Com cobertura jurídica garantida pelo ex-juiz, genocídio de pobres deve crescer na mão das polícias pelo país. Foto: Fabiano Rocha/16.07.2018
Causou repercussão o chamado “pacote anticrime” anunciado pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública do atual governo militar, Sérgio Moro, que propõe ao apodrecido Congresso Nacional a mudança de 14 pontos do Código Penal, do Código de Processo Penal, da Lei de Execução Penal, da Lei de Crimes Hediondos e do Código Eleitoral. Tal pacote é apresentado para a sociedade brasileira num contexto de desenvolvimento de um golpe militar contrarrevolucionário preventivo a inevitável rebelião popular que se gesta em nosso país.
Tais alterações propostas pelo juiz, segundo alardeiam, visam o combate mais duro a crimes violentos, organizações criminosas e a corrupção. Utilizando-se do desespero do povo açoitado pelo crescimento em espiral da delinquência, Moro e o governo buscam legitimar uma política ainda mais genocida de guerra aos pobres, dando cobertura legal para as ações sanguinárias das forças policiais, além de rasgar vários direitos democráticos.
O que pretende o juiz-político
Algumas das mais draconianas mudanças propostas pelo ex-juiz Sérgio Moro são:
a) Num dos pontos mais polêmicos, o projeto prevê que, em julgamento de crimes cometidos em legítima defesa, “o juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.
Com isto, o ex-juiz está dando cobertura legal sobretudo para as execuções deliberadas de pobres nas favelas, nos verdadeiros julgamentos sumários aplicados por policiais. Ou seja, o agente que assassinar alguém, seja da forma que for (seja a vítima inocente ou não) poderá alegar que estava com “medo” ou movido por “forte emoção”, tendo, dessa forma, sua pena reduzida à metade ou mesmo sequer sofrer punição. Além do mais, o caso só será julgado caso houver “excesso”.
b) O projeto altera a Lei nº 12.850/2013, sobre a definição do que é organização criminosa e amplia o conceito, além de estabelecer novas regras sobre prisão de integrantes e lideranças. O texto inclui na lei que condenados por organização criminosa que sejam encontrados com armas iniciem a pena em presídios de segurança máxima. Nesse ponto, especialmente, não se deixa evidente quais são os critérios para “organização criminosa”, podendo os movimentos populares combativos serem tachados como tal.
c) Determina que a prisão após condenação em segunda instância seja a regra no processo penal, o que contraria a própria lei que estipula, atualmente, que todos devem partir da presunção de inocência até concluir o julgamento.
d) O texto prevê início de cumprimento da pena em regime fechado para todos os condenados por crimes por armas de fogo.
e) Em situações de crimes hediondos com morte, o condenado só poderá progredir de regime após cumprir três quintos da pena.
f) Prevê alteração no Código de Processo Penal para que decisão de Tribunal do Júri seja cumprida de forma imediata, principalmente nos casos de assassinatos.
Mais gente presa gera mais delinquência
Segundo Vera Malaguti (professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e Secretária-Geral do Instituto Carioca de Criminologia, ICC), em entrevista ao jornal AND em janeiro deste ano, rechaçou a política de encarceramento em massa, vendida como “solução” para o problema da segurança pública.
“Todo o problema inicia-se com o fato de o capitalismo ser uma máquina de produzir barbárie, miséria, precarização e, nesse contexto, precisa de um controle brutal sobre os povos do mundo. A questão da segurança pública desenvolve-se hoje como uma guerra, tomando uma forma bélica para lidar com o levantamento dos pobres contra essa miséria e para enriquecer essa indústria. E isso tudo gerou o problema que estamos assistindo: um enorme encarceramento em massa, um sem número de presos todos os dias”, disse.
“Todas as facções surgem da prisão, da violência e das péssimas condições das prisões, e são essas condições que obrigam os milhares de homens ali jogados a se organizarem e alimentarem as facções. Basta pensar nas condições desumanas que reinam nos presídios do Ceará, Rio de Janeiro e em todo o país”, explicou.
“A situação da criminalidade”, prossegue Vera, “só pode ser administrada prendendo menos gente: aumentar as redes de proteção à pobreza e aos familiares dos presos”.
ICC se pronuncia
Entre as entidades democráticas que se pronunciaram sobre assunto, destacamos uma nota lançada pelo ICC, a qual, segundo sua relevância, reproduzimos em trechos.
Na nota, o ICC, que deixa claro pretender “enriquecer o debate e qualificar as reflexões sobre o tema”, aponta que “em linhas gerais, o anteprojeto apresentado é uma dose mortal de mais do mesmo”. E continua:
“Há cerca de duas décadas a legislação penal brasileira vem sendo retalhada por reformas que têm apostado todas as suas fichas na criação de novos tipos penais, elevação de penas e endurecimento de regimes prisionais. Essa aposta reiterada tem na chamada ‘guerra às drogas’ seu exemplo mais eloquente. Os indicadores de violência do período, apenas para ficar nos dados mais frios e estatísticos, são a prova do fracasso dessa política.
É perceptível e chocante o esforço do anteprojeto no sentido de concentrar poderes nas mãos dos juízes, como se as circunstâncias experimentadas nesta quadra histórica não fossem sugestivas exatamente do contrário, de um pacto republicano que promovesse o reequilíbrio entre os poderes, reduzindo o enorme protagonismo que o Judiciário vem ostentando. O efeito suspensivo dos recursos deixa de ser uma questão de legalidade e passa a ficar completamente subordinado ao campo de discricionariedade dos juízes (arts. 421, §§ 3º e 6º, 617, § 1º, 637, §§ 1º e 2º, do CPP). As alterações propostas neste item estão em conflito aberto com o princípio da presunção de inocência, de base constitucional indiscutível, e estabelecem uma espécie de roleta, em que apenas réus agraciados por uma distribuição afortunada serão tratados como inocentes até o trânsito em julgado de suas ações. Para além de contrariar dispositivo expresso da Constituição de 88 (art. 5º, inc. LVII), soa oportunista a pretensão de usar a base parlamentar do governo para se antecipar a uma decisão que o Supremo Tribunal Federal está em vias de proclamar, sob condições preocupantemente dramáticas. Se já não estivesse explícito, o dispositivo que equipara “condenação em segunda instância” ao “trânsito em julgado” (art. 164, da LEP), para fins de extração de certidão, é a digital de uma tendência política colocada em movimento com o propósito de neutralizar uma cláusula pétrea e violar a hierarquia normativa.”
A nota prossegue explicando as alterações propostas pelo ministro de Bolsonaro. Vamos a um longo trecho:
“A alteração proposta ao artigo 421 do Código de Processo Penal, que retira o efeito suspensivo dos recursos interpostos em face da decisão que encaminha o réu para julgamento perante o Tribunal do Júri, ignora o elevado percentual de decisões de pronúncia que são reformadas em segunda instância. Reduz a segurança jurídica e tem o potencial de criar situações inusitadas, em que o Estado terá submetido ao Tribunal do Júri réus que acabaram sendo impronunciados em razão do provimento de seus recursos. A drástica redução da esfera de incidência dos embargos infringentes (art. 604, § 1º, do CPP) é outra proposta que não responde a nenhuma razão de ordem prática ou fenômeno social. Qual a necessidade de acabar com garantias previstas na legislação para estabelecer proteção a cidadãos que porventura se encontrem na posição de réus? A que interesses atendem tantas medidas de espoliação de direitos?
Anda bem o anteprojeto na alteração proposta quanto ao artigo 23, §§ 1º e 2º do Código Penal e teria andado melhor se, no lugar de “violenta emoção”, houvesse inscrito 3 “perturbação de ânimo”, que é a locução doutrinária e internacionalmente consagrada. A redução de pena sugerida contempla qualquer réu, não apenas o agente de segurança pública, e reconhece circunstâncias específicas (medo, surpresa e violenta emoção) que devem ser objeto de valoração jurídico-penal, proporcionando penas mais adequadas ao caso concreto. O mesmo não se pode afirmar quanto ao artigo 25, incisos I e II do Código Penal, que reedita, apenas para agentes de segurança pública, a legítima defesa presumida, que teve assento remoto na legislação penal brasileira (art. 35, § 1º, do Código Penal de 1890) e era utilizada para tornar impune aquele que matava o ladrão noturno. Esse dispositivo fere o racional de normas domésticas e internacionais orientadas por premissas exatamente opostas: agentes de segurança pública, porque mais preparados e treinados no uso e manuseio de armas de fogo e em situações de confronto, se submetem a regras de legítima defesa mais restritivas. O Código de Conduta para Funcionários Encarregados de Cumprir a Lei da ONU, adotado por sua Assembleia Geral em 17 de dezembro de 1979, estabelece que “os funcionários responsáveis pela aplicação da lei só podem empregar a força quando tal se afigure estritamente necessário e na medida exigida para o cumprimento do seu dever” (art. 3º). Considera o emprego de armas de fogo, mesmo nos casos de legítima defesa, “medida extrema”, determinando que “devem fazer-se todos os esforços no sentido de excluir a utilização de armas de fogo” e que, “em geral, não deverão utilizar-se armas de fogo, excepto quando um suspeito ofereça resistência armada, ou quando, de qualquer forma coloque em perigo vidas alheias e não haja suficientes medidas menos extremas para o dominar ou deter” (art. 3º, “c”). Essas regras foram explicitamente adotadas no Brasil, através da Portaria Interministerial nº 4.226, de 31.dez.10. Tal Portaria submete o emprego de força por agentes de segurança pública aos princípios da “legalidade, necessidade, proporcionalidade, moderação e conveniência” (item 2), e só faculta o disparo de arma de fogo “em caso de legítima defesa própria ou de terceiros” (item 3), dentre outras restrições pertinentes. A lei nº 13.060/2014 também proíbe expressamente o uso de arma de fogo contra pessoa em fuga ou veículo que desrespeitou bloqueio da via, desde que não se apresente risco imediato à vida ou à integridade física do policial ou de terceiros (art. 2º, § único, incs. I e II). Execuções policiais sumárias promovidas sob o disfarce dos “autos de resistência”, dramática realidade dos centros urbanos 4 brasileiros à qual o anteprojeto provê considerável cobertura, constituíram o objeto da sentença condenatória proferida pela Corte Interamericana no Caso Favela Nova Brasília em 16.fev.17. Segundo seus itens 17 e 20, respectivamente, “o Estado deverá adotar as medidas necessárias para que o Estado do Rio de Janeiro estabeleça metas e políticas de redução da letalidade e da violência policial, nos termos dos parágrafos 321 e 322 da presente Sentença” e “o Estado deverá adotar as medidas necessárias para uniformizar a expressão ‘lesão corporal ou homicídio decorrente de intervenção policial’ nos relatórios e investigações da polícia ou do Ministério Público em casos de mortes ou lesões provocadas por ação policial. O conceito de ‘oposição’ ou ‘resistência’ à ação policial deverá ser abolido, no sentido disposto nos parágrafos 333 a 335 da presente Sentença”. Neste particular, o anteprojeto caminha na contramão de um problema brasileiro crônico – que demanda remédio, e não estímulo.
As mudanças pretendidas no artigo 33, § 5º, e 59, § único, do Código Penal e artigo 2º, § 6º, da Lei nº 8.072/90 são outros expedientes que hipertrofiam o poder dos juízes. O emprego de conceitos vagos e indeterminados na definição de regimes prisionais viola o princípio da legalidade e habilita o magistrado a fixar quase qualquer pena, como se operasse na condição de legislador. Ressuscitar-se o conceito frustrado de criminoso habitual (ou por tendência) é sintoma de grave cegueira teórica, com inegável potencial de abarrotar ainda mais as cadeias brasileiras, que já constituem “estado de coisas inconstitucional”, conforme declarado pelo Supremo Tribunal Federal nos autos da MC-ADPF 347.
O exotismo do anteprojeto ficou por conta do artigo 1º, inc. III, da lei nº 12.850/13, cujo conteúdo confere dignidade legislativa a algumas organizações criminosas existentes em nosso país. No ponto, o rigorismo descritivo utilizado para apresentar as “facções” de extração popular e originárias em presídios (PCC, CV, ADA, Terceiro Comando e Família do Norte) não alcançou também as “Milícias”. O Ministério da Justiça brasileiro não conhece nenhuma milícia específica ou pretendeu tratá-las como um mal menor, designando como espécie o que na verdade é gênero. As milícias são manifestações perigosas do sistema penal subterrâneo e sua capacidade de influenciar o processo eleitoral e exercer o poder político deveria atrair maior atenção da cúpula do executivo federal, independentemente de suas afinidades ideológicas.
Sobre “medidas para elevar penas em crimes relativos a armas de fogo”, é preciso recordar a decisão que o povo brasileiro proclamou após o resultado do referendo de 2005, que negou vigência ao artigo 35 da lei nº 10.826/03 (“É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6o desta Lei”). A vitória do “não” deveria ter conformado toda a legislação criminal correlata para que, daquele momento em diante, a posse ou o porte de armas fossem enquadrados não como crimes, mas no máximo como contravenções penais. Não é possível compatibilizar a vedação popular ao proibicionismo com dispositivos legais que criminalizam a posse ou o porte de artefatos cuja comercialização foi expressa e soberanamente autorizada.
A medida proposta no artigo 91-A do Código Penal ostenta indisfarçável natureza confiscatória, da qual poucos brasileiros escaparão se submetidos às agruras do processo criminal. Os “critérios” para perdimento de produto do crime não guardam relação necessária com o delito que motivou a condenação, viabilizando uma devassa patrimonial na vida de todo aquele que for condenado à infração a qual a lei comine pena máxima superior a seis anos. Em termos mais simples, pretende-se exigir que todo cidadão brasileiro mantenha contabilidade rigorosa de sua evolução patrimonial durante a vida, de tal forma que, instado pela justiça criminal, esteja sempre em condições de comprovar correspondência absoluta entre patrimônio e ganho declarado, sob pena de ter que entregar propriedades privadas ao Estado. Quer-se, também, atribuir a juízes o poder de escolher a destinação de obras de arte ou outros bens de relevante valor cultural ou artístico cujo perdimento haja sido decretado (art. 124-A), como se o concurso público para ingresso na magistratura atestasse o domínio desse tipo de conhecimento. Espera-se que essa proposta não tenha sido escrita com a finalidade de legalizar ato pretérito de um agente político que, outrora juiz, encaminhou a um determinado museu obras de arte apreendidas no curso de processo criminal.
O artigo 133-A está em linha com os propósitos declarados de atribuir efeitos de definitividade a decisões provisórias, disciplinando o uso de bens apreendidos no curso de processos judiciais por órgãos de segurança pública. Como poderá acontecer com a execução provisória da pena de multa (art. 50, do Código Penal) e a venda antecipada de bens que sofreram perdimento (art. 133, do Código de Processo Penal), o uso e a deterioração de coisas retiradas da posse de pessoas processadas e ainda sem condenação transitada em julgado criarão um passivo potencialmente considerável para a União e Estados. Para muito além de mitigar o princípio da propriedade privada (art. 170, inc. II, da CR/88), tão caro aos liberais-conservadores, a medida joga a União e os Estados no polo passivo de inúmeras ações indenizatórias que certamente serão ajuizadas. […]”
Aos leitores e leitoras que desejam ler a nota na íntegra, ela está disponível no seguinte link:
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