O advogado José Vargas Sobrinho Júnior é um reconhecido defensor dos direitos dos camponeses e indígenas, com ampla atuação no sul do Pará, onde representa os indígenas Kayapós em processo contra mineradoras no município de Cumaru do Norte e, mais reconhecidamente, os camponeses pobres sem-terra vitimados no episódio de repercussão internacional conhecido como Chacina de Pau D’arco, no município de Redenção.
Em 2017, 10 camponeses pobres foram sumariamente executados pelas forças policiais – Polícia Civil e Militar, Delegacia Especializada em Conflito Agrário e seguranças privados – na antiga Fazenda Santa Lúcia. No mesmo ano a fazenda foi retomada pelos camponeses organizados pela Liga dos Camponeses Pobres. Os executores dos camponeses seguem em liberdade, mantendo suas atribuições junto às forças policiais do município de Redenção, assim como os prováveis mandantes do crime.
Pela sua atuação em defesa das famílias dos camponeses em busca por justiça, José Vargas recebeu o Prêmio João Canuto (2017) e a medalha Paulo Frota (2018), concedida pela Assembleia Legislativa do Pará, mas também sofreu inúmeras ameaças, sendo integrado ao Programa de Proteção a Defensores dos Direitos Humanos.
Em 1º de janeiro deste ano, José Vargas Sobrinho Júnior teve prisão preventiva decretada sob acusação do desaparecimento – e posteriormente, homicídio – do então candidato a vereador de Redenção, Cícero José Rodrigues de Souza, desaparecido em 20 de outubro de 2020. Durante sua prisão, o advogado teve seus equipamentos eletrônicos apreendidos, os quais contém documentos, provas, testemunhos e nomes relativos aos processos que acompanha. A Polícia Civil e o Ministério Público (MP) consideraram como provas para a retenção, 12 mensagens de What’sApp trocadas entre José Vargas e um colega de escritório em que o acusado fez comentários em tom de brincadeira sobre o desaparecimento do candidato. Estranhamente – ou não – as mensagens utilizadas pelo MP para justificar a prisão de Vargas não foram incluídas no processo.
Logo que decretada sua prisão, diversas entidades jurídicas e de defesa dos direitos humanos – entre elas a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Redenção e a Articulação dos Povos Indígenas no Brasil (Apib) – emitiram uma nota denunciando a arbitrariedade da prisão e exigindo que José Vargas responda às acusações em liberdade.
No dia 25 de janeiro, Vargas foi transferido à prisão domiciliar. No dia seguinte (26), Fernando dos Santos Araújo, um dos sobreviventes e principal testemunha da Chacina de Pau D’Arco, foi assassinado com um tiro na nuca, no Acampamento Jane Júlia (nomeado em homenagem à liderança assassinada na chacina em 2017), na Fazenda Santa Lúcia. Diversas entidades e autoridades chamaram atenção para essa estranha – que adjetivo frequente, não? – coincidência.
O advogado de José Vargas, Marcelo Farias Mendanha, impetrou um habeas corpus (HC) afirmando que a polícia ocultou mensagens da conversa que provariam a inocência do acusado. A denúncia feita pelo advogado é de que as 12 mensagens apresentadas como provas são uma fração de uma conversa de 567 mensagens, ou seja, mensagens que contextualizam as demais e demonstram a preocupação do acusado com o desaparecimento do candidato a vereador e os esforços em acionar a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Pará (Alepa) para cobrar efetiva atuação das autoridades no caso, debelando qualquer imputação de crime à Vargas. Além disso, o MP levou 113 dias para disponibilizar à defesa a íntegra das mensagens obtidas pela investigação. Segundo o HC: “O Ministério Público, além de ocultar provas claras da inocência do paciente, se utilizou de mensagens, escritas e verbalizadas, para ligá-lo a uma prática delituosa em que não há mínimos sinais de sua participação, mesmo diante das asserções que foram feitas e apresentadas perante o juízo singelo, absurdamente descontextualizadas e tendenciosamente interpretadas sem a devida isenção, extraídas de captação ilegal pela autoridade policial”. O HC foi negado pela justiça.
O absurdo jurídico cometido contra José Vargas e sua defesa foi comentado pelo jurista Lenio Streck, na revista Consultor Jurídico, em matéria intitulada “Precisamos do duty of disclosure do MP: O caso do advogado Vargas”. Streck aponta a incoerência da justiça brasileira, que não incorpora ao seu Código de Processo Penal o dever de disclosure, o que significa que não considera como dever do Estado, ao processar criminalmente um cidadão, expor todas as provas produzidas no processo, sejam elas incriminatórias ou não.
Advogando pela reformulação do Código de Processo Penal, Streck afirma: “Com um Código de Processo Penal que nasce sob a égide de uma Constituição Democrática, é chegada a hora de colocar fim a alguns instrumentos que existem justamente para permitir o arbítrio do Estado, a exemplo da norma de que ‘não há nulidade sem prejuízo’, como se a violação ao rito processual não carregasse em si um prejuízo intrínseco e evidente; e ao mesmo tempo deve o novo diploma normativo criar instrumentos para resguardar os direitos fundamentais dos réus, como o dever de disclosure. O Ministério Público deve assumir o seu papel constitucional de ‘fiscal da lei’ e abominar seu papel inquisitorial de ‘escritório de acusação’.”. Ele aponta, ainda, que o ‘escritório de acusação’ parece estar voltado a extratos específicos da sociedade, os pobres, negros, indígenas e defensores dos direitos do povo – como é o caso do advogado Vargas.
Os comentários do jurista suscitam importantes reflexões sobre o caráter da prisão de José Vargas – e sobre o caráter do próprio Estado Brasileiro. Afinal, em que república verdadeiramente democrática, sob uma constituição verdadeiramente democrática, um réu não pode ter acesso às evidências contra ele produzidas? Sua defesa pode sofrer sanções, sob acusação de ‘tumultuar o processo’, ao exigir acesso às provas? A nós, nos parece que os “instrumentos que existem justamente para permitir o arbítrio do Estado” não são meros resquícios de atraso em nossa “Constituição Democrática” e Código de Processo Penal, mas sim sua verdadeira essência – antidemocrática, subordinada aos interesses dos grandes capitais, do “agronegócio” e dos imperialistas estrangeiros. É o que permite, e sempre permitiu, ao Estado Brasileiro condenar sem provas, encarcerar sem julgamento, executar camponeses – em luta pelo direito constitucional de ter acesso à terra –, reprimir manifestantes e tantos outros arbítrios diários aos quais nosso povo está submetido. José Vergas Sobrinho Júnior segue preso, Fernando e os camponeses executados na Chacina de Pau D’Arco estão mortos, e seus executores e detratores seguem livres. Estamos obrigados a concordar com a conclusão de Lenio Streck, “Não é só na Inglaterra dos 1600 que o republicanismo soa revolucionário, afinal…”.
1. Rafa Santos, Revista o Consultor Jurídico, “Advogado diz que MP ocultou provas da inocência de ativista no sul do Pará”. 24 de maio de 2021. https://www.conjur.com.br/2021-mai-24/advogado-mp-ocultou-provas-inocencia-ativista.
2. Lenio Luiz Streck, Revista o Consultor Jurídico, “Precisamos do duty of disclosure do MP: o caso do advogado Vargas”. 04 de junho de 2021. https://www.conjur.com.br/2021-jun-04/streck-precisamos-duty-of-disclosure-mp-advogado-vargas.
3. Ibidem. [grifos nossos].
4. Ibidem.
Advogado José Vargas segue preso desde janeiro de 2021. Foto: Repórter Brasil