores desses produtos, como China e EUA. Esses interesses estão, nesse e na maioria dos casos, resguardados pelo velho Estado brasileiro, impulsionando a desnacionalização e primarização de nossa economia.
A segunda conclusão é de que, retroalimentadas, a expansão da fronteira agrícola na amazônia e a construção da Ferrogrão geram também outra ordem de problemas. Todo esse território é secularmente ocupado, tanto por indígenas, como também por quilombolas, médios e pequenos proprietários, além de posseiros e arrendatários de pequena produção. Devido à sua fragilidade econômica e jurídica, inevitavelmente essas populações serão alvos do latifúndio monocultor em expansão. O conflito hoje experienciado entre os povos indígenas do Parque Nacional do Jamanxim e o agronegócio tende a se expandir e se aprofundar, tal como o avanço desse cultivo. À quem serve a Ferrogrão? Certamente não ao desenvolvimento “sustentável” da Amazônia, aos interesses econômicos nacionais, e muito menos às gentes do “Brasil profundo”.
Layout geral de Concessões de Ferrovias Federais e Rodovias na Amazônia legal
Referências
Systra. Estudos de viabilidade técnica para a implantação da ferrovia EF-170 (Ferrogrão) no trecho entre Sinop/MT e Miritituba/PA; www.systra.com.br.
Ministério da Economia, Governo Federal. Programa de Parcerias e Investimentos: Ferrogrão concession from Sinop/MT to Miritituba/PA.
Climate Policy Initiative – CPI. Ferrogrão: fragilidades e lições para a implementação de uma agenda de infraestrutura sustentável. PUC-Rio; Setembro/2020.
André Boas. Ferrogrão, a path of ilusions. Pulitzer Center Update. 28 de Agosto de 2020.
Canal Agro. ‘Ferrogrão é a nova revolução na agricultura’, diz executivo. Entrevista concedida por Guilherme Quintella em 30 de Outubro de 2019.
Bettina Barros. Tradings ratificam interesse na construção da Ferrogrão. Valor Econômico. 05 de Novembro de 2015.