Para ‘adiar o fim do mundo’: os literatos de cocar (Parte 1)

Para ‘adiar o fim do mundo’: os literatos de cocar (Parte 1)

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Enquanto o fascismo bolsonarista prega o ódio ao saber, ao trabalho intelectual, à pesquisa e à palavra escrita, os povos indígenas brasileiros trilham um caminho oposto e luminoso: estão registrando sua sabedoria em livros, como aquele que foi um dos mais procurados na última Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP): Ideias para adiar o fim do mundo, de autoria de Aílton Krenak.        

Mesmo cortejado como astro no ambiente da feira, Krenak denunciou numa entrevista durante o evento: “O povo indígena continua sem ter um lugar (…) O lugar dos índios na FLIP (como convidado) é um lugar simbólico. Ele não muda nada. Quem ainda demarca os territórios são os brancos, em Paraty é a mesma coisa. A cidade é celebrada pela sua colonialidade. Se isso fosse só na arquitetura, estava bem composto. A questão é que isso está também na cultura. Nós estamos (aqui) imersos no colonialismo até o pescoço.”

A fala contundente de Ailton, 66 anos, fez jus ao perfil combativo de sua tribo. Os Krenak, Kren ou Borun, chamados antigamente de Aimoré, são considerados os últimos botocudos do leste do país, ocupando áreas ínfimas em MG, MT e SP. Hoje sua população reduzida mostra o efeito de massacres sofridos no passar dos anos, além de uma experiência tenebrosa num campo de concentração, chamado de Reformatório ou Centro de Reeducação, criado em 1960/1970 em MG para tentar silenciar e domesticar aquele povo, considerado rebelde e intratável.

O LIVRO

Ideias para adiar o fim do mundo é uma adaptação de duas palestras e uma entrevista, realizadas em Portugal entre 2017 e 2019. Editora Companhia das Letras, 85 páginas. Alguns trechos:

_ “ Como justificar que somos uma humanidade se mais de 70% estão totalmente alienados do mínimo exercício de ser? (…) A modernização jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas e em periferias, para virar mão de obra em centros urbanos. Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos, de seus lugares de origem e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade. Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos.”

_ “…o mito da sustentabilidade (foi) inventado pelas corporações para justificar o assalto que fazem à nossa ideia de natureza. Fomos, durante muito tempo, embalados com a história que somos a humanidade. Enquanto isso – enquanto seu lobo não vem – fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade”.

_ “Enquanto a humanidade está se distanciando do seu lugar, um monte de corporações espertalhonas vai tomando conta da Terra. Nós, a humanidade, vamos viver em ambientes artificiais produzidos pelas mesmas corporações que devoram florestas, montanhas e rios. Eles inventam kits superinteressantes para nos manter nesse local, alienados de tudo, e se possível tomando muito remédio.”

 _ “Para que não fiquem pensando que estou inventando mais um mito, o do monstro corporativo, ele tem nome, endereço e até conta bancária. E que conta! São os donos da grana do planeta, e ganham mais a cada minuto, espalhando shoppings pelo mundo.”

_ “(Há) uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. Como os povos originários do Brasil lidaram com a colonização que queria acabar com seu mundo? Quais estratégias esses povos utilizaram para cruzar esse pesadelo e chegar ao século XXI ainda esperneando(…)? Vi as diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram (…), a criatividade e a poesia que inspiraram a resistência (…) Quantos perceberam que essas estratégias tinham como propósito adiar o fim do mundo? (…) Eles não se renderam porque o programa proposto (pelos invasores europeus) era um erro: “A gente não quer essa roubada”. 

OS PRESIDIÁRIOS

O território original dos botocudos Kren era a mata atlântica no Baixo Recôncavo Baiano, depois o rebordo do Planalto. No século XIX deslocaram-se para o sul, atingindo o rio Doce em Minas Gerais e Espírito Santo.

Em Minas, na década de 1960/1970, como decisão da ditadura militar eles  foram recolhidos num Centro de Reeducação Indígena, ou Reformatório, junto com outros índios do país que opunham resistência aos ditames dos administradores de suas aldeias ou eram considerados como “desajustados socialmente”, pela ditadura.

No presídio, implantado pelo Capitão Manoel Pinheiro, da Polícia Militar do Estado (cruel e ironicamente) em cima de território dos próprios Krenak, no município de Resplendor, esses indígenas eram mantidos em regime de cárcere, sofrendo repressão.

Tramas de fazendeiros e políticos levaram à extinção definitiva da aldeia central dos Krenak e sua liberação para títulos de propriedade a arrendatários. A tribo ganhou em 1971 uma ação de reintegração de posse dos seus 4.000 hectares e o juiz determinou o prazo de 15 dias para os arrendatários serem retirados dali. Porém Manuel Pinheiro fez um novo acordo com o governo de MG, negociando uma permuta entre a área Krenak e a Fazenda Guarani, em Carmésia, pertencente à PM, para onde os Krenak e os prisioneiros indígenas foram transferidos, ao invés da retirada dos arrendatários brancos. Deve-se destacar que a Fazenda Guarani, antiga sede de tortura de presos políticos usada pela PM, também estava ocupada por grande quantidade de rendeiros e posseiros.

O Reformatório, portanto, foi parte fundamental do processo repressivo da ditadura em MG, vitimando diretamente um povo indígena indefeso, incluindo suas crianças feitas prisioneiras também. As atividades dessa unidade e da Fazenda Guarani eram comandadas por oficiais da polícia mineira que viriam a assumir postos-chave na administração regional da FUNAI.

“UM ENORME FAVOR”

Em 2017, na edição 183, AND publicou a visão crítica de Ailton sobre o crime das mineradoras no rompimento da barragem do Fundão em 2015: “A Bacia do Rio Doce (tido como sagrado pela tribo e chamado de Watu) foi cauterizada. Agora, aquele corredor de 800 km é uma calha morta. Não foi um acidente. Foi um incidente, no sentido da omissão e da negligência do sistema de licenciamento, supervisão, controle, renovação das licenças, autorização de exploração. O Estado e as corporações constituíram um ambiente promíscuo e delinquente, em que ninguém controla ninguém (…) também sabem que não tem consequência nenhuma se eles matarem um patrimônio inteiro, uma vila inteira ou, eventualmente, se matarem uma comunidade inteira.

Eles estão assentados sobre uma história colonial miserável, em que acham que fazem um favor enorme de estar comendo aquelas montanhas, empacotando aquelas montanhas e registrando um aumento no PIB brasileiro. Essa mentalidade estúpida, desse capitalismo que não dá nem pra chamar de selvagem, só pensa na exaustão dos recursos da natureza (…) e, cinicamente, matam rios, montanhas, florestas com a justificativa de que estão fazendo o desenvolvimento.

OUTROS ARTISTAS DA PALAVRA

Por mais de 5 séculos sem ter chance de se expressarem, os índios brasileiros estão cada vez mais, nos últimos anos, escrevendo seus pensares e contares com qualidade insuspeita, pois colecionam elogios e prêmios. Entre eles estão Daniel Munduruku, Eliane Potiguara, Cristino Wapichana, Marcia Kambeba, Olívio Jekupé e seu filho Jeguaka Mirim (MC Kunumi ou MC Curumim),Tiago Hakiy e Adão Karai Tataendy (falecido).

(OBS: Esta é a primeira parte do presente artigo) 

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